Hoje cedo, na rua do Ouvidor

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Outro dia fiz minha rápida incursão pela São Paulo Fashion Week, e foi o suficiente para que o monstro do incômodo me perseguisse e se transformasse, em poucos minutos, na tromba de elefante do mau humor.

Bem na entrada, estavam os caras do movimento negro (suponho) portando faixa contra a desfaçatez da discriminação de negros e negras nas passarelas do evento de moda mais multicolorido do Brasil.

Pessoalmente, adoro a reivindicação dos caras e o posicionamento que eles têm tomado nas cercanias do pavilhão da Bienal e nas periferias da Fashion Week. Juro, não entendo como alguém consegue entrar no pavilhão em festa se sentindo bem depois de passar por aquela faixa.

Na minha entrada, por ato reflexo, sorri para um dos caras que seguravam a faixa e falei algo como “é isso aí, muito legal!!!”. ao que ele respondeu, sério, algo como “pois é, como é que podem se dizer contra a violência legitimando a violência?”.

Não me serviu como paliativo tentar uma frasezinha de apoio ao levante contra o racismo das lulus e dos lulus. Eu me senti branco como cera falando para o cara que a atitude deles é o máximo, mas entrando com meu convitinho (branco como mármore) na mão na alcova dos leões.

Aí fui assistir a um desfile, confesso que menos curioso pelo desfile em si que pelo(a)s modelos negros que iam desfilar – uma amiga querida que estava trabalhando na engrenagem disse que o povo (não, este não é um bom termo aqui) da Fashion Week optou por colocar algo como “dois modelos negros” por desfile, para amainar os ânimos (suponho).

Entendi, essa deve ser a tal “cota de 1” de que falou com imensa propriedade o José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares. Em entrevista que está publicada aqui mesmo, mais ali abaixo, disse assim o Vicente:

“Nós estamos agora contestando a cota de 10% ou 20%. Criamos a cota de 1. Você vai ver que em alguns lugares os caras agora fazem questão de pôr um negro: ‘Olha, tem um aqui, tem um no bolso pra você’. Ou quando você discute espaços de responsabilidade social: ”õe um negro aí na propaganda, pra que possamos nos apresentar politicamente corretos”. Mas o ‘politicamente correto’ é um negro e 30 não-negros do lado”.

É isso, e eu ali era um desses 30 (para não dizer 300), contra os três modelos negros que iam passar passarinhos pela passarela.

Foram três. Eles entraram, um moço negro, uma moça negra, outro moço negro. Lindos de morrer. E só. A não ser que eu tenha comido mosca (ops!), percebi que cada um fez apenas uma entrada, à parte as belezas estonteantes que carregavam em cima dos esqueletos. Resolve logo esse treco aí, e pano rápido!

Fiquei imaginando a fortaleza que fazer aquele trabalho exigiu de cada um dos três. Porque o tanto de vibração negativa que emanava da plateia para a passarela no passeio dos modelos negros, esse eu senti na minha pele branca, cada vez mais pálida e latejante no pouco tempo em que zanzei por ali.

A propósito, foi zanzando que detectei a farsa da hora. Madame não gosta de samba, madame acha que não deve ter cota nenhuma, que isso é “racismo às avessas” (bombas e esfaqueamentos na parada gay também devem ser resultado de heterofobia, ou de homofobia às avessas, né?). Mas madame está enganada(o), ou então mente descardamente: sim, existe cota para negros na Fashion Week, sim!!!

Existe, ah, se existe. Não sou bom em contas e estatísticas, mas, pelo que pude ver por ali, arrisco chutar que entre os muitos, muitos, muitos seguranças que se moviam na proteção da branquelice geral da nação fashion, no mínimo uns 95% eram – são – pretos. Faxineiras e varredoras poucas eu vi, mas brancas não eram.

E aí, pronto, nem há o que contestar ou discordar de dona Glória Coelho, a estilista que (se teve a fala corretamente transcrita pela “Folha”) há meses já cantou a bola. Assim a “Folha” disse que disse a dona Coelho: “Na Fashion Week já tem muito negro costurando, fazendo modelagem, muitos com mãos de ouro, fazendo coisas lindas, tem negros assistentes, vendedoras, por que têm de estar na passarela?”. Cruzes. Assim os caras vão ter que rasgar a faixa, não é possível.

O fato é que doeu fundo passar pelos (e até levar patada dos) seguranças negros da Fashion Week e ficar pensando na fortaleza que eles deviam – devem – ter de segurar dentro deles próprios para conseguir ficar impávidos, fazendo vista grossa ao discurso impresso naquela faixa lá fora nas mãos dos caras.

Na saída eu não falei mais nada para os caras da faixa, não consegui nem olhar nas caras dos caras. E saí me sentindo ainda mais nojentamente branco do que tinha me sentido na entrada. Com a tromba de elefante batendo no chão.

[P.S. para um tema que precisa voltar aqui o mais rápido possível (e que não deixa de ter a ver com as cotas para negros nas penitenciárias, quero dizer, nas passarelas brasileiras): todos os méritos ao Mário Magalhães, pelo gol de levantar o conteúdo dos trâmites do caso Wilson Simonal na Justiça Militar Brasileira dos anos 1970 (será que ele não poderia compartilhar, disponibilizar na íntegra aqueles autos?, não seriam caso de utilidade pública?).

Mas, dito isso, me impressiona cada vez mais a obsessão de certos setores por focalizar e sentenciar apenas e tão-somente o papel do Simonal-em-si na história e a dicotomia “era dedo-duro?”/ “não era dedo-duro?” na trama policial que o levou ao pântano definitivo. Me perdoem os caras que respeito e admiro nesses setores (inclusive o Mário), mas me lembram muito, muito, muito, as mariposas de Adoniran Barbosa, esvoaçando ao redor da lâmpada até a morte, enquanto o mundão escuro sem porteira fica dando sopa lá fora, intocado e incompreendido.

O que quero dizer, em outras palavras: quem não abre mão de ficar zumbizando ao redor da mesma lâmpada artificial de sempre pode não entender o que está fazendo, mas dá sua cota gostosa de colaboração para conservar as lógicas mais perversas do status quo (militar-jornalístico-ditatorial) que produziu aquela – esta – história pavorosa.]

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