…e as bruxas, elas existem?

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Está no ar, nas bancas de jornal e também no site da Cult, minha terceira coluna na revista. Agora está aqui também.

As bruxas, elas existem ou não?

O percurso acidentado de mulheres que, num ambiente governado por homens, ousaram ser compositoras de MPB

Pedro Alexandre Sanches

Você sabe por onde andam Tuca, Lilian Knapp, Martinha, Elizabeth, Marília Medalha, Rosinha de Valença, Sueli Costa, Luli, Lucina, Anastácia, Dora Lopes, Geovana, Aparecida? Ou, antes, você sabe quem foram, são e serão essas pessoas?
Eram, são e serão artistas bastante diferentes umas das outras. Mas guardavam em comum o fato de terem sido mulheres de atuação febril nos anos 1960 e 1970, quando vigorava uma ditadura militar no Brasil. E também o fato de que eram, são e serão, todas, compositoras por profissão.

Trata-se de um clichê, mas talvez seja necessário repeti-lo: em grande parte de seu percurso, a composição brasileira foi uma atividade avassaladoramente masculina. Na aurora do que hoje chamamos música popular brasileira, existiu a pioneiríssima Chiquinha Gonzaga, em atividade a partir de 1877. Depois disso, apenas na década de 1950 elas viriam a público, nas figuras quase solitárias de Dolores Duran, Maysa, Dora Lopes.

E pronto. Dolores compôs standards da dor de cotovelo, como “Castigo” e “Fim de Caso”, e morreu de infarto no auge da inventividade, em 1959, aos 29 anos. Maysa principiou muito jovem, no pique da fossa de “Meu Mundo Caiu” e “Tarde Triste”, mas se tornara compositora bissexta quando morreu num acidente automobilístico, em 1977, aos 30 anos.

Atuante desde o fim dos anos 1940 e autodefinida “branca por fora, mas crioula por dentro”, Dora elegeu o samba como via de expressão e conquistou picos de sucesso como compositora na década de 1970. Morreu esquecida aos 62 anos, em 1983, nove anos após lançar um LP chamado Testamento, que começava por “Se Eu Morrer Amanhã”, “Tá Tudo Certo” e acabava “Com Dolores no Céu”.

Ironicamente, foi em tempos de enorme repressão que as mulheres conquistaram avanço numérico e vicejou o elenco citado no primeiro parágrafo. A abre-alas da nova leva se chamava Tuca, cuja primeira composição gravada apareceu no LP Ana Lucia Canta Triste, em 1964. Escrita em parceria com a futura dramaturga Consuelo de Castro, a canção se chamava, veja só, “Homem de Verdade”.

Tuca participou da avalanche dos festivais da canção, lançou dois LPs autorais em 1965 e 1968, radicou-se em Paris, voltou ao Brasil em 1975 e morreu em 1978, aos 34 anos, de parada cardíaca decorrente de uma série de dietas para emagrecer.

Geração seguinte

Foi no núcleo da “alienada” jovem guarda que apareceram as próximas cantoras-compositoras. Lilian Knapp coassinou vários dos iê-iê-iês lançados pela dupla Leno & Lilian e fez sucesso solo em 1979, como a bonequinha de “Eu Sou Rebelde” (essa versão não foi escrita por ela, mas por um tal Paulo Coelho). Em 2008, Lilian lançou o CD Underground à frente da banda Kynna, com repertório escrito por roqueiros das novas gerações.

Dona do hit “Sou Louca por Você”, Elizabeth lançou uma série de LPs derramados e extrovertidos ao longo dos anos 1970, mas depois desapareceu das gravadoras.

Propensa à fossa, Martinha é caso raro, de autora jovem-guardista bem-sucedida em criar um repertório extenso e sustentável. Foi uma das maiores arrecadadoras de direitos autorais dos anos 1980 e 1990, mas a partir do bastidor, como fornecedora de temas para duplas sertanejas.

De volta ao terreno MPB, Marília Medalha é nobre filha da era dos festivais. Ao lado de Edu Lobo, venceu em 1967 com “Ponteio”. Com Tom Zé, conquistou o primeiro lugar de 1968 para “São Paulo, Meu Amor”. Só no início dos anos 1970 libertou o lado autoral, em dupla com um certo Vinicius de Moraes.

“Já fui muito prejudicada, tenho uma história de muita surra”, me disse numa entrevista em 2006. Fortemente envolvida na resistência à ditadura, parou de gravar em 1992. Em 2008, a jovem cantora Iris Salvagnini lançou de modo independente o CD Iris e a Canção de Marília Medalha, só com composições inéditas da homenageada.

Rosinha de Valença impôs-se por volta de 1964 como exímia violonista na tradição recém-fundada por Baden Powell. Só em 1976 aventurou-se a compor e cantar um disco inteiro, o extraordinário Bicho do Mato. Nos anos 1990, Rosinha teve uma parada cardíaca e permaneceu em coma durante 12 anos, até morrer em 2004. Meses depois, foi honrada com o tributo Namorando a Rosa, dirigido pela ex-parceira Maria Bethânia.

Luli e Lucina fizeram história na invenção da androginia popular brasileira, compondo para o grupo Secos & Molhados (Luli é coautora de “O Vira” e “Fala”) e, a seguir, para a fase solo de Ney Matogrosso (“Bandolero” é das duas). Mais tarde se consolidaram como dupla emepebista e hoje compõem e gravam separadas, e modestamente.

A partir de 1971, Sueli Costa compôs hits tristíssimos para Bethânia (“Assombrações”), Elis Regina (“20 Anos Blue”) e Simone (“Jura Secreta”). Desde 1975, lança esporádicos e modestos discos próprios, o mais recente deles, Amor Blue, há dois anos. “É, acho que estava um pouco isolada nessa época. Só tinha a Joyce”, me disse em 2007, referindo-se a uma das duas únicas autoras daquela geração a levar carreira longeva e comercialmente vitoriosa. A outra era roqueira menina em território arrendado e governado por homens, e se chama Rita Lee.

Do samba brotaram as impactantes cantoras-compositoras Aparecida e Geovana. Do forró é Anastácia, autora (com Dominguinhos) do clássico “Eu Só Quero um Xodó”. Compositoras de um nome só, andam perdidas em ruidosa multidão – o recurso de “dar um Google” não é suficiente para localizá-las entre muitas Anastácias, Aparecidas e Giovanas (por esse motivo, aliás, Joyce mudou recentemente sua assinatura para Joyce Moreno).

Parece detalhe prosaico esse do Google, mas será mesmo? Será mera coincidência a subtração dos sobrenomes de tantas Marlenes, Angelas Marias, Inhanas, Morganas, Maysas, Tucas, Elis Reginas, Wanderléas, Waldirenes, Rosemarys, Vanusas, Gianes, Joelmas, Dianas, Martinhas, Silvinhas, Evinhas, Regininhas, Claudias, Márcias, Célias, Joyces, Janes, Miúchas, Marias Alcinas, Alciones, Simones, Joannas, Marinas, Clemildas, Isoldas, Katias, Rosanas, Xuxas, Sandys…?

Repare só nas tantas histórias tristes resumidas acima. Colocadas assim, todas juntas, levam à conclusão de que não só os fazedores de música engajada eram passíveis de castigo, punição e sofrimento. Uma por uma, ajudaram a fixar a mensagem insistente de que, em anos de chumbo, ser mulher e compor música eram condições incompatíveis, se não desastrosas. Não cremos em bruxas, mas… Afinal, somos ou não somos (além de racistas) machistas e patriarcalistas?

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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