Não eram duas orelhas que o cara tinha, mas tipo dois cones da CET no lugar delas.
Fumava escondido, e fumava tanto que até o branco dos olhos já tava ficando amarelo. Era feio como Chuck Norris teria sido na infância. Um garoto que parecia que tinha ferrugem na cara, que não sorria frequentemente, e que se movia com rigidez cadavérica.
Moleque pequeno, cabeçudinho, que andava sempre olhando para os lados e para trás, como se o perseguissem. Tinha um cachorro vira-latas que o acompanhava aonde quer que fosse, um cachorro branco sujo de nariz vermelho, sugerindo que carregava uma gripe eterna. Meu pai tentou matar seu cachorro com uma balaústra, irritado com sua subserviência e as moscas eternas no rabo fino de gambá.
Mas era meu amigo, um desses amigos com o qual a gente sempre pode contar, que não abandonam a gente nos momentos mais difíceis. Se tinha briga com valentão da vizinhança, e eu resolvia encarar, sempre sabia que dois passos atrás de mim estava ele com uma pedra pontuda escondida na mão, pronto para abrir um crânio com uma pedrada certeira. Os outros garotos meio que fugiam dele na cidade, porque era mais que pobre, mais que feio, mais que esquisito. Assistíamos National Kid na casa de um japa nosso chapa, porque ninguém tinha TV, e ele era o único que não deixavam entrar, assistia da porta da sala.
Um dia, voltávamos de uma caçada, nós dois e mais uma renca, os amigos nisseis entre eles. Eu tinha uma espingarda de pressão Rossi, era o único, uma espécie de Imperador dos Pivetes, todo mundo bajulando. Cortando caminho por uma cerca de arame farpado, no meio de uma fazenda bonita com gado nelore espalhado por todo canto.
De repente, enxerguei um lago de manejo de peixes, bonito como a piscina do Country Club. Não teve jeito: uma montanha de camiseta, bamba, jeans e havaiana velha formou-se imediatamente ali do lado do tanque.
O sol a pino, foi uma redenção. Mergulhei na água cristalina, peixes para todo lado, alevinos ainda. Tentei ir o mais fundo possível. Quando voltei à tona, olhei para a margem do tanque e vi meu fiel escudeiro agarrando sua roupa e fugindo, ele e o maldito cachorro gripado. No lugar dele, um segundo depois, um batalhão de botas de peões, um deles com uma cartucheira, outro com um buldogue preso pela coleira.
Confiscaram as roupas, a espingarda Rossi, e voltamos descalços e humilhados.
Dé foi com o cachorro buscar roupas lá em casa, enquanto ficamos escondidos pelados em cima de uma amoreira.
Que raio de amigo é esse, que foge sem dar o sinal de alerta?
“Eu gritei, tava todo mundo debaixo d’água, ninguém ouviu!”, ele dizia, cabeça baixa.
Um mês para voltar a falar com ele de novo.

publicado originalmente em 26 de janeiro de 2007, às 20h42

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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