A lista de 160 artistas selecionados para a exposição “À Nordeste” (em cartaz no Sesc 24 de Maio) vai de A, de Abel Teixeira, a Z, de Zé Diabo. Mas no meio dela tem nomes como Portinari, Bispo do Rosário, Cícero Dias, Leonilson, Marcelo D’Salete, Pierre Verger, Juliana Notari, Nhô Caboclo, Tom Zé, Catarina dee Jah, Alcione Alves e Maurício Pokemon. Ou Coletivo ORA, Cooperativa de bordadeiras de Ilha do Ferro, Mulheres no Audiovisual, Romero Britto, Mestre Vitalino e Saquinho de Lixo. A diversidade, como se poderá ver em São Paulo até 25 de agosto, é parte do grande esforço que os curadores empreenderam, a partir de uma jornada aos nove Estados nordestinos no ano passado, em busca de um retrato da arte contemporânea produzida na região.

Dividida em oito eixos (Futuro, Insurgência, (De)colonialidade, Trabalho, Natureza, Cidade, Desejo e Linguagem), a exposição apresenta um coletânea de produções já conhecidas, mas apresenta outras 12 criações inéditas, que foram comissionadas pelo Sesc. A cargo desse trabalho grandioso, estão o cearense Bitu Cassundé (hoje curador do Museu de Arte Contemporânea do Ceará), a pernambucana Clarissa Diniz (crítica de arte e curadora de mostras no CCBB e no Museu de Arte do Rio) e o carioca Marcelo Campos (com trabalhos curatoriais no Centro Cultural Banco do Nordeste, no Palácio da Aclamação, em Salvador, e Caixa Cultural Rio de Janeiro). FAROFAFÁ conversou com Bitu e Clarissa dois dias antes da abertura da exposição. Segue a íntegra da entrevista:

Eduardo Nunomura: O planejamento da exposição “À Nordeste” começou só no ano passado?

Clarissa Diniz: A gente já tinha uma ideia de fazer uma exposição em torno do Nordeste há mais tempo do que isso, há uns três anos. Mas a oportunidade de fazer surgiu no ano passado a convite do Sesc, que foi quando a gente começou a se concentrar no projeto de pesquisa específica dessa edição. Mas Marcelo, Bitu e eu já temos pesquisa há dez, quinze anos em torno do Nordeste. Com o convite, a gente conseguiu se concentrar nesse olhar e ter a oportunidade de fazer as viagens de pesquisa para todos os Estados do Nordeste, absolutamente fundamentais para a exposição como ela se encontra hoje.

EN: Realmente, não daria para planejar e organizar uma exposição dessa envergadura em um só ano e, sobretudo, num período tão turbulento quanto o eleitoral.

CD: A exposição é devedora de uma pesquisa de muitos anos, muito do que está nela já vem sendo pensada, elaborada há muito tempo. Mas tem uma parte muito significativa da exposição, cortes dessa exposição que são muito recentes e, mesmo que a gente não quisesse, passam a ser lidos à luz do que aconteceu em 2018. Não teria como se pensar uma exposição em torno do Nordeste que de algum jeito não se relacionasse com o debate público, aberto no Brasil, que reavivou essa discussão da região, do regionalismo do Nordeste, do separatismo, enfim, dos preconceitos em relação ao Nordeste e tantos outros dados que voltaram à cena do debate nacional a partir da questão eleitoral.

Bitu Cassundé: A exposição foi se transformando totalmente a partir das viagens, do atravessamento, pela paisagem nordestina nesse ano tão cheio de transformação que foi 2018. Foi muito rico para nós como pesquisadores ver essa perspectiva de um Brasil em transformação e de mudanças muito radicais. A gente começou as viagens pelos nove Estados do Nordeste em junho, julho, e a última viagem foi em janeiro, fevereiro. A gente viu do processo da eleição se constituindo, a campanha, a eleição, o resultado. Foi interessante visitar um lugar tão tomado por uma vertente de esquerda sendo apresentado a uma nova realidade, que é a que vivemos atualmente. Esse processo das viagens foi muito sofisticado nesse sentido, pudemos visitar muitas instituições, muitas coleções, ateliês de artistas e espaços socioculturais que são fundamentais para a resistência de projetos culturais no Nordeste. E, principalmente, ver como os investimentos feitos no Brasil nos últimos 20 anos tiveram significados positivos e propositivos, como a implantação de Institutos Federais, a de cursos de artes em diversas universidades e ver os frutos desses investimentos. Quando fomos em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, ficamos muito impressionado com a produção dos jovens artistas de lá. Existem produções jovens também que a gente pincelou desses encontros, dessas gratas surpresas. Tanto que tem uma dupla de artistas do Recôncavo Baiano de Cachoeira, Kaick & Alan, que estão apresentando trabalho e é resultado dessas inúmeras universidades que foram implantadas no Nordeste nos últimos anos e oxigenaram um novo campo, uma nova produção artística.

A obra ABC da Cana, de Jonathas de Andrade, mostra trabalhadores desenhando as letras do alfabeto com a cana
ABC da Cana, de Jonathas de Andrade – Foto de Eduardo Ortega

EN: Uma curiosidade: de onde vocês são?

CD: Eu sou de Recife mesmo.

BC: Eu sou do interior do Ceará, de uma cidade chamada Várzea Alegre, que fica próximo a região do Cariri.

EN: O Cariri é uma região riquíssima e faz muito tempo.

BC: Um dado muito bacana que esse processo e esse projeto traz como protagonista são as quebras de hierarquias totalmente contemporânea e popular. Há um recorte de artistas que são impedidos por esse circuito mais legitimador como artista popular, mas que na exposição são de igual para igual, como qualquer outro artista. Um dos polos mais ricos e interessantes no Nordeste de produção de artesania é a região do Cariri que a gente traz alguns artistas e também a região da Ilha do Ferro, em Alagoas. São dois polos bastante ricos em produção artesanal que tem muitos artistas representados na exposição. O Cariri é uma região de confluência cultural, religiosa e já fica no limite com Pernambuco, recebe também uma influência da cultura pernambucana, então dá um caldo cultural muito potente ali para as diversas linguagens. O Cariri realmente é um espaço muito propositivo, que está presente com muita significância na exposição.

EN: Estava lendo no material da exposição menção à discussão entre o popular e o erudito, entre alta e baixa cultura. Vocês usaram a expressão “o Nordeste atual está em transformação”, já para destrinchar ou talvez se desvencilhar desses recortes um tanto quanto engessadores…

CD: Sim, sem dúvida. O título da exposição, “À Nordeste”, evidencia a ideia de uma posição, de um lugar em que se está e do qual se sai também. É uma posição. E toda posição é tomada em relação a alguma outra. A ideia de posição é em referência a algum outro lugar. Não à toa partimos de um texto de Yuri Firmeza, de 2011, em que ele pergunta “a Nordeste de quê?”. Qual é o lugar, o centro que indica que um lugar ou um território, um certo modo de ser é “a Nordeste” de onde. “À Nordeste” de quem? Entender que não só a ideia de Nordeste, mas como todas as ideias que você trouxe, baixa e alta cultura, popular e erudito, todas essas também são posições, não são definições em si mesmas, né? Não se fecham em si mesmas enquanto identidade inequívocas, mas elas são posições que se tensionam, que se disputam, que tem conflitos e se reposicionam ao longo do tempo e que vão se transformando. É da natureza das posições assumir novas posições, porque a gente vive num jogo eterno de contraposições, de reposicionamentos. Todas essas nomenclaturas das categorias, elas são convenções sociais, históricas. O que foi arte numa época, por exemplo, pode não ser arte em outra. Essas categorias que hierarquizam, que distinguem as diversas formas de criação entre arte popular, contemporânea, nordestina, paulista, enfim, a exposição tenta olhar para essa complexidade de categorias não como identidades, mas como posições entre si e que não estão, na exposição, convivendo necessariamente em harmonia.

EN: Por que isso?

CD: É uma exposição que também trata de assimetrias. Você tem a perspectiva do retirante representada por Portinari, que é um artista não-nordestino, um artista de Estado, um artista que enfim estava produzindo para criar um imaginário de Estado-nação do Brasil, então é o imaginário que o Brasil está projetando sobre essa região “à Nordeste” e seu território. E a gente tem o próprio (mestre) Vitalino, que vai fazer os retirantes em cerâmica, ou o da Jota Mombaça, uma artista, bicha, preta, não-binária, que está pensando a questão dos retirantes como imigrantes brasileiros na Europa hoje. Um mesmo aspecto abordado transitoriamente na exposição por entre contextos históricos diferentes, mas por sujeitos sociais que ocupam posições diferentes diante da história. Os que representam os retirantes e os que são os retirantes mesmos. Os que são retirantes mesmo, com diversos pontos diferentes. O retirante, por assim dizer, pobre, e o retirante pobre que teve acesso à educação e que já fala três línguas e se coloca como um acadêmico intelectual. Nessas assimetrias, a gente vai compondo a exposição, tentando elucidar menos identidades fechadas em si, então não falamos “o Nordeste”, “os nordestinos”, “arte do Nordeste”, mas numa série de posições que atravessam esse território. O Nordeste é uma posição, um ponto cardeal em relação ao centro, centro esse que nomeia essa outra região de Nordeste. É sobre um complexo de posições que estão o tempo inteiro se friccionando e em movimento constante.

EN: Nesse sentido, na sua fala, há uma tentativa de confrontação em relação ao que o eixo Rio-São Paulo faz ou considera em relação à arte no Brasil?

CD: Quando a gente fala de Nordeste, a gente elucida, sublinha uma posição “à Nordeste”. É uma exposição que também serve de uma espécie de plano de fundo, de contexto, de espelho.Se eu usar essa palavra para tudo aquilo que acha que não ou que se coloca como não sendo, que goste de diferenciar do que eventualmente seria o Nordeste.

EN: Um dos eixos da exposição, o de insurgências, aborda as questões feministas, das lutas negra e indígena que são bastante fortes e também uma disputa de ocupação e de visibilidade. Essa é uma luta que aconteceu em todo o Brasil. Esses movimentos estão bem evidentes no Nordeste. Que coisas interessantes estão acontecendo no Nordeste atual?

CD: Na minha opinião, estão bem evidentes. Outras formas de tecnologia, de comunicação, de internet, de organização social, movimentos sociais, enfim, nos últimos vinte anos o crescimento de políticas públicas, de políticas afirmativas, tudo isso vai corroborando para um contexto social e político que dá um pouco mais de meios para que essas lutas se organizem e reverberem com mais intensidade. Mas ainda que esse fenômeno da ressonância, da amplitude da ressonância dessas lutas sejam um pouco recentes, elas não são nada recentes, são muito antigas, datam da colonização. E o Nordeste por ser esse território por meio do qual começa a colonização no Brasil. Durante alguns séculos o Nordeste era a porção que mais produziu riqueza, mais recebeu escravizados, o centro político da Colônia. Nesse lugar, as lutas são muito antigas. Os processos de genocídio e epistemicídio da colonização são muito visíveis nos movimentos negros de resistência. Não à toa tem esse momento histórico do Quilombo dos Palmares, do Zumbi, situado no Nordeste, o grande ícone que marca o 20 de novembro como o dia da Consciência Negra. Esses marcos dessa luta estão situados no Nordeste. E essa luta constante é o que nos interessa nesse núcleo de insurgências porque a gente entende também que essa luta se manifesta de muitas maneiras e na chamada arte contemporânea, na produção atual dos artistas. Está também no carnaval, cazumbá e em outras formas de ocupação das ruas e de manifestações populares em diversos níveis, tanto os mais espirituais, religiosos, quanto festas mais profanas. Boa parte da produção que a gente fala do Nordeste, os maracatus, os caboclos e os cazumbás podem ser lidos como ritos de insurgência porque tem reencenações de processos de violência histórica e violência colonial. São reencenadas e transformadas no âmbito dessas manifestações, seja porque o escravo ocupa o lugar de rei e de rainha como no maracatu, seja por que no cazumbá essa figura que fecha uma máscara e que amedronta, impõe medo, que assusta. Esse lugar do popular já era um lugar de insurgência política, já era uma arte de insurgência muito antes do que hoje chamamos de arte contemporânea, muito antes dos movimentos sociais, da roupagem atual que a gente facilmente reconhece como luta social, mas já estava dado como disputa e luta no âmbito do imaginário e no âmbito do simbólico que sempre existiu. Mas claro isso tudo são posições que vão se transmutando historicamente e que inclusive mudam para continuar encontrando forças de luta né…

BC: É interessante ver como essa insurgência nos dias atuais vai se transformando em processo de existência, em processos colaborativos, em processos onde os artistas estão juntos, em processos em que os artistas estão criando juntos um processo em que uma parceria com comunidades no qual a arte se atravessa de diversas maneiras e até se propõe como um estatuto transformador. É por isso também em muitos lugares que a gente passou de ver essa insurgência extremamente produtiva e com desdobramento social, político e também poético.

EN: E isso reflete na expografia.

BC: A gente entende muito essa exposição como uma ocupação mesmo, porque é uma estratégia de colocar um número grande de artistas dentro de um espaço reduzido. Fugimos totalmente dessa ideia de cubo branco e de uma exposição silenciosa. Existe uma contaminação, uma polifonia muito forte dentro da exposição e é bastante ocupada por mais de 160 artistas, que estamos colocando para conviver nesse espaço expositivo.

EN: Vocês acham que a cultura nordestina produzida hoje pode representar uma espécie de contraposição, de ser uma vanguarda cultural, não no sentido de resistência, mas de algo novo, inovador, de falar algo que está precisando ser dito?

BC: Um dado importante que a exposição traz também é a gente ter buscado artistas não só do Nordeste, mas falando do Nordeste. A gente traz desde páginas do Instagram como “Saquinho de Lixo”, que é um perfil que faz comentários com humor de diversas ordens de questões diversas, Alcione Alves que é uma influencer digital também de Recife, e artistas como Romero Britto, que está dentro de um circuito que é um circuito…

CD: Acho que, puxando Romero Britto, em relação a essa questão da vanguarda, há uma ideia de vanguarda muito europeia e vinculada a uma certa noção meio linear da história de que, como a gente pudesse pensar a história como etapas que uma etapa supera a outra, tem um certo caráter evolucionista nessa história e a vanguarda está sempre à frente, não só a frente como às vezes ela está tão à frente que está indo contra, né?

Veste de Bispo do Rosario
Bispo do Rosario – Foto Divulgação

É uma ideia muito poderosa porque perspectivas de ser contracultura, de poder se insurgir contra padrões de comportamento, ideias, políticas vigentes e às vezes hegemônicas nos alimentam com muita força. Só que quando a gente fala no Nordeste aliamos a essa possível perspectiva da vanguarda, uma que chamamos genericamente de tradição, que não se encaixa nesse modelo europeu da vanguarda, que é um modelo muito burguês, inseparável do capitalismo no momento em que está sempre buscando o novo. E o novo tem uma lógica de mercado de ter sempre o novo. E quando pensamos em tradição, em legados, em sabedorias, em conhecimentos, como por exemplo no candomblé, esse tipo de conhecimento passado entre mães, em terreiros, a gente opera dentro do registro da vanguarda. Para usar termos europeus, talvez estamos operando dentro de tradição, mas quando a gente olha e experimenta o Nordeste percebemos que nem vanguarda, nem tradição são categorias fortes e complexas o suficiente para dar conta das especificidades. Tradição e que tem exatamente também nas suas tradições a sua vanguarda, porque é muito bonito e dá muito o que pensar ver que aqui, que parte da vanguarda de artistas negras, que estão tentando racionalizar, por exemplo, construção branca, patriarcal da arte tal como éramos da Europa e leva adiante no Brasil. É muito bonito pensar que isso é absolutamente de vanguarda e ao mesmo tempo absolutamente ancestral, tradicional, porque está ancorado numa experiência cosmológica do terreiro. Se for ler na chave do binarismo como você levantou aí, europeu não poderia ser vanguarda, porque não cabe dentro da ideia europeia de vanguarda. Eu não discordo de você, acho que sim, o Nordeste está na vanguarda, mas é muito inspirador e me faz pensar muito, perceber o quanto que uma experiência de proximidade com o que experimentamos aí nessa região “à Nordeste” do Brasil nos faz torcer essas perspectivas e esses conceitos como a própria ideia de vanguarda.

EN: Exato. Na verdade, eu também não estava querendo entrar nessa clave da vanguarda no estilo europeu, mas a vanguarda no sentido estrito da palavra.

CD: Sim, sim. E uma coisa superinteressante na exposição também, pensando em vanguarda, a gente assumiu uma identidade visual rosa. E essa escolha é muito provocativa, muito precisa, porque o Nordeste é um território absolutamente patriarcal, assim como o Brasil todo é machista. Talvez porque no Nordeste se formaram as primeiras capitanias hereditárias, os primeiros senhores de engenho. Você tem um imaginário patriarcal extremamente forte e coronelista, machista. Isso vai se juntando, historicamente vai se encontrando com o imaginário de virilidade do cangaço, do sertanejo, com a ideia que obviamente prende preconceitos de racismos vinculados à ideia do trabalhador nordestino, sempre pensado como masculino e não como mulher, então esse trabalhador que vai ser a mão de obra da construção civil no Sudeste do Brasil, que vai cortar seringueira na Amazônia. Tudo isso vai confluindo para o imaginário masculinista e machista do Nordeste. E a exposição tem uma, ainda que tenha uma maioria de artistas homens, se propõe a não ser uma exposição falocêntrica e masculinista nessa, na abordagem. Tem mulheres que protagonizam essa discussão em relação ao machismo entre os trabalhos. Então nos interessa pintar esse Nordeste de rosa também para sair um pouco desse registro de estereótipo do nordestino masculino e até desse estereótipo da mulher nordestina como mulher macho, sim, senhor. Enfim, é também um imaginário muito masculinista que também se expande para a mulher.

EN: Isso me dá o gancho para uma questão. O novo governo já se posicionou de forma preconceituosa em relação ao povo nordestino, contra a cultura e vocês trazem para o eixo Rio-São Paulo a cultura do Nordeste. Essa cultura pode ser um foco de resistência a uma que quer sucumbir a outra e de um governo que quer ignorar a existência de um povo legítimo, autônomo, que tem uma produção cultural muito rica. Como é que vocês veem isso hoje em dia?

CD: É uma pergunta bastante complexa, mas quando a gente fala de uma região do Brasil, do Nordeste, claro que podemos nos dar ao direito de pensar a identidade do Nordeste. Mas o protagonismo do Nordeste nos faz ver que na verdade não existe essa ideia coesa, esse mito da unidade nacional chamado Brasil. Pensar o Nordeste em São Paulo ou em qualquer outro lugar é nos lembrar constantemente de que o Brasil é extremamente plural, diverso e que querer normatizar, regular a partir de um único ponto de vista, um comportamento, uma agenda moral política, uma perspectiva de educação, uma única perspectiva religiosa, como por exemplo abdicar do Estado laico, esse tipo de prerrogativa normatizadora e moralizante é absolutamente pautada em processos de violência, violência contra o outro e violência contra a radical diversidade que constituiu o Brasil. Isso independente da problemática em relação ao atual governo. A problemática do atual governo em relação a qualquer tipo de política que preze mais pela ditadura da maioria do que por tentar constituir uma sociedade pautada em políticas que sejam capazes de responder de maneira inteligente à diversidade que constitui. A formação social do País é o que nos preocupa e é o que nos incita a fazer essa exposição. Falar de Nordeste para lançar luz à complexidade regional do Brasil não é para defender uma perspectiva regionalista do país, mas para usar a ideia de região como uma das muitas evidências possíveis dessa diversidade que não cabe no desejo de simplificar a complexidade numa única agenda. Qualquer agenda única na complexidade atual que não seja capaz de dialogar, inclusive pela fricção e pelos conflitos que essas diferenças impõem umas às outras, é uma agenda profundamente autoritária e de perpetuação das violências históricas que tem nos constituído até o momento e contra as quais precisamos lutar.

Cena da video-performance ‘Mimoso’, de Juliana Notari – Foto Divulgação

EN: Nessas andanças que fizeram região para fazer a curadoria, sentiram os artistas animados, produtivos, ou a chegada desse novo governo criou uma espécie de sombra em relação ao futuro dessa produção artística?

BC: Os artistas buscam estratégias independente de produzir, mas é difícil quando você não tem um Ministério da Cultura atuante, há instituições fragilizadas, não tem um mínimo de alicerce que possibilite pesquisa e produção. Nesse momento complexo que o Brasil passa, principalmente em relação à cultura e à educação, o que vê são tentativas de criação de estratégias de emendar com todas as dificuldades e continuar no processo produtivo. Não é fácil, porque estão se esvaziando todas as possibilidades. No entanto, os artistas têm muitas possibilidades e estratégias também de subverter a dificuldade e construir potência a partir dessa subversão e dessa dificuldade imposta pela realidade atual.

CD: Eu me lembro que logo depois das eleições ouvi de algumas pessoas, principalmente amigos que são negros, pessoas periféricas, a afirmação de que não vai ficar difícil. Sempre foi difícil para a gente. Acho que isso também é uma perspectiva válida para o Nordeste, ainda que nas últimas duas décadas o Nordeste tenha vivido o momento de crescimento econômico, de emancipação política, de mais educação, mais saúde, nunca foi fácil. E o Nordeste sempre se insurgiu contra essas dificuldades. Essa luta constitui o Nordeste desde o momento da colonização, ou seja, na véspera de construir o Brasil e não só o Nordeste. Os artistas estão um pouco imbuídos com esse tipo de energia que é de dor, mas é essa capacidade que a criação tem e que convoca de transformador em potência. Enfim, ou a gente cria e reage a ela ou a gente sucumbe e sucumbir não parece uma opção para pessoas que sempre estiveram lutando assim.

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