cantar “com” fé eu vou

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sergio mendes, jorge ben… se o compasso é falar de partido alto, não é possível deixar de fora o tim maia, certo, mano? então dá-lhe que dá, filosofia “racional” na “carta capital” 390, de 26 de abril de 2006, contra quais tipos de “fé” você tem preconceito, você tem preconceito de quê?


CANTAR COM FÉ EU VOU
A reedição de Tim Maia Racional traz à baila a mistura entre MPB e religião

Por Pedro Alexandre Sanches

A mais lastimosa obra-prima do cantor e compositor Tim Maia (1942-1998) jamais foi reeditada, nos 32 anos que se seguiram à edição original. Reaparecido só agora numa versão oficial em CD, o primeiro volume de Tim Maia Racional traz consigo uma questão espinhosa e quase nunca abordada abertamente: a mistura entre música popular e conversão religiosa.

Em 1974, Tim havia se agregado à doutrina Racional Superior, pregadora da origem extraterrena dos seres humanos, a partir “da resina e da goma”. Em dois discos produzidos sem apoio da indústria fonográfica, ele fez proselitismo direto da fé recém-adquirida, em versos como Vamos entrar em contato/ com os nossos irmãos puros, limpos e perfeitos, eternos, do supermundo da planície racional. Emendava com um pedido com jeitão de ordem, para que o ouvinte lesse o livro Universo em Desencanto, que explicava (ou ao menos tentava) a filosofia racional.

A conversão repeliu a maioria dos fãs e o lançou num período de ostracismo, que foi breve, pois logo o próprio artista abandonou a organização, passou a maldizê-la e nunca mais quis saber do trabalho musical concebido sob aquele círculo de influência.

Mesmo à revelia do autor, o culto a Racional atravessou as décadas, em sebos de discos de vinil e, depois, em CDs piratas. O culto, dessa vez, relevava as controversas profissões de fé das letras, em prol da música de Tim Maia, carregada como nunca, naquele momento, de altos teores de soul, funk, música brasileira e talento intuitivo.

“Se a questão religiosa tivesse mesmo inviabilizado o disco, ele não teria chegado aos dias de hoje. O vinil é vendido a 500 reais, tenho de acreditar no poder que essa música tem, mesmo prezando valores que não são compartilhados pela maioria das pessoas”, argumenta João Marcello Bôscoli, um dos presidentes da gravadora Trama, que foi autorizada pelo espólio do artista a relançar o petardo convertido de Tim.

Embora seja o mais célebre, esse não é caso único. Concebido num hiato dramático da ditadura militar (o governo Médici), ele foi contemporâneo de outras experiências de conversão, tanto quanto obras-primas da MPB da época.

Os discursos soavam às vezes complexos e embaralhados, mas a tenacidade musical parecia mais aguçada que nunca. Enquanto Tim se tornava “Racional”, Raul Seixas confabulava com a Sociedade Alternativa, orientadora do álbum Gita (1974), e Jorge Ben se embrenhava em alquimia e filosofia medieval no extraordinário A Tábua de Esmeralda (1974).

Clara Nunes e Maria Bethânia inoculavam a influência do candomblé na música. Na esfera católica, mais institucional no Brasil, Roberto Carlos ancorava uma primeira fase de sucesso religioso, com Jesus Cristo (1970), A Montanha (1972) e O Homem (1973).

Num outro pólo, quem não interligava música e fé religiosa experimentava outras modalidades de conversão: ao “barato total” do hedonismo e do culto às drogas (casos dos discos do grupo Novos Baianos e de Refazenda, de Gilberto Gil, e Lugar Comum, de João Donato, ambos de 1975), ou ao experimentalismo cerebral e hermético (Araçá Azul, de Caetano Veloso, e Ou Não, de Walter Franco, os dois de 1973).

Tampouco é trama de época esse tipo de flerte. Hoje, se até Roberto Carlos anda arrefecendo o ímpeto católico, são as vielas evangélicas as que mais atraem a combalida fé na música popular brasileira. Pouco antes de morrer, em 2000, Baden Powell, totem da bossa nova e do violão brasileiro, desenvolvera relação conflituosa com os emblemáticos afro-sambas que criou nos anos 60 com Vinicius de Moraes. “Não digo mais saravá. Posso tocar o Samba da Bênção, mas não falo saravá, porque é um louvor a Satanás”, afirmou, em 1999.

A mesma Trama que ora recupera Tim Maia Racional aposta no talento de Silvera, cantor e compositor de rhythm and blues e artista próximo dos Racionais MC’s (que, aliás, extraíram o nome de batismo da admiração pela música de Tim Maia).

Músico da periferia de São Paulo, onde a cultura evangélica se espalha até mesmo pelo hip-hop (é o caso, por exemplo, do grupo Apocalipse XVI), Silvera desdobra-se entre um trabalho-solo “secular”, pela Trama, e o grupo gospel FLG (ou Feeling), desconhecido fora das hostes evangélicas, mas de alta penetração dentro delas.

Bôscoli defende a dualidade: “Silvera já fazia gospel antes de fazer música secular com a gente. Morava num casebre, era arrimo de família, encontrou um eixo na religião. Passou a querer escrever sobre sexo, sobre viagens, e para isso a questão monotemática do gospel é restritiva”.

O diretor afirma que a separação entre as veias religiosa e secular é decisão do artista, e não da gravadora. Essa seria uma peculiaridade brasileira, se levar em consideração, por exemplo, a música norte-americana, em que artistas como Aretha Franklin, Al Green e Marvin Gaye sempre fizeram conviver dentro dos mesmos discos convicções profanas e sagradas.

Wanda Sá, cantora histórica das fileiras bossa-novistas, tentou experiência semelhante à deles ao lançar em 2004 o disco independente Jesusmania, com arranjos bossa nova de Roberto Menescal. “Acabei trabalhando com uma faixa pequena de público. Os evangélicos também têm preconceitos, gostam da música evangélica, estranham a bossa nova. Para ele, é como se Jesusmania fosse ainda um disco secular”, diz.

É via de mão dupla: “Eu colocaria temas religiosos num disco normal, mas acho que não é legal, assusta as pessoas. Há preconceito também por parte de quem não é religioso. Fico na dúvida de fazer outro disco assim, dá pena usar as músicas e não ser ouvida”.

Wanda aborda o tabu de se confessar religiosa dentro da música: “Não fica muito bacana contar. Uma vez fui a uma igreja em Londrina (PR) e o pastor pedia para eu não dizer que sou cantora. Se eu fosse traficante, tudo bem, mas não vejo nada de que precise ter vergonha”, avalia.

Dessa praia é também Baby do Brasil, ex-Baby Consuelo, ex-integrante dos hedonistas Novos Baianos, ex-adepta, nos anos 80, da filosofia “Rá”, do guru Thomas Green Morton, e ex-peregrina no Caminho de Santiago. Hoje evangélica, ela assim inicia uma das canções do álbum independente Exclusivo para Deus (2000): Não importa o que vão pensar de mim/ tô nem aí/ eu quero é Deus.

No início do mês, Baby estava na Califórnia (EUA) fazendo shows “seculares e em igrejas”, segundo uma assessora. Tentando romper o tabu que mantém convicções religiosas dentro do armário da MPB, a cantora promete testar, no próximo disco, um cross-over entre as duas tendências.

Às voltas com Tim Maia e Silvera, João Marcello Bôscoli tenta avaliar as motivações de quem envereda pela religiosidade também em forma de música: “O legal é a entrega. Muitas vezes são caras que estão desesperados, fora do eixo e, por causa do álbum que fizeram motivados pela conversão, acabam reencontrando o eixo”.

Talvez fosse o caso de Tim na fase Racional. Consta que aquele foi para ele um raro período de abstinência química. Por outro lado, Tim adentrou no fanatismo de pregar e vender livros e discos nas ruas, obrigar músicos e parentes a só se vestirem de branco e se privar de quaisquer bens materiais.

Presente por entre uma enxurrada de proselitismo, o desespero de que fala Bôscoli enriquece as músicas “racionais” de Tim, como no comovente grito por socorro em forma de música soul chamado Bom Senso: Já fiz muita coisa errada/ já pedi ajuda/ já dormi na rua/ mas lendo atingi o bom senso/ a imunização racional.

Em 1982, pensava de modo radicalmente avesso, como explicou no Jornal do Brasil: “Entrei numa lavagem cerebral, acabei escravo daquilo, apareci no Flávio Cavalcanti todo de branco, como regenerado, magro, crente, quase fui destruído como artista”.

É que, no balanço das contradições, Tim Maia pertencia ao seleto elenco de artistas dispostos a expor abertamente ao público não só certezas e convicções, mas também erros e fragilidades. A música ora os acompanhava, ora ia na direção oposta, e Tim Maia Racional sobrevive como testemunho vital disso.

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