carta capital 347, 22 de junho de 2005. ancorado nos mais novos lançamentos de pato fu e do f.ur.t.o. (a nova banda de marcelo yuka), conversamos um pouquinho sobre estratégias para sobreviver em meio às crises, aos desertos de idéias, à apatia geral dos acomodados. para quem já leu, tem umas “bonus tracks” lá ao final do texto, hehehe: várias frases do articuladíssimo e inteligentíssimo marcelo yuka, que ficaram de fora da reportagem por falta de espaço, por não encaixarem perfeitamente no texto ou por caprichos das leis aleatórias naturais de murphy & cia.

SOBREVIVENDO NO CAOS

Por Pedro Alexandre Sanches

Nos anos 90, Marcelo Yuka liderou O Rappa, uma das novas bandas brasileiras que mais souberam conciliar prestígio e rentabilidade. Em 2001, ele ficou paraplégico após ser baleado numa tentativa de assalto no Rio; o episódio o desestruturou, precipitou sua saída do grupo, tornou incerto o prosseguimento artístico do mais hábil e militante letrista da geração 90.

Em termos simbólicos, algo parecido acontecia com a própria indústria fonográfica, que na virada do século vivia uma colossal (e ainda não superada) crise, a bordo de pirataria, avanço da internet, inabilidade administrativa, mudança global de modelos tecnológicos e políticos.

Mesmo à beirada de ser sugado pelas crises, Yuka formou uma nova banda, o F.Ur.T.O. (ou Frente Urbana de Trabalhos Organizados), começou a trabalhar de modo independente num possível futuro disco e, algum tempo depois, foi chamado pelo executivo Alexandre Schiavo à diretoria da Sony Music, para discutir um possível novo contrato.

Yuka relembra a cena, usando o verbo no presente: “Chego lá e falo que não vamos fazer a maioria dos programas de tevê, que o disco não tem a priori apelação radiofônica, que o texto é meio atípico para o rádio, que a banda nem está pronta, que precisamos de um estúdio… Era como dizer ‘não me contrata’. Mas o cara quis assim mesmo”.

Schiavo, hoje presidente da Sony & BMG (resultante da fusão com a BMG, também em contexto de retração e crise da indústria), confirma os termos usados por Yuka: “Ele realmente falou isso tudo, mas aceitei o risco de fazer um trabalho diferente e paciente. Afinal, temos que ousar, experimentar novos canais e alternativas”.

Pois o disco do F.Ur.T.O., Sangueaudiência, sai agora ostentando um afiado e fortíssimo discurso musical e ideológico, como demonstram a crítica direta à alta sociedade acuada de Ego City ou a reprodução de trechos de discurso de João Pedro Stédile, líder do Movimento dos Sem-Terra, que encerra o CD.

Mais até que a vontade de potência e a sobrevivência artística de Yuka, o conteúdo impactante de Sangueaudiência simboliza com justeza dramática um sistema fonográfico que está todo em xeque – e que tenta se mover dentro da crise, como atesta o ensaio de discurso ousado do presidente da multinacional e como pressionam as idéias de Yuka, mais indignadas (ou “panfletárias”, de acordo com certos narizes torcidos) que nunca.

“É mais fácil me tachar de panfletário. Talvez esse posicionamento incomode até mesmo quem produz arte. Um artista é um ativista cultural, é um cidadão amplificado, ampliado. Por que não fazer? Quando falamos do MST, estamos deixando de fazer um nicho de shows que talvez seja o que hoje mais banque os músicos do Brasil, que é o das feiras agropecuárias”, Yuka equaciona escolhas ideológicas e riscos.

O grau de autonomia de que ele desfruta na gravadora é, no entanto, fruto de um processo que passa pela crise musical. Seu grupo investiu dinheiro próprio na construção de um estúdio e na produção, a princípio independente, do CD.

Parecem se distanciar os tempos de contratos cheios de regalias entre gravadoras poderosas e artistas com potencial lucrativo, e Yuka descreve a travessia: “É um momento de passagem. Mudança dá medo no princípio, mas ela vai se alojando. E é favorável, muito democrática, a mudança que o mercado cultural está sofrendo”.

O que ele relata remete a um contexto maior de transformações na indústria musical local – e que é vivido de forma especialmente intensa por sua geração, que despontou nos anos 90, num mercado ainda aparentemente pujante, e recebeu de frente a atual crise de modelos.

Caso curioso é o da inventiva banda Pato Fu, que também chega à praça com novo disco, Toda Cura para Todo Mal, afiliado à mesma gravadora do F.Ur.T.O. Em 2001, o Pato Fu se despedira da gravadora em que se firmou (BMG), e amargou um contrato abortado com a EMI, que então recebia em sua presidência Marcos Maynard, executivo notório por intervir nos trabalhos dos artistas que controla com idéias próprias – e, às vezes, alienígenas às obras dos artistas.

Após idas e vindas, o grupo acabou optando pela produção independente do que viria a ser o divertido Toda Cura para Todo Mal. Fundaram um selo próprio (Rotomusic) e acabaram negociando um contrato de licenciamento, distribuição e divulgação pela Sony & BMG.

Comemorando a liberdade artística que o novo modelo propicia, o líder e compositor John Ulhoa também expõe os percalços dos novos tempos: “Ficamos três anos bem fora das rádios e tevês, temos tido menos shows. A gente tem menos dinheiro, isso é evidente, mas ganhamos o suficiente, e temos o privilégio de ter construído uma estrutura”.

A cantora de frente do grupo, Fernanda Takai, descreve o percurso e o que ajudou a permitir a sobrevivência do Pato Fu: “Se não tivéssemos construído nossos aparatos próprios ao longo dos anos, a gente hoje estaria meio perdido. Sabíamos que tínhamos que ter editora, montar estúdio e tal, só não sabíamos que estava tão próximo”.

Caso parecido é o de Zélia Duncan, que mantém contrato com a Universal (pelo qual lançará em julho Pré-Pós-Tudo), mas fundou um selo próprio para veicular trabalhos que não se ajustassem aos propósitos comerciais da gravadora – como foi caso do corajoso Eu Me Transformo em Outras (2004), que vendeu cerca de 30 mil cópias.

“Na ocasião, queriam que eu fizesse um disco ao vivo, e eu queria fazer o projeto do meu coração. Propus fazer à parte, não queria um embate para impor meu contrato. Eles toparam. A obsessão de abrir novas frentes tem me dado frutos, já não me assusta tanto a idéia de ficar sem gravadora”, diz Zélia.

Mesmo quem permanece exclusivamente sob as asas da indústria demonstra a necessidade de reinvenção em anos recentes. Nesse caso se encontra o grupo Skank, que se mantém na mesma Sony desde 1994, já atingiu vendagens superiores a 1 milhão de cópias e hoje comemora os 120 mil exemplares consumidos da coletânea Radiola.

Diz o líder Samuel Rosa: “A gente continua interessante para a gravadora, que nos dá o básico para gravar, lançar divulgar. Gozamos de certo conforto, de autonomia. Talvez ter dito certos ‘nãos’ tenha nos salvado, garantido certa sobrevivência ao Skank”.

Diante de uma proposta de rever sua própria (e jovem) obra num Acústico MTV (“nas internas, a gente chama esses projetos de ponte de safena”, afirma Samuel), a banda peitou o “não” – e iniciou um processo de reinvenção com os consistentes Maquinarama e Cosmotron (esse, com cerca de 200 mil cópias vendidas, foi um dos melhores resultados comerciais da Sony em 2003).

A transformação tem sido quase regra para a geração 90, com variações de caso para caso. A Nação Zumbi, por exemplo, se aninhou numa independente de porte, a Trama, como conta o músico Lúcio Maia: “A Sony tinha, não sei se ainda tem, um pensamento majestoso, com muito dinheiro para coisas que não eram tão importantes, como quartos de hotel. Rolavam alguns cabrestos, imposições. A Trama nasceu na antítese desse raciocínio, tem outro conceito de trabalho”.

E há quem tenha partido para a independência total, como Chico César, que se renova com um projeto totalmente desvinculado de gravadoras. Pelo selo próprio Chita, lançou Compacto Simples, com apenas duas músicas e preço reduzido. A autonomia rendeu o discurso ácido e irônico de Odeio Rodeio, composta com Rita Lee: “Odeio rodeio/ e sinto um certo nojo/ quando um sertanejo/ começa a tocar/ eu sei que é preconceito/ mas ninguém é perfeito/ me deixem desabafar“.

Cada um a seu modo, todos parecem atestar certa razão do discurso “panfletário” de Yuka, que assim encerra a questão: “Estamos requerendo nossos direitos, com um poder crítico que não tínhamos. Tenho 39 anos, não nasci com liberdade de expressão. Isso é feliz, é algo para comemorar”.

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bônus: marcelo yuka fala

os pobres & os ricos
“o único colégio particular que tive foi o pré-vestibular. meu pai pagou, eu fui estudar em colégio de bacana. cheguei lá e entrei em completa depressão, todos tinham ido à disneylândia, todos pegavam a praia no mesmo lugar, todos se vestiam de uma maneira diferente de mim, tinham gírias diferentes. bessa época é que digo que aprendi a ler mesmo. aprendi a ler com raiva.”

a favela & a mídia
“a sociedade gosta de violência. existem várias iniciativas populares positivas nessas comunidades estereotipadas como violentas, mas a mídia e sociedade em geral só querem ver e só estão aflitas com os absurdos. um vai calando o outro, em uma semana já se esqueceu da chacina de queimados, já tem outro massacre. só essas comunidades sentem o peso social disso. se uma pessoa branca, bem nascida, é vítima de um crime, isso tem mais repercussão que as mortes de centenas de milhares de pobres que são vítimas da violência há muito tempo. aí não tem pressão social. é moroso, fica como se fosse uma coisa da cultura popular brasileira, e não é. isso é uma coisa imposta.”

a rocinha & a daslu
(obs.: a entrevista aconteceu pouco depois da inauguração prestigiada pelos alckmin)
“na rocinha há muito mais gente fazendo trabalho social que gente envolvida com crime. só que lá mora uma população de 250 mil pessoas estereotipadas como violentas. e o histórico de violência e criminalidade na daslu, se for fazer a relação per capita com a rocinha? uma pesquisa apontou a barra da tijuca como campeã nacional de inadimplência. quer dizer, todos aqueles ricos ali têm o hábito de não pagar o que devem. Vai ver se o povo pobre tem chance de não pagar. não deveu, já era.”

o destino & a daslu & o destino da daslu
“eles estão levantando um totem de estupidez que acho que a história e até mesmo a opinião pública já está sabendo ver. é a elite da elite, a prepotência da prepotência, a burrice decadente da elite.”

o preto & o branco
“não há estatística nem órgão regulatório de propaganda que mostre o lado negativo que essas propagandas de carro popular por ‘apenas’ R$ 22 mil podem causar. é como dizemos no disco, ‘me ensinaram o que querer, mas não disseram como ter’. nos anos 70, as novelas narravam muito o pobre, pretinho, como aquele cara que era convicto disso. ‘é, nós vivemos aqui, somos pobres, população da cozinha, entramos pela porta dos fundos.’ agora, não, bicho. agora é o seguinte: ‘por que você tem uma mulher loura e eu não tenho?’, ‘por que você está num carrão importado e eu não estou?’. agora é ‘bicho, eu vou buscar isso de qualquer maneira’, o que é até normal.”

arte & mercado, o duradouro & o efêmero
“este é um momento de passagem. mudança dá medo no princípio, mas ela vai se alojando. e é favorável, muito democrática, a mudança que o mercado cultural está sofrendo. antes de mais nada sou cidadão, e para o cidadão tudo isso é muito bom. na passagem dá muita insegurança, mas eu sou otimista quanto ao resultado dessa passagem.”

o respeito & o glamour
“não sou ávido pela indústria cultural, de business, por tudo que vem junto com o fato de ser músico e começar a ter respeito. nesse sentido não sou muito de convívio, não. para muitos músicos, a finalidade maior é cair nessa banalização da celebridade, do glamour, do que está em volta. acho que tem que sempre se confiar na honestidade: será que estou fazendo uma coisa honesta? isso tem que estar sempre em questão. minha carreira pessoal foi feita mais pelas vezes que eu disse não que pelas vezes que eu disse sim.”

os peixinhos & os tubarões
“em determinada época, o rappa foi enamorado por uma certa companhia de discos. o cara aparece ali, oferece um monte de coisa e eu pergunto: ‘o senhor está oferecendo tanto para nós, o que quer em troca?’. da maneira como ele respondeu eu já disse que esse dinheiro não me cabia, não. ele falou que gostava de participar do repertório, eu, ‘opa, não é por aí’. graças a deus, na época, a banda foi coesa a essa minha decisão. eu não toparia, e acho que hoje trabalho com pessoas que têm o mesmo senso crítico. a gente faz honesto, se der deu. se não der, fazer o quê?”

doçura & amargura
“eu estou amargo, sim. não sou uma pessoa feliz na cadeira de rodas, não sou. mas a possibilidade de trabalhar me fez ter planos de novo. os médicos todos acreditam na perspectiva de eu voltar a andar, só quem não acredita sou eu. o trabalho psicológico disso já está durando…”

a mulher & o homem
“meu sonho é produzir um disco de elza soares. ela tem autoridade. mulher negra, favelada, vitoriosa, com uma história de vida que daria um filme hollywoodiano épico.” (o vocalista maurício pacheco, colega de yuka no f.ur.t.o. e ex-colega de elza na gravador independente maianga, atalha para contar, sobre o disco que veio a se chamar “do cóccix até o pescoço”: “ela queria que o título fosse ‘foda-se'”)

a artista & o artista
(obs.: marisa monte, em geral mais adocicada, canta com o f.ur.t.o. numa das faixas de seu disco – justamente a mais politizada e contundente delas todas)
“marisa monte é legal pra caralho. ela faz uma torta de banana que é musical, faz crochê. você ia imaginar ela em casa no sábado à noite fazendo crochê? meu sonho é desenvolver uma carreira tipo a dela.”

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