“não há guerras só no mundo externo, esse lugar objetivo em que as coisas ocupam espaço e cumprem as leis da natureza, independentemente da nossa vontade. há também os conflitos internos, que se travam dentro de nós, dividindo a nossa vontade ao meio. o campo de luta é o espírito, ou a mente, tanto faz.”
o trecho acima foi extraído de “elite da tropa” (objetiva, 2006), escrito pelo antropólogo e cientista político luiz eduardo soares em parceria com os policiais militares andré batista e rodrigo pimentel. o personagem “de ficção”, um policial de elite do bope (batalhão de operações policiais especiais), traça tais reflexões ao descrever o que sentiu, consigo próprio, quando de sua chegada à vida universitária, ao curso de direito na puc do rio de janeiro.
“foi uma guerra campal”, “a praça de guerra era eu mesmo”, ele conta. e vai enumerando as células em guerra civil que jogavam granadas uma nas outras, dentro de seu próprio organismo. “eu sabia que seria foda fazer o meu trabalho à noite, numa favela; pisar, de madrugada, no fio da navalha entre a vida e a morte; e passar a manhã na puc, ouvindo neguinho falar mal da polícia.” “eu sabia que aquela não era a minha turma.” “no fundo, pensando na puc, eu me sentia traindo meus companheiros de corporação.”
enquanto são paulo vive uma “inesperada” guerra campal, talvez seja nutritivo dar ouvidos aos conflitos internos do policial “ficcional” do livro “inventado”, conhecer o furor interior do cara que, sendo policial e sendo negro, não consegue se achar no direito de cursar direito na escola dos ricos brancos do outro lado da linha de fronteira da guerra que ele combate feito falcão da “legalidade”.
esse policial que “quer”, mas “não quer” estudar é como o rapper que luta para existir livre da pecha de bandido (não é nada à toa que luiz eduardo soares primeiro escreveu um livro com dois “meninos” do rap, mv bill e celso athayde, e agora repete o mesmo com seus duplos opostos – e idênticos -, dois policiais de elite que se auto-intitulam “feras profissionais”, a seu serviço, cidadão, cidadã). ele é como o índio boliviano que cometeu a audácia de tentar ser presidente de república. é como o cara negro que ganhou sua cota social na faculdade e tem de encarar frente frente a comunidade branca e hostil que não o quer ali, em seus terreiros macumbeiros de pretensos “privilegiados” “hereditários”. é como a mulher que guia no trânsito feroz de são paulo nervosa por não querer ouvir o grito “só podia ser mulher!”. é como o cara gay que diz que já aprendeu a contornar os próprios preconceitos e homofobias, mas ainda assim se conserva enrustido dentro do armário. é como o cantor popular que move multidões no pulso de sua música, mas treme feito geléia diante de um “intelectual” o xinga de “brega”, “cafona”, “alienado”. é como o cidadão pobre que recebe pela enésima vez (e de modo mais explícito que nunca) a cusparada na cara: a acusação de que seu voto é – sempre, sempre, sempre – errado, burro, ignorante, matéria orgânica destinada à lata de lixo.
nisso, o policial da puc é idêntico a esses & tantos outros de seus pares apartados uns dos outros, e por isso é tão bom ouvir a sua voz, enquanto a batalha campal se desenrola ali fora (ou melhor, cá dentro). o que ele está dizendo é o seguinte: a cidade sitiada que você está vendo lá fora é a mesma cidadela aprisionada que você está vivendo aqui dentro, dentro de você. se você estiver em guerra civil consigo, então automaticamente o mundo estará em guerra civil lá fora, e será sempre assim. e você olhará para o caos lá fora e culpará os “marginais”, ou os “policiais” (a eleição é a gosto do freguês) – e continuará não entendendo nada, não conseguindo entender os porquês de tanta selvageria na política, na polícia, na cadeia e nos campos de futebol.
por quê? porque você não conversa com você, porque você não quer escutar a voz que vem de dentro e grita calada, agrupada a todas as (nossas) vozes, iguais à sua, resultando na guerra civil “lá fora” (ou “ali fora”, já que o “lá” já está ficando ultrapassado).
você = eu = nós.