13 de maio. como prolongamento da reportagem “o rio e a margem”, cresço aqui a entrevista com josé vicente, o reitor da faculdade zumbi dos palmares. considero-o uma figura admirável (para maiores detalhes favor consultar, no tópico “um quilombo do século xxi”, o subtítulo “um ex-matuto”), que tem muito a dizer. muito.
PEDRO ALEXANDRE SANCHES – Quando visitei a escola, ainda ficava na Luz. Queria que você fizesse um resumo de tudo que aconteceu até chegar aqui ao Clube Tietê.
JOSÉ VICENTE – Ai, Pedro [suspira], acho que em grande medida essas andanças retratam justamente a procura desse tema do lugar, dentro do espaço territorial, da cidade de São Paulo, ou um lugar no imaginário das pessoas, sejam negras ou não-negras, um lugar na educação. E retratam também a dificuldade de consolidar ou materializar utopias que, ainda que sejam muito bem-vistas e recebidas, têm sempre a característica de exigir ações objetivas, mão na massa, dinheiro, financiamento. Aí você vê que às vezes é mais fácil ficar só na utopia que colocá-la de pé. A andança pra lá e pra cá retrata essa busca de um lugar, mas retrata talvez a persistência, a perseverança. Apesar dos pesares continuamos aqui, à frente da luta. E em grande medida isso sintetiza também uma contradição: é um tema terrível para trabalhar, mas um tema que na atualidade permite algumas adequações, acomodações, transmutações. E mesmo alguns sucessos. Apesar de ter andado, andamos nunca de lado, sempre pra frente.
Coincidentemente, tudo começou aqui na Armênia, ali do outro lado do metrô. Saímos porque se transformou num espaço acanhado, que exigia expansão. O projeto começou a ter boa aceitação, bastante sucesso. Fomos para um espaço maior, na Luz, e da mesma maneira a condição do trabalho exigiu um espaço maior, depois veio a Barra Funda…
PAS – Estão craques em fazer mudança…
JV – Já viramos, dá pra abrir uma construtora [ri]. Na Luz, eram 3 mil metros quadrados, 25 salas ocupadas como salas de aula, administração, laboratório etc. Já estávamos com mais cursos que seriam autorizados, e sabíamos que tínhamos que pensar em alugar outro prédio noutro lugar, ou partir para um espaço que pudesse manter tudo junto. Mas sempre damos sorte grande, pensamos na Barra Funda, chegamos ali e encontramos uma placa, “aluga-se”.
PAS – O que funcionava lá antes?
JV – Era o centro de distribuição da Submarino. Alugamos, reformamos e estávamos lá. Mas desde o primeiro dia do projeto já estávamos – e continuamos ainda – solicitando cessão de imóvel com o governo federal, o estadual, o municipal, fazendo todas as injunções políticas e institucionais para ter um espaço definitivo e gratuito. O tipo do nosso trabalho não permite pagar água nem luz, quanto mais aluguel. Uma primeira resultante, logo no começo de tudo, foi um predinho que o governo federal cedeu, na antiga Justiça do Trabalho, perto da Luz, por intervenção da Marta [Suplicy]. A Secretaria de Patrimônio da União nos cedeu, entramos, reformamos. Quando íamos mudar, disseram: “Dá o prédio de volta que ele vai precisar ser utilizado para outra atividade”. Aí partimos pra Luz, enquanto seguíamos conversando, também com o governo estadual e municipal. Quando nos aproximamos do prefeito [Gilberto] Kassab, dissemos que gostaríamos de contar com a colaboração dele, sabíamos que havia muitos espaços, principalmente dos clubes, que estavam sendo retomados, ou seriam reformulados para cumprir outras demandas sociais. Ele deu a sugestão: “Por que não se instalarem no Clube de Regatas Tietê?”. Trouxemos a demanda ao clube, que está numa situação muito difícil. Este era um prédio que estava desocupado, sem atividades. O que está acertado com a prefeitura é a cessão de um espaço de 20 mil metros nesta área, será o espaço no qual, por 50 anos, poderemos instalar a faculdade.
PAS – Isso já se pode afirmar? É definitivo?
JV – Foi feito um protocolo de intenções com a prefeitura. Agora está no departamento jurídico da prefeitura, nos últimos ajustes, e vai pra câmara municipal, que tem que aprovar uma lei nesse sentido.
PAS – O pleito é ficar aqui neste terreno mesmo?
JV – Nós vamos ficar aqui. Nos próximos meses a lei será aprovada. Em setembro o Clube de Regatas Tietê volta para a prefeitura, porque está terminando um comodato de 50 anos. A prefeitura então faria essa nova destinação dos 20 mil metros, e os outros 40 mil metros transformaria num centro de treinamento olímpico.
PAS – O clube acaba?
JV – Não, o clube não acaba, não. Eles têm a pretensão de reservar um espaço para o clube, que ainda poderá usufruir do centro olímpico, e disponibilizar uma área de esportes para a comunidade como um todo, não só para os sócios do Clube Tietê. A ideia é que eles também permaneçam, mantenham a história e a tradição, mas que o uso seja coletivo, não dos sócios. E, mais ainda, que esse uso inclua tanto esporte quanto educação, lazer etc. Parece que o clube teve muito interesse, até porque o centro olímpico prevê sua reforma inteira. Ganhariam um clube novinho, e custeado pela prefeitura, em grande medida. Da mesma maneira, a prefeitura ganharia um espaço esportivo de primeiro mundo, também educacional. Seria um jogo de ganha-ganha, todos seriam beneficiados.
Mas nesse meio tempo, tendo em conta que esse prédio estava abandonado, nós reformamos e já viemos para cá. Isso nos auxiliou com 70% do nosso valor do aluguel. No outro espaço pagávamos 100 mil reais de aluguel-mês. E neste primeiro momento aqui, com a parceria com o clube, estamos fazendo só manutenção – água, luz, jardinagem, segurança. Não tem aluguel, só essas despesas que o clube não poderia pagar por nós. Uma vez o espaço definido, aí então partimos para aquele que será um momento bastante contundente do trabalho, que é pôr de pé uma sede definitiva.
PAS – Que não seria este prédio?
JV – Não, outro prédio, bonito, novo, perfumado, mais adequado. Este aqui já cumpre uma série de objetivos. Estão aqui o metrô, a Marginal, o verde, o campo. Nós sempre trabalhamos no sentido de dignificar esse tema, que merece um espaço à sua altura. O trabalho vai ser de passar o chapéu onde for possível, mas fazer uma obra bonita, bacana, que ilustre e trate esse tema com dignidade. Mas também é coisa que já poderíamos ter feito há muito tempo, ao curso da trajetória. Acabamos fazendo indiretamente, mas nos imóveis dos outros. Cada um a gente vai reformando, reformando, e depois…
PAS – Por isso você falou que podia abrir uma construtora.
JV – É, o que empenhamos de recurso pra reformar prédio dos outros já daria pra ter construído uns dois pra gente.
PAS – Vocês não pagariam aluguel? Seria um comodato também?
JV – Um comodato. Mas não é que não pague. Você precisa apresentar uma contrapartida. O nosso desejo, que já está posto, é que a gente pudesse, ao mesmo tempo que desenvolve ensino superior, disponibilizar acesso ao ensino médio e técnico para os mais necessitados. Estamos criando possibilidades para isso em algum momento – aliás, até já abrimos, o Colégio Técnico Zumbi dos Palmares, que vai funcionar principalmente na parte da manhã, quando temos disponibilidade de espaço. Já estamos começando com o curso de enfermagem, junto com o HCor. O colégio técnico é gratuito. A gente ofereceria à municipalidade o uso de toda nossa estrutura pra atender, dentre outras coisas, o ensino gratuito pra molecada, e da mesma maneira a nossa expertise pra alguma outra ação que interesse à prefeitura. Seria uma forma de devolver em ações a contribuição do município.
PAS – No governo da Marta, a retomada dos espaços públicos causou polêmica. De alguma maneira é o que está se concretizando agora?
JV – Foi, houve aquela CPI que analisou a situação de vários espaços públicos municipais, clubes, jóquei, que deveriam cumprir uma série de finalidades e não cumpriram, ou hoje não reúnem mais condições. A prefeitura então tem solicitado ou contrapartidas ou a retomada dos imóveis. No caso aqui do Tietê existe esse desejo de repor o espaço naquelas glórias anteriores, mas também atender ao público da região que não tem equipamentos de lazer, escola, educação. Está muito em voga agora o clube-escola, que é transformar em espaço pra criança. Em regra os clubes, grande parte deles, estão precisando responder a esta nova realidade.
PAS – Aí tem esse dado impressionante, de que isto já foi um espaço de elite, e racista. Conversando com o presidente do clube, percebi que, não sei se voluntariamente, o Tietê hoje virou alguma espécie de democracia, com a faculdade, os coreanos, as festas na piscina da comunidade gay.
JV – É, eles ficaram obrigados a se apresentar com outra roupagem. A gente não sabe quanto isso é fruto de uma decisão voluntária, mas, pro bem ou pro mal, de maneira geral estão fazendo uma curva qualquer fora daquela linha. E, no caso de negros, é sintomático, há o episódio com Milton Gonçalves. Quando era garoto, ele quis participar de uma atividade aqui no clube e foi impedido. Segundo ele, diziam textualmente que aqui não se aceitavam negros. Ele guardou uma grande mágoa em razão desse acontecimento.
Outra coisa é que o Movimento Negro Unificado começou em razão da ação do Tietê. Os quatro jovens que fundaram o MNU tinham tentado participar de uma atividade aqui e foram impedidos. Teve passeata, foi um agito danado na época, e baseado no caso do Tietê criou-se o MNU, pra combater racismos de toda natureza. Hoje, circunstancialmente, vem um trabalho dessa natureza pra este espaço, e o público que antes não podia entrar pra usufruir as benesses do clube hoje entra pra estudar.
PAS – E também pra usufruir do clube, se quiser, não?
JV – Ah, sim, usufruindo do clube também. Mas esse é um dado extraordinário. Não se voltou pra entrar na piscina, mas pra ir além da piscina. E mais ainda, com espaço aberto inclusive para os usuários do clube tietê, para os sócios. A generosidade que eles não tiveram naquela época a gente está devolvendo agora.
PAS – Vocês têm percebido algum resquício dos tempos de resistência por parte deles?
JV – Ah, sim, sim. Só não posso dizer se é uma resistência relacionada à discriminação racial. Talvez uma discriminação mais de perda. Grande parte dos sócios gosta de dizer sempre “meu avô nasceu aqui”, “meu filho”. É um clube centenário, tem mais de duas ou três gerações que passaram por aqui, então tem logicamente um sentimento afetivo muito grande. Acho que a resistência é em sentir que os tempos são outros, as coisas mudaram, e eles ou não se aperceberam ou não se prepararam. Talvez tenham a percepção de que estão perdendo um espaço, de que outros estão se apoderando de um espaço que é deles. Talvez em razão disso o olhar torto, mas não quero crer que obrigatoriamente seja por estar sendo usado por negros.
PAS – Vocês estão aqui desde fevereiro, nesse tempo não há nenhum registro de conflito entre as duas nações, digamos assim?
JV – Ainda não. Seguramente deve ter alguns olhares, comentários de toda natureza, contestações de parte a parte nas reuniões do conselho do clube. Mas não tem qualquer coisa objetivada ou textualizada, como “você é negro, não entra na minha piscina, a água é minha”. Não quer dizer que não estejam pensando. Mas o fato é que o clube estava às moscas, o estado precário denuncia. Isso aqui está trazendo é vida. Tem aí esse continente simbólico interessante, mas que em nenhum momento foi a condição pra qualquer coisa. Depois é que vieram à baila todas essas informações. O fato é que poderia ter acontecido uma resistência terrível, mas estar aqui significa que, ainda que houvesse e existam pensamentos nesse sentido, dos que estão aí conduzindo, dos que restaram, poucos colocaram objeção, “de jeito nenhum”. Aliás, isso não foi imposto, foi uma acordo de consenso.
PAS – Não dá impressão de que em tudo que a Faculdade Zumbi dos Palmares faz se descobre depois um significado simbólico?
JV – Pois é, tudo. Como se diz que não cai uma folha de uma árvore se Deus não quiser, às vezes a gente para pra pensar e pensa, que coisa, que sina, o que nos foi determinado e a gente cumpre no imaginário… Depois, quando junta as pontas, meu Deus do céu, a gente é obrigado a pensar que está cumprindo uma missão divina, qualquer coisa parecida, porque são muitas circunstâncias extraordinárias.
PAS – No começo você falou de utopia. Mas desde que existe a faculdade elegeram um presidente negro nos Estados Unidos. O ministro do STF Joaquim Barbosa anda em evidência…
JV – Pois é, rapaz! Sabe que estou indo para os Estados Unidos na segunda-feira [dia 4 de maio]? Não sei se você lembra que quando Condoleeza Rice esteve aqui, no ano passado, ela assinou um plano de ação Brasil-Estados Unidos, pra promoção de ações afirmativas, inclusão e valorização de negros, principalmente na educação, na língua inglesa, no mercado de trabalho. Esse plano foi assinado, teve duas reuniões aqui, terminou o governo e se imaginava que com Obama não prosseguiria. Era um plano republicano, eventualmente os democratas não teriam interesse. Mas ao contrário, chegaram e já pegaram o plano pra fazer as conduções devidas. Então agora me convidaram pra essa reunião de trabalho, pra acabar de ajustar, adequar ou melhorar o tal do plano, o mesmo plano assinado pela Condoleeza. Generosamente me convidaram, e com muita satisfação estarei lá.
PAS – Você esteve lá no processo eleitoral também.
JV – É, na verdade estive três vezes nos Estados Unidos no ano que passou. Primeiramente fui pra um encontro mundial de educação promovido pelo Departamento de Estado, pela Condoleeza Rice. Me convidaram, fui, a única representação do Brasil que participou desse encontro fomos nós.
PAS – Era um congresso racial?
JV – Não, tinha gente do mundo inteiro. Eles estavam muito preocupados com os reflexos da intolerância, em decorrência do 11 de setembro. Estavam tentando encontrar caminhos pra combater a intolerância via educação, na linha de que não podemos ensinar a odiar, temos que ensinar a pacificar. Tendo em conta a característica da temática negra que já estava em voga, nos convidaram. Depois fui convidado pra ser observador da campanha eleitoral, fiquei lá um mês. E voltei para a posse.
PAS – Por sua conta?
JV – Não, fui convidado pelo comitê do Obama. Quando estive lá tivemos conversas e contatos. Ficou a perspectiva de ser convidado para ver de perto se Obama ganhasse. Ganhou, o comitê convidou. E ao final acabei sendo convidado também pela American Express, cujo vice-presidente é um negro. Lá é normal, é natural [ri], né?
PAS – De quão perto você viu?
JV – A sede da American Express é na Pensilvania Avenue, fiquei a 150 metros do Capitólio.
PAS – Perguntar se foi emocionante é desnecessário…
JV – É inenarrável. Inenarrável. Inenarrável. Como você sabe Washington tem muitos negros, então seguramente 70% daqueles 2 milhões eram negros, todos chorando, pulando, um negócio fabuloso. Fabuloso. Foi maravilhoso. E agora então eu volto pra participar de um seminário sobre a Unilab. Não sei se você sabe essa história, pelo menos já inspiramos alguma coisa, que o governo federal está criando – nós estamos em pé de guerra com ele, mas…
PAS – Por quê?
JV – Não é possível, o presidente Lula veio, viu a nossa formatura, e o que ele fez no outro dia? Mandou criar a Unilab, Universidade Federal de Integração Luso-Afro-Brasileira, em Redenção, no Ceará. Pelo amor de Deus, a gente está há dez anos trabalhando que nem condenados, pagando todos os impostos sem ajuda de ninguém, e quando vocês voltam a atenção pra isso vão fazer uma universidade lá no Ceará? Pô, pega nosso projeto, melhora… Está lá o projeto andando na Câmara, aprovaram 160 milhões de reais pra implantação da bendita Unilab. E, bom, Lula vai atender quem? Os negros dos países africanos. Todos estamos precisando, é justo, mas e nós, negros brasileiros, como ficamos nisso tudo? O que deu pra entender é que eles querem se transformar num centro de qualificação intelectual e profissional, preferencialmente para países africanos.
PAS – Mas se é um projeto de integração com a África, é diferente do de vocês, não?
JV – É, mas que vem inspirado na iniciativa de incluir os temas negros. O que estamos dizendo é que o que sempre se pediu no país era ferramentas que permitissem a inclusão do negro no ensino superior, na universidade pública, no mercado de trabalho. E, quando essa ferramenta é minimamente pensada, é pensada numa outra perspectiva, do negro africano. Tá um questionamento danado, uma briga. Mas, enfim, o modelo seguiu-se à Zumbi dos Palmares, então ficamos contentes com isso, está posto. E hoje, neste momento [24 de maio], está lá a Conferência Mundial de Racismo na ONU, saindo faísca, com o [presidente iraniano Mahmoud] Ahmadinejad soltando trovões verbais contra Israel, uma briga danada.
PAS – O tema é planetário.
JV – É. Temos essa discussão toda. Temos a São Paulo Fashion Week… O pessoal está em cima deles, cadê o Brasil miscigentado nessa passarela?
PAS – E estilistas falando barbaridades… [[em 12 de abril, a “Folha de S.Paulo” publicou a seguinte argumentação da estilista Glória Coelho contra a hipótese de criação de cotas para negros nas passarelas: “Na Fashion Week já tem muito negro costurando, fazendo modelagem, muitos com mãos de ouro, fazendo coisas lindas, tem negros assistentes, vendedoras, por que têm de estar na passarela?”.]
JV – Você vê que coisa absurda? Espírito de casa-grande e senzala é apelido.
PAS – O que você sente, pessoalmente, diante de um comentário como esse?
JV – A gente é obrigado a admitir que se trata de um descolamento terrível da realidade, e não é de negro, não. Acho que ela diria isso em relação a pobre, a qualquer outra coisa. São dois mundos tão distintos, tão diferentes, tão separados, tão desiguais. Um mundo que seguramente permite que se essa Glória vivesse 150 anos talvez correria o risco de nunca na vida cruzar com um negro no seu caminho.
PAS – Será? Os empregados dela devem ser negros.
JV – Ela pode até cruzar, mas nessa circunstância, e não numa situação de interação. Quando discursou na nossa formatura, o ministro [da Educação] Fernando Haddad falou uma coisa engraçada: “Eu fiz graduação, mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo, fiquei ali 15 anos. E nunca não tive a alegria de ter ou um professor ou um colega de faculdade negro”. Foi muito bacana a palavra dele: “Vocês tiveram mais sorte do que eu, porque puderam ter um amigo negro”. Mas são caminhos tão paralelos que dificilmente em algum momento vão se cruzar. É outro ambiente, outro mundo. Nesse sentido, soam até naturais a compreensão e a manifestação dela.
PAS – Ela presta um serviço sem saber, porque se expõe, inclusive ao ridículo. Deve ter muita gente que concorda com ela, mas…
JV – É. Não sei onde eu li, um cara estava falando do livro do Chico Buarque, o “Leite Derramado”. Ali Chico faz a constatação do racismo da elite branca brasileira. Não li ainda, mas fiquei muito interessado. Chico tem sido vítima, ele diz como são o desconforto e a tristeza dele toda vez que vai à praia com o neto [filho de Carlinhos Brown]. Só falta dizerem “sai daqui, negrinho”, só depois que descobrem que é o neto do Chico Buarque… Aí é que ele se deu conta do racismo e passou a escrever sobre isso, escreveu no “Leite Derramado”.
PAS – Li o livro, e confesso que fiquei incomodado. É certo que está tentando fazer uma crítica, mas é uma voz em primeira pessoa, que fala coisas terríveis, e faz ficar pensando em que medida não é o autor mesmo que está ali…
JV – Só posso dizer que ele viveu a experiência bem de perto, com a família. O fato é que tantos outros grandes personagens poderiam ter se posicionado sobre o tema, e todo mundo ficou em cima do muro, ou não o fez. O legal dele é vir e dizer “olha, as coisas são assim, sim”. Senão a gente cai naquela conversa mole de que “não somos racistas” [ri], porque não existe raça. Ai, meu Deus do céu, quem falou que precisa haver raça pra haver racismo?
É como no artigo de hoje do José Serra [“Folha”, 24 de maio], também achei muito esquisito, muito esquisito. Ele vem num artigo qualquer, fazendo uma análise do massacre contra os armênios, e depois fecha: “Por isso nós precisamos combater quem quer que seja que apresente a possibilidade de privilégios a partir da raça, porque isso em algum momento vai instigar o ódio racial e vai acontecer como aconteceu com a Armênia”. Não entendi o recado. Primeiro que José Serra nunca escreve, e quando escreve normalmente trabalha sobre aspectos econômicos. De repente vem pegar Turquia e Armênia pra mandar recado? Como você bem sabe está lá no Congresso Nacional a aprovação ou não da lei de cotas nas universidades públicas. Não entendi de onde surgiu José Serra se posicionando sobre isso, sendo que ele nunca deu qualquer entrevista sobre isso. Tá mandando recado pra quem?
Mas o fato é que o país hoje se debruça em encontrar uma resposta e um caminho pra esse tema. E aí acho que todos nós falhamos, sejam os governantes, as personalidades, os políticos, mas também a academia. Porque ao longo destes 120 anos ninguém se debruçou sobre esse tema pra pensar políticas públicas ou soluções quaisquer. Agora, por qualquer motivo, se consolidou uma, todo mundo é contra, ou a grande maioria é contra. Legal, não é cotas, é o quê? “Não, deixa do jeito está e vamos fazer a universalidade.” Está de brincadeira? Mais 120 anos esperando o bolo crescer? Manda outro. “Não temos, vamos discutir.” Então deixa as cotas e depois a gente discute outro.
PAS – Mas também a realidade vai pressionando. Obama não bagunça um pouco a acomodação geral?
JV – Pois é, porque a realidade está aí dizendo: se vocês não fizerem a mudança eu vou fazer, e a mudança vai ser pro bem ou pro mal. Pode ser pro bem, procurando um caminho que transforme essas energias dispersas em convergentes. Ou vamos começar a construir muro em tudo que é canto, na Paraisópolis, muro de Berlim pra tudo quanto é canto. Em vez de nós nos debruçarmos sobre o problema, vamos fazer muro. Mas sejam muros ou cotas ou qualquer coisa, alguma coisa vai ter que ser feita. Aí é que estamos esperando o grito dos democratas. Até agora, está todo mundo em cima do muro, é muito triste isso. A conquista desse tema negro acaba sendo uma conquista não-democrática. Tem um livro muito bacana, “Na Lei e na Raça”, uma dissertação de mestrado do hoje secretário municipal de Reparação do Rio de Janeiro [Carlos Alberto Medeiros], o que ele diz é que o que se conseguiu aqui pros negros é uma conquista isolada, individual e solitária do negro. Não tem nem mídia, nem igreja, nem sindicato, CNI, ABI, OAB, ninguém. É você e você mesmo, contra tudo e contra todos. É muito triste, porque isso teria que ser uma luta de todos, porque é uma uma luta cujo resultado interessa a todos os brasileiros. E o brasileiro ainda não foi despertado pra isso.
PAS – Posso dizer que sou testemunha de que a mídia não melhorou quanto a isso.
JV – Eu sei. Nós estamos agora contestando a cota de 10% ou 20%. Criamos a cota de 1. Você vai ver que em alguns lugares os caras agora fazem questão de pôr um negro: “Olha, tem um aqui, tem um no bolso pra você [ri]”. Ou quando você discute espaços de responsabilidade social: “Põe um negro aí na propaganda, pra que possamos nos apresentar politicamente corretos”. Mas o “politicamente correto” é um negro e 30 não-negros do lado.
PAS – Eu estava percebendo isso outro dia na novela das oito. A personagem continua sendo empregada doméstica, mas agora tem uma casa, tem conflitos, um filho esquizofrênico… Dá um mal-estar, é melhor, pelo menos ela tem filhos, mas, ainda assim…
JV – [Ri.] Tem marido, né? Vai ter uma novela em que a Taís Araújo vai ser a protagonista e, segundo informações que tenho ouvido, vai ter algumas cenas quentes. Porque, por incrível que pareça, Pedro, até hoje você nunca viu uma cena quente de atores negros. Nunca, nunca. Em que novela você vê uma mulher negra e um homem negro se beijando, se roçando, rolando na cama? Nunca. É um tabu. Os negros que vemos primeiro não tinham família, segundo, eram sempre engraxates, jardineiros ou porteiros. Legal, conseguimos incluir negros com núcleo familiar. Aliás, teve até a discussão dessa última novela, com Milton Nascimento, “quando é negro protagonista, é bandido sem-vergonha” [ri], foi uma briga danada. Mas, enfim, tem negro com vida familiar, com carro etc. Dizem que nessa novela virá. E que negócio terrível, já puseram gay, lésbica, demente, tudo. Me parece que a mídia, ou a novela brasileira, ainda não tem segurança nem maturidade pra colocar dois negros se beijando.
PAS – Isso é conspiração involuntária, algo que ninguém faz e ninguém sabe por que não faz?
JV – Pois é, rapaz, vai saber. Me parece que ninguém quer pôr a mão na ferida. Todo mundo concorda, “puxa, que coisa, nunca vi um homem negro e uma mulher negra”. Aí você fala com Manoel Carlos ou quem quer que seja, ele diz “é mesmo” e também não faz. A gente trabalha com algumas empresas aqui que nos ajudam com algumas vagas de estágio, e a grande dificuldade que tivemos de convencer parte deles no início do trabalho é que a gente sentia que nem era só por restrição ao tema. É que isso aí é trabalhoso. O cara teria que parar, começar a pensar nesse assunto, ler sobre, mudar o ambiente interno, preparar os outros funcionários, logicamente no início ia ter uns atritos que ia ter que administrar. Tudo isso ia fazer ele ter que parar o que estava fazendo, deixa, é melhor não.
PAS – Também tem que trabalhar com convicções internas que nem sabe que tem…
JV – É. Na mídia, ou na novela brasileira, tivemos “Xica da Silva”, que foi uma coisa muito pontual, mas isso não é uma normalidade. Ao passo que, coisa engraçada, todos os filmes norte-americanos que entram no assunto entram com propriedade. Tem uns seriados de negros que passam no SBT – passa, vende, dá ibope, tudo sob controle. Chega aqui, num país miscigenado, vai pôr negro… Eventualmente não vende, como dizem sempre. Como diz a mulher aí, é a mão invisível do mercado. Na hora que o mercado estiver pedindo negro eu coloco negro. É um tabu que ninguém quer pôr a mão.
PAS – E um dos chefes máximos daquela mesma TV é quem escreve um livro dizendo que não somos racistas. E a prova de que somos, sim, está ali, na mesma TV, todo dia.
JV – É o fim da picada. Todo dia, toda hora. Esse é o triste do brasileiro, que prefere dissimular a realidade do que encará-la de frente. Ele vem com essa conversa aí, e tenta aliciar outras pessoas, de que não somos racistas. Pode até ser que na essência o brasileiro não seja racista, mas as práticas racistas estão postas aí, numa estrutura que se retroalimenta continuamente. E ele não entende isso como uma anormalidade, e é por isso que a moça vem dizer: “Ah, mas tem negro aqui fazendo bolsa, fivela”. Mas, olha, tá errado, não tem na passarela. Se pode fazer fivela, poderia com a mesma propriedade estar na passarela. Aí ela diz: “O problema não sou eu, o problema é o mercado”. Mas o mercado não é um ser invisível e dotado de vontade. O mercado é você. Precisa de um papo desse pra ela cair na real, quem sabe muitos tenham um insight com um caso desses. É bacana. Por isso digo que trabalhos como o de vocês da “CartaCapital”, que ponham o tema na bandeja, são fundamentais, continuam sendo um trabalho de conscientização.
/PAS – Excepcionalmente, a capa da “CartaCapital” desta semana é o Joaquim Barbosa. As revistas também não põem negros na capa.
JV – Não põem. A nossa mídia como um todo não trata esse tema com profundidade e seriedade. A nossa academia torce o nariz. Nenhuma das nossas instituições sociais se mobilizou ou traz qualquer solidariedade – ABI, OAB, magistratura, Ministério Público etc. Se o Ministério Público tivesse chamado meia dúzia para um termo de ajustamento de conduta, já tinha mudado essa realidade no país. Nenhum dos partidos políticos tem qualquer ação objetiva nesse sentido – nem nesse nem em qualquer outro, mas nesse mais ainda. Nenhum, de A a Z, direita, esquerda, centro. As variações religiosas também, não se tem nem padre negro. Os organismos internacionais em regra estão pouco preocupados com isso. Aqueles que teriam como obrigação legal zelar por isso, como BNDES, está mandando tanta grana pra essas empresas… Imagina se ajudassem a pôr essa Zumbi de pé. Dão grana pra ONG da mulher do deputado, então deem pra gente, ajuda a botar de pé. A luta continua sendo solitária, de um grupo de negros, meia dúzia de colaboradores, interessados…
PAS – Mas não é bem assim. Quantos alunos você tem aqui hoje?
JV – 1.800 alunos.
PAS – É menos solitária do que já foi…
JV – Ah, sim, mas estou dizendo pra você que nossa alegria é saber que a vida nos permite, apesar das contradições, mostrar que é possível fazer.
PAS – Como você falou, por mérito de quem resolveu peitar.
JV – Pedro, se nós com todas as limitações conseguimos, imagine governo, Ministério da Educação, BNDES. Já teriam feito há 120 anos, poderiam ter feito muito melhor, com muito mais propriedade, há muito mais tempo. Outro aspecto é que, tudo bem, é uma grande realização, mas no macro é uma gota no oceano. Quando conversamos naquela outra oportunidade, me lembro que falei pra você que a USP tinha quatro professores negros, em 5.400. Nós já fomos pra duas conferências mundiais sobre racismo e discriminação, e continua com quatro. Isso é um termômetro.
PAS – Um termômetro de como a elite paulista é racista até o último fio de cabelo.
JV – Até a medula. No governo Fernando Henrique Cardoso – que é o mais aprofundado conhecedor de temas negros, com tese de doutorado sobre negros – não tivemos nenhum ministro negro. Tivemos Pelé, que foi ministro extraordinário por seis meses. Repare que agora, no primeiro, segundo e terceiro escalão do governo estadual do PSDB, não tem um negro. Mesmo na prefeitura não tem um negro. E só depois de muita pressão que dos 360 desembargadores agora temos um negro.
PAS – Com pressão?
JV – Com pressão. Diga-se de passagem, o Serra teve sensibilidade. Mas às vezes acaba sendo a sensibilidade do Serra, mas não é a do establishment, do PSDB verticalmente. É do governante A, B ou C. Mesmo os três ministros do Lula, o Joaquim Barbosa, não é um plano do partido, no mais das vezes é o Lula que bate o pé, “quero, vai ser assim, pronto, acabou”, contra tudo e contra todos.
PAS – Você acha bom ou ruim o Joaquim Barbosa fazer o barulho que fez?
JV – Ele não fez por querer. Acho que teve uma reação talvez desmedida, mas uma reação frente a um fato ali do trabalho, acidente do trabalho.
PAS – Teve um apoio imenso da sociedade “desorganizada”, pelo menos na internet.
JV – Com certeza. É fruto da seriedade, da postura reta dele. Por outro lado, está se polemizando gratuitamente, porque, antes dele, pelo amor de Deus… Quer mais que aquele Marco Aurélio de Mello, que saía no braço com todo mundo? Sempre houve esse bate-boca lá.
PAS – Falamos tanto da dimensão simbólica, o que você percebe de mudança simbólica no dia-a-dia aqui na escola, entre os alunos, por causa da chegada de Obama? Acredita que vai ter efeitos diretos?
JV – Sabe que tem dois alunos e um professor nossos que estão nos Estados Unidos, no nosso primeiro intercâmbio? Estão chegando por estes dias. Em maio ou junho, chega o pessoal de New Orleans. Conseguimos o primeiro intercâmbio internacional, estamos soltando rojão.
Mas qual seria minha leitura? Acho que nossos alunos viram e veem na possibilidade Obama um reforço da sua auto-estima. Também viram no sucesso do Obama talvez a confirmação disso que estamos conversando, de que nós podemos. Está contribuindo muito pra que compreendam que não existe almoço grátis. Ou seja, Obama chegou porque é bom, e é bom porque foi pra escola e fez a lição de casa. Então descobriram que isso de fato foi uma boa escolha. E os alunos aqui batem boca, “eu quero”, “eu faço”, eles descobriram um espaço de manifestação. A gente fica muito contente e triste ao mesmo tempo, porque os poucos espaços que o negro tem pra falar coletivamente, publicamente, é nos nossos veículos, na “Revista Afirmativa”, no programa “Negros em Foco”. Fora isso, meu amigo, não tem espaço pro negro falar. No mais das vezes quem está sempre discutindo o negro é o outro. Então pra nós é importante a perspectiva de um jovem negro ter voz e utilizá-la, ainda que internamente. E Obama tem também influenciado muito esses jovens a pôr na mesa uma série discussões – conferência de racismo, a própria instituição, mensalidade, se o ambiente está legal, o que está faltando. Estão contestando, cobrando, virando clientes exigentes.
PAS – Na sua opinião Obama está indo bem como presidente?
JV – Pois é, Obama é o tipo do cara que não precisaria fazer anda pra ser “o cara”, em termos de simbologia. Ele representa muita coisa. Mas o que me parece, nas sinalizações, é que ele está surpreendendo. Foi ao Oriente Médio e surpreendeu, veio aqui e tomou uma 51 com Hugo Chávez, e está tudo certo. Ele tem uma capacidade fabulosa de desanuviar ambientes. E mesmo na condução da crise norte-americana não tenho ouvido qualquer crítica muito mais ácida no sentido de ele estar cometendo barbeiragem. Está firme, o povo americano está apoiando, continua sendo um ídolo, a rainha tá assim com o cara [ri].
Conversei com um amigo dos Estados Unidos, ele estava dizendo que elegeram o novo presidente do Partido Republicano, e é um negro. Preciso checar essa informação, mas tenho quase certeza que isso aconteceu. Ele estava dizendo que o maior impacto do Obama nos EUA foi fazer o Partido Republicano colocar um negro na presidência, uma coisa inusitada, imponderada, impensável, irrealizável.
PAS – Se ele fica amigo de Lula, Chávez, Evo, iranianos, vai acabar sendo classificado como do “eixo do mal”, ou de esquerda?
JV – Me parece que ele só tá trocando o porrete de mão. Tanto é que saiu fora da conferência – pelo amor de Deus, como um negro boicota uma conferência sobre racismo? Acho que isso demonstra que é bonzinho, mas não muito. Ou que, pra implementar prioridades não pela força, mas pelo argumento, precisa se apresentar como bom moço. Mas, na hora que estiverem em jogo os interesse americanos, não tenha dúvida, ele tem que ter lado, e vai ser obrigatoriamente com o eixo da força política que lhe dá sustentação. Não tem como estar no meio de uma força política e achar que o cara é bonzinho, que não tem caixa dois de campanha, grupo que vai ganhar as licitações. Gostemos ou não, isso é a essência da política. Se na sustentação dele tiver o cara que quer vender mais aviões ou armas, ele não vai dizer: “Não vamos mais vender armas”. Por outro lado, ele não é o governo dos negros, ele é um governante negro.
PAS – De qualquer modo, vai ser interessante acompanhar a trajetória. Você de perto, às vezes.
JV – Eu só vi ele pela cordinha, quando ele fez o percurso a pé eu estava na cordinha. Mas terça vou estar lá no Departamento de Estado. Pra Hillary Clinton pelo menos dá pra dar um tchauzinho [risos].
[A entrevista se encerra, ele se põe a mostrar a parede cheia de recortes de reportagens sobre a Zumbi dos Palmares em diversos veículos de imprensa. Fala da formatura da primeira turma, no ano passado.] Foram 241 formandos, se juntar com os 120 que vêm agora temos 360. Estamos felizes de formar a segunda turma, mas 360 jovens é o maior número de negros formados em toda a história da América do Sul, em pleno Terceiro Milênio, num país que se diz que é uma democracia racial. Olha que abusrdo. Tem muita lenha pra queimar ainda.
PAS – O legal é que a cada semestre vai aumentar.
JV – É, missão cumprida. Se eu for pro segundo andar, vou feliz.
PAS – Nem pense nisso por enquanto, tem muita coisa pra fazer ainda.
JV – É [ri], estou feliz.