quer entender em que grau as coisas andam todas se misturando? então tente me acompanhar – admito, é meio complexo, cheio de saliências e reentrâncias…
a dupla tetine nasceu há cerca de uma década, na confluência das influências de bruno verner (antes roqueiro mineiro) e de eliete mejorado (antes atriz paulista de teatro). a partir da formação de um casal que é sui generis sob qualquer ângulo que se queira apalpá-los, edificaram uma parceria musical-performática-visual-poética-comportamental-política-sexual que ganhou esse nome, tetine. a rota discográfica começou em 1996, com o disco “alexander’s grave”, cultivado no underground paulistano e em doses cavalares de experimentalismo (talvez) antipop.
a hoje já extensa obra que os dois vêm edificando abrange trilha sonora para espetáculo de dança (“creme”, 1998), pop rock eletrônico romântico e anti-romântico (“música de amor”, 1999), auto-exílio em londres (que perdura até hoje e passou a ganhar tradução em cd em 2001, com “olha ela de novo”), parceria com a multi-artista francesa sophie calle (“samba de monalisa”, 2002), sincronias irônicas com o electroclash (“men in uniform”, 2003).
tudo já estava amplamente misturado, e, você diria, o afastamento do brasil natal seria progressivo e contínuo (afinal, mesmo desde aqui as letras em português rareavam, ou eram cantadas com fluência menor que a do teatro musical em inglês que mais caracterizava a dupla). pois sim.
deu-se que, não mais que de repente, tetine transbordaram e se apaixonaram por… funk carioca. a curva de volta à origem se dá num ponto parado no ar. de uns tempos para cá, bruno e eliete
a) têm falado sobre (e tocam) música brasileira numa rádio londrina (a resonance fm, no programa “slum dunk”)
b) chaparam no som das funkeiras do rio de janeiro,
c) têm discotecado funk carioca em baladas londrinas e européias (e, mais recentemente, até em miami, mãe do miami bass e avó do funk carioca),
d) fizeram a curadoria de uma celebrada coletânea de funk carioca, pelo selo local mr. bongo (“slum dunk presents funk carioca”, 2004),
e) e… acabaram lançando um disco pelo selo independente paulista bizarre, dedicando-se prioritariamente ao funk carioca, cantado em português!
“bonde do tetão”, recém-lançado (mas mostrado aqui em première no ano passado, durante o festival “sonar”, em que eliete causou espécie – acredite – porque cantou sem camisa, com os seios expostos), inverte toda a história do tetine, sob a égide de electrofunks como “safadinha (melô do lingüição)”, “betty faria (eu tô aberta)” e “melô do carrão”. o conhecido ideário de contestação sexual (em que cabem inversão de papéis, travestismo, múltiplas variáveis sexuais, letras investigativas de temas tabu etc. etc. etc.) cai de bocão na vocação explícita, chula e agressiva de artistas brasileiríssimos como deise tigrona, mr. catra, tati quebra barraco, bonde do tigrão, mc serginho & lacraia, entre muitos outros [embora até hoje nunca absorvido pela indústria fonográfica nacional, o gênero persiste e só faz crescer no brasil, há ao menos 15 anos].
transcrevo a partir daqui uma entrevista por e-mail com bruno e eliete, feita no contexto da reportagem “a vulgaridade em alta”, da revista “carta capital”, mas que se estendeu e rendeu outros desdobramentos, discussões e promessas de reflexão. eliete e bruno se revezam nas respostas às minhas perguntas, mas em dado momento já não consigo mais saber se quem respondeu foi um ou outro, ou se então foi bruneliete, essa entidade-multitudo-onde-tudo-se-mistura. não me atrevi, até este momento, a traçar alguma análise autoral sobre os significados dessa misturança toda e sobre as implicações de “bonde do tetão”, aqui ou além-mar. isso fica, prometo, para os próximos capítulos. eles com a palavra, agora.
*
pas – por que dois brancos brasileiros de classe média de repente se identificam com (e passam a divulgar, em português, na inglaterra e na europa em geral) o funk carioca, um gênero vindo de classes sociais desprivilegiadas e que até há algum tempo ficava em certa medida confinado em seus próprios redutos?
eliete – o funk me pegou na primeira batida, desde a primeira vez que ouvi. a atitude, a abertura, o ritmo, a disposição e o discurso do funk são elementos que nunca ouvi e vi reunidos na musica eletrônica brasileira. arrepiou minha espinha desde a primeira vez. identifiquei imediatamente com meu processo criativo no tetine. me identifiquei com a musica. tinha tudo o que eu estava procurando sonicamente. não sou do morro, sou branca, vim de classe média paulistana da zona leste, bem longe do rio. estudei em escola pública a vida toda. e me identifico completamente. não tem cura.
pas – detratores do funk carioca acusam excessiva vulgaridade e precariedade de suas letras e músicas. o que vocês acham desses aspectos do funk carioca? ele seria veículo de uma vulgarização de costumes no brasil, e, por conseqüência de trabalhos como o do tetine, até mesmo na europa e no mundo?
bruno – na minha opinião o funk não vulgariza a cultura brasileira de modo algum. pelo contrário, produz uma celebração dos nossos costumes, do nosso jeito de namorar, da nossa sexualidade e do nosso senso de humor como raramente foi visto em outro tipo de música. o que acontece, para mim, é que existe um moralismo bravo no brasil, além do fato de ter que ser “chique”, branco e erudito para representar o brasil mundialmente. acho que esse tipo de mentalidade faz parte da falta de auto-estima do país e da nossa subserviência em geral. o funk é linguagem de rua, é comportamento, é vivo. não é subserviente. o funk nao precisa de mim, de você ou de nunhum antropólogo para existir como cultura e explicar seus fundamentos. ele já é! eu acho as letras de funk carioca geniais. para mim está tudo ali, de forma simples, na cara, e ao mesmo tempo altamente sofisticada. em bom e alto português. ser direto é algo muito difícil. não tem “small talk” na parada. então, se ser sincero e direto significa ser vulgar, acho que o tetine também se enquadra na mesma parada.
pas – os europeus se identificam com funk carioca apesar das letras “vulgares”, ou também por causa delas?
bruno – os europeus não entendem as letras. as pessoas se identificam com o beat, com a crueza, com a energia, com o vocal, com a mixagem. o funk é old school electro de primeira, foi além do miami bass e se transformou em algo muito poderoso, assim como dance hall ou o “grime”. é uma forma de música eletrônica que tem muito valor, como qualquer outra! o pessoal que ama ‘grime’ aqui se identifica na hora quando estamos tocando, é impressionante. o mesmo acontece com o povo do electro que está em busca de uma coisa mais fashion. não deixa nada a dever aos últimos electroclashers ou ao povo do hip hop da pesada.
pas – algo mudou na sociedade brasileira, até mesmo para permitir o interesse de artistas como vocês, que são cultos, intelectualizados, apegados a técnica e tecnologia? por que bruno e eliete não haviam no passado se identificado com músicas populares criados em geral por artistas também excluídos, como, por exemplo, axé music, pagode, sertanejo, iê-iê-iê etc.?
eliete – jesus!!! eu sempre amei a perla. jane & herondy, vanusa, ronnie von, marvin gaye, michael jackson… sinceramente. no meu sangue corre fm. dublo “a estrada do sol” desde que tinha 7 anos… sou do povo, nunca tive esse problema de ter vergonha do que eu gosto. vim do tatuapé, minha mãe é espanhola e ouvia joselito e juanito valderrama quando era pequena. essa foi a minha formação… adoro o exagero! nina hagen, kate bush e suas performances me enloqueceram. assim como eu amo laurie anderson e alison goldfrapp, que são formalistas natas, mas completamente humanas ao mesmo tempo. o tetine sempre esteve em busca do humano. seja na histeria atonal do “alexander’s grave” ou no funk do “bonde do tetão”. o joelho da goldfrapp treme quando ela solta aquele trovão que é a voz dela. respeito muito!! quando você tem nariz, boca, peito, quadril grande e 1m75, não dá para segurar, deixa o grande sair… e o grande é a minha profunda identificação com os altos brados retumbantes do funk que expressa exatamente o brasil de hoje e as minhas raízes. a garota de ipanema está morta e enterrada. para mim hoje a garota é da cidade de deus, e ela se chama deise tigrona.
pas – como vocês sentem que os funks explícitos do tetine têm sido recebidos, de uma forma geral, por quem já os ouviu na europa? e no brasil?
bruno – aqui em londres temos um publico que já segue a gente. as pessoas não entendem as letras, mas entendem a música completamente. o “bonde do tetão” tem uma energia quase de punk rock, mas com batida de old school electro. quando a gente toca, o povo fica louco, quer participar, quer ficar com a gente. temos tocado em muitos clubes legais aqui e vamos tocar junto com o asian dub foundation, que tem um público ultrafiel e radical. acho que a gente está começando a trafegar por outros universos, o que antigamente nao fazíamos. isso tudo tem sido incrível e muito revelador para a gente. no brasil, achei que foi superlegal quando tocamos no “sonar”. mas as pessoas ainda não conheciam as músicas direito, porque o disco não tinha sido lancado. teve muito comentário machista de outros artistas (belive me) sobre o peito da eliete, mas isso não vem ao caso (hhehhhehhe, já vindo). adoramos uma manchete que mandaram aqui: “nua do tetine é alucinada por funk carioca”! olha isso, letra de música de tão bom.
pas – vocês já experimentaram traduzir para os europeus a linguagem do funk carioca? se sim, como eles reagem ao tomar conhecimento do imaginário das letras?
tetine – sim, quando fazemos show cantamos versos em inglês também, e depois o povo sempre pergunta o que significa quando está em português. o bruno, quando tá fazendo mc, fala um monte de coisa em inglês alternando com o português, quando ele tem que cantar. o povo sabe do que a gente está falando. a reação dos europeus é na maioria das vezes ótima, sem pudor e moralismo. a gente deixa claro desde o início que não é bossa nova!!!! os que estranham geralmente não gostam da música e pronto. mas aqui tem o grime, que é tão forte quanto os proibidões, tem dizzy rascal, que está fazendo o maior sucesso. acho que a crueza das músicas faz parte de tudo que a gente está vivendo agora. passamos o filme da denise garcia [o documentário “sou feia, mas tô na moda”] aqui, foi lindo, histórico, estava lotadíssimo! world première de um longa sobre funk carioca em londres, muito bizarro, né??!!! não passou em nenhum lugar antes e merece passar em todos os cinemas aí no brasil, para tirar de vez o estigma do funk como uma música que é menos que o samba ou a bossa nova para a cultura brasileira, entende? o filme da denise traduziu sem firulas a cena de funk, sem nenhum moralismo!
pas – vocês sempre fizeram de sexualidade um dos temas centrais nos discos do tetine, mas ela nunca esteve presente de uma forma tão explícita quanto no “bonde do tetão”. vocês diriam que a distância da terra natal os impulsiona a essa postura mais direta e corajosa? o “bonde do tetão” existiria se vocês estivessem no brasil?
tetine – o tempo redimensiona tudo, mais ainda quando você está inserido em outra cultura. o seu grau de questionamento das coisas, do seu background, das suas escolhas na vida etc. fica agucadíssimo, sempre, 24 horas por dia. e claro que isso acontece com a gente morando fora do brasil. acho que o sexo e o discurso todo por trás do “bonde do tetão” é uma conseqüência dos nossos trabalhos anteriores e de coisas que aconteceram com a gente e que nos chamaram atenção como artistas. isso inclui o andamento das nossas vidas pessoais fora e dentro do brasil, nossas escolhas nos últimos cinco anos, nosso envolvimento com funk, electro e black music daqui, nossa profunda admiração pelos artistas do funk carioca… é uma vontade de gritar para o mundo que tem muito mais coisa no brasil do que a vontade de ser “chique” tipo exportação para gringo ver, que é a regra em geral quando se fala em música brasileira no mundo. é difícil dizer se o “bonde” existiria se morássemos no Brasil, não sei nem se o tetine existiria mais… o nosso trabalho sempre foi sobre tirar os nossos próprios tapetes e ver onde a coisa pode dar.
pas – a visita do tetine aos modos mais explícitos do funk carioca é feita com total espontaneidade? ou em algum momento vocês sentem algum pudor, desconforto ou constrangimento de proferir certos termos mais chulos, de abrir tanto questões sexuais, de “balançar o popozão” e “descer até o chão” no palco etc.?
tetine – acho que é feita com espontaneidade, senão não teríamos gravado. se achássemos que era uma coisa forçada não colocaríamos no disco. era tudo urgente. não aparamos o conteúdo hora nenhuma, tipo abaixando na mixagem ou trocando as letras. no “bonde” balançamos o popozão nos nossos termos. é a nossa versão dos fatos, do nosso jeito, no nosso ritmo e com a nossa história. e por isso é um trabalho autoral e não uma paródia do funk carioca. não temos intenção de parodiar o funk porque está na moda. nada contra quem faz isso, mas não é essa a nossa praia. o nosso envolvimento com o funk é de amor, é de admiração, é político no sentido sexual e musical, é pelo beat, é pela relação com kraftwerk, é pela re-invenção, é pelos samplers. o “bonde” é o bruno e a eliete. e o “slum dunk presents funk carioca” é o jeito do tetine ver o funk.
pas – “bonde do tetão” é uma brincadeira, um projeto especial, um momento de transição? ou aponta diretrizes novas para o futuro musical do tetine?
tetine – o “bonde” é um momento de celebração, de declaração de amor. certamente aponta para o futuro do tetine!!!