a indústria das ruas

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de vez em quando, a academia se desencastela e tenta entender a vida lá fora. e aí resultam descobertas como essas descritas brevemente na “carta capital” 439, de 11 de abril de 2007. cê tá entendendo?

A INDÚSTRIA DAS RUAS

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES
As periferias criam novos modelos de vender música e cinema

No estado do Pará, norte do Brasil, a indústria musical apelidada “tecnobrega” lança cerca de 400 CDs por ano e movimenta uma média mensal estimada de 2 milhões de reais com a venda de CDs e DVDs e 3 milhões de reais com o mercado das chamadas “festas de aparelhagem”. A produção não passa por gravadoras oficiais, sejam brasileiras ou multinacionais.

Na Nigéria, África Ocidental, a indústria cinematográfica denominada “Nollywood” produziu 1.200 filmes em 2004, gera cerca de 1 milhão de empregos e mobiliza 200 milhões de dólares anuais. O montante faz do setor a segunda maior economia local (depois da agricultura, antes do petróleo) e torna a Nigéria a terceira maior indústria de cinema do planeta, atrás dos Estados Unidos e da Índia. Até pouco tempo atrás, não existia nenhuma sala de cinema no país.

Os casos do Pará e da Nigéria têm em comum um grau elevado de informalidade na elaboração e na condução das indústrias, que florescem de modo localizado, à margem das regras da indústria tradicional e da compreensão da mídia dominante. Pirataria é o nome genérico usado para caracterizá-las. Mas um novo conceito se insinua em paralelo, sob a alcunha de “mercado aberto” (ou open business).

É sob esse guarda-chuva que o Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas (FGV) tenta esmiuçar o funcionamento de modelos emergentes como o tecnobrega, Nollywood, o funk carioca ou o engajado movimento anarco-punk colombiano.

Do estudo originou-se o primeiro esforço por dar consistência numérica e estatística a uma dessas economias informais, o tecnobrega, apresentado em 27 de março, na escola de Direito da FGV no Rio de Janeiro. O grupo ecumênico que conduz o trabalho inclui advogados, economistas, antropólogos, sociólogos, gestores públicos, além de reunir pesquisadores de Brasil, Argentina, Colômbia e México.

Ronaldo Lemos, um dos condutores do trabalho, explica objetivos que, à primeira vista, parecem destoar de paradigmas da profissão que abraçou, o Direito. “O que a pesquisa tenta fazer é mostrar que, ao olhar para uma cena como o tecnobrega, precisamos aprender a enxergar em primeiro lugar o que ela traz de inovação, e a partir daí enfrentar a informalidade.”

Ele prossegue: “O fenômeno global pelo qual as periferias se apropriam da tecnologia para produzir a própria cultura, é talvez o fenômeno social e cultural mais importante do novo século. Traz novas visões muito mais complexas sobre contradições que o século XX não enfrentou, como formalidade versus informalidade, centro versus periferia, legalidade versus ilegalidade. O impacto do que está ocorrendo é estético, social, jurídico, político e econômico”.

A pesquisa examina por dentro, pela primeira vez, uma rede produtiva constituída por agentes conhecidos, como artistas, estúdios de gravação, DJs, produtores e difusores em rádio e tevê, mas também por novas categorias como “grupos de aparelhagem” (que somam cerca de 4 mil empregos diretos), “distribuidores informais”, “vendedores de rua” (por volta de 860), “festeiros”.

Na dinâmica do tecnobrega, os artistas gravam músicas em estúdios caseiros e os DJs as tocam em festas por vezes gigantescas, e fartamente incrementadas com aparelhagem de luz, som e computador. Na intermediação entre as pontas, os discos artesanais são disseminados por distribuidores e camelôs, que vendem a caudalosa produção tecnobrega por cerca de 3 reais (o CD) e 4 reais (o DVD). Diante da repressão policial, os camelôs têm comercializado os discos de modo camuflado, dentro de mochilas.

A questão da pirataria está posta, mas por um prisma ainda mal compreendido: segundo a pesquisa da FGV, 88% dos artistas de tecnobrega nunca tiveram contato com a indústria fonográfica oficial. Como não têm contrato com gravadoras nem se filiam às sociedades arrecadadoras de direito autoral, não se pode dizer que seus produtos sejam “piratas”, já que não se trata de cópias não autorizadas de obras originais.

Desligados de gravadoras, os próprios artistas mantêm relação diferenciada com o comércio informal. De acordo com a pesquisa, 59% dos entrevistados avaliam positivamente o trabalho dos camelôs, e 51% vão além: incentivam o comércio ambulante da obra.

Exemplo máximo da nova dinâmica é a Banda Calypso, que rompeu o isolamento regional do tecnobrega e se tornou uma das líderes de vendagens de discos no Brasil. Lançado em fevereiro pela gravadora do próprio grupo, o CD mais recente, Vol. 10, saiu com tiragem oficial de 500 mil cópias. A quantidade é inimaginável para uma indústria fonográfica que de 2000 a 2005 viu a arrecadação cair de 94 milhões de reais por ano para 52,9 milhões de reais.

Joelma, a vocalista da Calypso, também foi além: afirmou que, 15 dias antes do lançamento, foi pessoalmente entregar o CD aos camelôs, para que fizessem com Vol. 10 o que bem quisessem.

De modo análogo funciona a indústria nigeriana de cinema. Na ausência de salas de exibição, a circulação de filmes como Living in Bondage e African Queen se dá via camelôs, em DVDs que custam em média 3 dólares. As primeiras salas exibidoras começaram a surgir de carona na pujança do mercado informal, segundo reporta o economista Bruno Magrani, que fez pesquisa de campo na Nigéria, em companhia do rapper e documentarista carioca MV Bill.

Na apresentação da FGV, o antropólogo Hermano Vianna lembrou que cenários semelhantes já estão consolidados no Brasil. Citou o grupo de forró Limão com Mel, que usa película e helicóptero no registro de shows que depois se espalham pelo País em DVD, exibidos em tevês de botecos de periferia. Para ele, a mídia e as gravadoras tradicionais mantêm um “cordão sanitário” de invisibilidade em torno da produção periférica.

“Nollywood conseguiu construir a terceira maior indústria cinematográfica do mundo a partir do zero, sem incentivos governamentais, sem apoio estrangeiro, sem nada”, diz Bruno Magrani. “Comentei com um produtor nigeriano que a grande maioria dos filmes brasileiros era financiada com incentivos fiscais dados pelo governo, e mesmo assim dificilmente nossos filmes tinham grandes públicos. A sugestão dada foi de uma simplicidade e esperteza impressionantes. Ele me disse: ‘Se o filme já foi pago, por que vocês não vendem os filmes a preços baixos em DVD para o público nacional?'”

Hermano Vianna fez uma provocação durante o seminário que discutiu os resultados da pesquisa: “O tecnobrega é feito em favelas de palafita totalmente desamparadas por qualquer tipo de poder público ou incentivo, e é considerado lixo cultural. O Estado tem uma capacidade pequena de apoiar, mas uma capacidade grande de atrapalhar. O funk carioca foi expulso para as favelas e criou uma cultura de criminalidade forçada pelo poder público, que não considerava aquilo cultura e não considera até hoje”.

Em reação, o coordenador de políticas digitais do MinC, Cláudio Prado, defendeu as indústrias emergentes e abordou a tensão entre legalidade e ilegalidade: “O MinC apóia a transgressão. Nós sabemos que pirata é quem quer muita grana. E quem é que quer muita grana em música? Nem preciso responder, é regra de três”.

Uma das conclusões centrais do estudo é que as novas indústrias culturais criam modelos sustentáveis de negócio, que não dependem de geração de receita por direitos autorais e de propriedade intelectual e são, portanto, “abertas”. Assim, colocam em xeque os princípios sobre os quais a indústria cultural se estruturou, ao mesmo tempo que constroem modelos próprios de sustentabilidade.

Ronaldo Lemos resume o atual momento citando o pesquisador turco Henri Langlois, que em 1969 afirmara que o cinema só existiria de fato quando as periferias se apropriassem da linguagem e começassem a contar a própria história. Pois parece que é chegada a hora, ainda que prevaleçam, junto às chamadas elites, frases do tipo “isso não é cinema” ou “isso não é música”. A novidade é que os artistas de periferia não se mostram nem um pouco interessados nas opiniões e nos dogmas dos antigos tutores da cultura.

*O jornalista viajou ao Rio de Janeiro a convite da FGV.

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