Um evento realizado em 28 ruas abertas, 8 bibliotecas municipais, 9 centros culturais, 7 teatros municipais, 11 casas de cultura, 16 Viradinhas voltadas para o público infantil, 10 CEUs (Centros Educacionais Unificados) e 5 palcos montados nos bairros das zonas sul, leste e norte. A Virada Cultural impacta pela variedade de atrações. É preciso ser mais de um para aproveitar ao máximo o que ela tem de bom. Foi o que FAROFAFÁ fez. Três repórteres realizaram uma cobertura ampla, geral e exaustiva, do começo da festa até o último acorde ecoando pela metrópole. O relato a seguir é um retrato da diversidade cultural em tempo de tensão e instabilidade política.

18h29 Julio Prestes

Nesse instante, o sul-matogrossense Ney Matogrosso já trocou três vezes de roupa. Ele subiu ao palco pontualmente às 18 horas, cantando “Rua da Passagem”, do pernambucano Lenine. Veste uma espécie de burca cintilante, peruca de carnaval ou chapéu de guerreiro medieval, ao gosto do(a) leitor(a). Não lhe faltam apetrechos no pescoço, nos braços e nas pernas. No show, dança, rebola, salta e hipnotiza. É Ney sendo Ney.

Ney Matogrosso

No espaço reservado às autoridades, a convidados e à imprensa, o prefeito Fernando Haddad e a primeira-dama Ana Estela Haddad prestigiam a abertura da Virada Cultural de 2016. Há três cadeirantes, muitos jornalistas e fotógrafos, jovens com pulseira rosa ou crachá. O público espremido vê tudo mais de longe. E é de lá que cartazes de “Temer Jamais” e coros de “Fora Temer” são avistados e ouvidos. Ney ignora essas manifestações.

No palco Júlio Prestes, tradicionalmente visto como o principal da Virada, Caroline Martins e Jefferson Matos interpretam na linguagem de sinais as canções. São um show à parte, porque dançam, fazem caretas e sorriem conforme a música. Onze atrações contarão com a tradução simultânea. Ex-secretário municipal de Cultura que se afastou para se recandidatar nas próximas eleições, o vereador Nabil Bonduki está ali, mas com a cabeça voltada para a política. A esta altura, ninguém sabe se a maratona cultural será tranquila. Haverá manifestações? “Que seja uma Virada da alegria, da cultura e de reflexão sobre o futuro do país, futuro que está comprometido pela interrupção de um mandato eleito democrativamente pelo povo”, afirma.

19h22 Rio Branco
Especializado em carnavalizar canções de Caetano Veloso, o bloco paulistano Tarado ni Você arrasta um pequeno cortejo pelo asfalto da avenida Rio Branco, em torno dos versos otimistas de “Os Mais Doces Bárbaros” (1976): “Com amor no coração/ preparamos a invasão/ cheios de felicidade entramos na cidade amada/ (…) alto astral, altas transas, lindas canções/ afoxés, astronaves, aves, cordões/ avançando através dos grossos portões/ nossos planos são muito bons”.

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O figurino dos foliões é ornamentado com galhos de árvores, que por vezes se misturam a folhas de papel com inscrições de “fora Temer” e “Temer jamais”, populares durante toda a Virada. A festa parece meio fora de lugar, ou, melhor dizendo, fora de hora. O carnaval não contagia, e o bloco querido da cidade desfila sem grandes transes catárticos, por entre versos que hoje soam melancólicos: “com a espada de Ogum/ e a bênção de Olorum/ como um raio de Iansã/ rasgamos a manhã vermelha/ tudo ainda é tal e qual/ e no entanto nada é igual/ nós cantamos de verdade/ e é sempre outra cidade velha”.

19h37 República

Os jovens Alberto Moraes e Dener Luiz Oliveira Santos, ambos de 20 anos, depois de atravessarem 15 estações de metrô, vindos de Itaquera, na zona leste, veem um público razoável e pouca concorrência ao redor na praça da República. Decidem montar seu negócio aqui mesmo, ao lado do público que assiste um tanto quanto barulhento à dupla de jazzistas formada pela norte-americana Dianne Reeves e o carioca Romero Lubambo. O mesmo show ocorreu quatro dias antes na casa de espetáculos Bourbon Street, em Moema, na zona sul paulistana. Só que lá o ingresso custava a partir de R$ 150. Na praça é de graça, como em todas as atrações da Virada Cultural.

Moraes e Santos não se importam com as pessoas conversando. Quanto mais alegres estiverem, maiores as chances de comprarem bebidas. A dupla da zona leste trouxe a mercadoria até o centro na esperança de ganhar cerca de R$ 150 por isopor vendido. A garrafa de vinho e de catuaba, dois hits de edições passadas do evento, custa R$ 10. Cervejas, R$ 10 e R$ 5 reais, e o minirrefrigerante, R$ 2. “Paramos primeiro no Anhangabaú, mas lá estava vazio”, afirma Moraes.

19h40 Arouche

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A caminhada de drag queens pelo largo do Arouche parece aquela cena em slow motion do filme As Panteras. Alice Nation, Dakota Monteiro, Pyetra, Slováquia, Gina Yamamoto: elas não estão ali a passeio. Penélope Nova é anunciada como “bicha que nasceu mulher por acidente”. Ela compõe o júri com a travesti Luiza Marilac e a drag Fátima Fastfood. Penélope tira de letra as roubadas que lhe impõem. “Se fosse rola, vocês não empurrariam para mim!”. Gina Yamamoto agita os braços freneticamente, como Elis-cóptero cantando “Sá Marina”. Pyetra brigou com a mãe, está com a maquiagem borrada de chorar. Mas ela termina vencendo o concurso de drags e levando um cheque de R$ 1 mil para casa.

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O clima é de pecados da carne. Na Churrascaria Prazeres do Sul, atrás do palco das drags, justamente no momento de maior ferveção, três freirinhas tomam três garrafas de 600 ml de cerveja Original e comem picanha. Dia de folga no retiro certamente não é dia para um colchão duro ordinário e tubaína caramelizada.

20h15 Av São João

Espécie de Esperanza Spalding da santeria, a cantora cubana Yusa encara a avenida reservada às mulheres cantoras com dois baixos elétricos e muita presença de espírito. “Esta avenida tem história”, diz. Ela tocou baixo no show de Lenine InCité, em Paris, a convite do pernambucano. Mas Yusa tem público rarefeito neste início de noite – seu coté de trova cubana com Jaco Pastorius concorre com todos os pesos pesados da praça Júlio Prestes, do Teatro Municipal e da praça da República. Não há quase nenhuma testemunha para seu conceito orgulhoso, black music afrocubana. A música é áspera, difícil para plateias heterogêneas, mas os malucos da hora não querem saber, é como se estivessem ouvindo Flea, dos Red Hot Chili Peppers. São poucos, mas dançam como uma tribo inteira de Sioux.

20h16 Av Rio Branco

No território dos roqueiros, não faltam jaquetas de couro, camisetas pretas ou brancas e jeans surrados. O analista de telecomunicações Ricardo Alexandre, de 40 anos, fez questão de mostrar a estampa das costas de sua jaqueta: Motoclube Trem das Onze, do Jaçanã. Para garantir um lugar na fila do gargarejo, ele chegou às 17 horas. Está impaciente: “É, até quando esperar para ver a banda da minha adolescência?”. O show começa com 16 minutos de atraso, mas Alexandre tem de aguardar outros 52 minutos até que a Plebe Rude toque a clássica canção “Até Quando Esperar” (1985). Neste ano, a banda de Brasília, que completa 35 anos, sobe ao palco com Clemente, da banda punk paulistana Inocentes, nas vozes e guitarra, Phillipe Seabra, também vozes e guiterra, André X no baixo e Marcelo Capucci na bateria. Surgida numa época em que a polícia batia em estudantes e a censura ainda perseguia os músicos, a Plebe Rude evita falar diretamente sobre a política. Estamos em 2016.

21h04 Júlio Prestes
“Quero ter olhos pra ver a maldade desaparecer”, declama a maranhense Alcione durante breve discurso, após abrir a apresentação no palco principal da Virada com sua versão em vozeirão para o clássico de Nelson Cavaquinho “Juízo Final” (1973). Enquanto ela discursa, o “fora Temer” se alastra pela plateia sem que a sambista pronuncie o nome do presidente interino, menos ainda o de Dilma Rousseff. Embora dilmista notória, Alcione se limita a criticar a extinção (já revogada) do Ministério da Cultura (MinC) e a ausência de mulheres e negros na equipe de primeiro escalão do governo provisório, que a artista parece já dar como definitivo. Sem contar com a amplificação do microfone de Alcione, o vendedor de cerveja também se manifesta.

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21h30 Boulevard São João

Enquanto a próxima atração não chega, no bulevar da avenida São João, a poucos metros da famosa esquina com a Ipiranga, o mágico Volckane entretém o público. Realiza aqueles truques de cartas, barbantes, elásticos e bolinhas que todos conhecem e todos se deixam iludir. Metade dos 50 anos de Robson Palazini, como está no RG de Volckane, foi dedicado ao ofício da mágica. Está feliz por circular entre a multidão. Seu desafio é levar a banqueta de madeira e a maleta até uma roda de pessoas e, em questão de segundos, atrair a atenção até mesmo dos mais incrédulos. Ele foi um dos 20 mágicos contratados para a Virada e receberá R$ 3 mil – quase três vezes mais do que faria numa festa infantil – para realizar performances durante duas horas. “Esse tipo de arte close-up, de proximidade, é muito desafiador. O público é muito diferente, mas também está sendo bastante receptivo.”

22h05 Av São João

No palco 100% devotado às mulheres da avenida São João, a funkeira carioca Valesca Popozuda faz a declaração de princípios sobre a quem pertence a programação gratuita e popular do evento: “Virada Cultural, baile de favela!”. O “jamais Temer” (ou “jamais temer”?) se projeta no paredão de um edifício e ecoa modestamente entre a plateia ultralotada, mas mais preocupada em dançar e se divertir que em protestar.

22h05 Boulevard São João
A performance de dança do grupo carioca #Passinho contagia a todos, exceto o cachorro Negrão, que late com insistência para oito integrantes. Alguns estão descalços e outros sem camiseta. Como se estivessem em suas próprias comunidades. MC Leone, uma espécie de mestre de cerimônias, tenta descontrair: “Temos até um convidado. Isso é fome de dançar”. Os donos do animal tentam repreendê-lo. Ele recua, para logo voltar à ação. Ao se aproximar da plateia, um dos dançarinos é atacado por Negrão. É mordido na perna, sem gravidade. Ele se aquieta. Mas, de repente, volta a morder de novo, agora na bermuda do mesmo dançarino. Alguém da produção tenta “comprar” um animal com um sanduíche. Os donos de Negrão desistem de assistir ao show e vão embora. A batalha do passinho, de um dançarino contra outro, pode recomeçar, sem mordidas.

 

22h15 MBoi Mirim

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“Falador passa mal, rapaz!” Max B.O. domina a plateia com seu grupo Partido B.O. e usando o bordão antigo dos Originais do Samba, mas está estourando o tempo – por conta de problemas técnicos, o show da banda pernambucana Nação Zumbi já vai atrasar uma hora. E os roadies estão no meio da rua com o equipamento, nem passaram o som ainda e já estão preocupados. “Aqui só pode tocar até as 23 hora”, murmura o barbudinho que cuida das guitarras. Numa confluência de ruas do M’Boi Mirim, na periferia sul de São Paulo, o palco descentralizado está cercado por uma barraca de yakissoba, uma mesa de quentão e uma notável guarnição policial – talvez o mais policiado palco das periferias.

22h28 barão de itapetininga

Há um ringue, e não um octógono de UFC, o esporte-pancadaria que virou moda no mundo todo, onde acontece hoje um tipo diferente de batalha. Duplas de atores comediantes improvisam no “Quintal’s Fun Championship”, diante de uma plateia que decide, na hora, qual delas deve prosseguir na disputa. Os temas são anunciados na hora pelo apresentador. Duas atrizes fantasiadas de paquitas são desafiadas a interpretar os papéis de patroa e empregada. O árbitro interrompe de tempos em tempos a “luta” e pede que elas revelem aquilo que não se diz, mas no fundo se pensa. É um besteirol, e é claro que a luta de classes acaba em sexo, com a empregada fazendo o papel de quem transa com o marido de quem lhe paga o salário. A plateia se diverte.

Batalha de improvisão
23h Ramos de Azevedo

A mineira Wanderléa inicia a apresentação que retoma o disco Feito Gente (1975), o primeiro de seus 16 álbuns que foi gravado ao vivo. É a segunda vez que uma das primeiras estrelas do rock brasileiro toca no Theatro Municipal – há dois anos, executou a íntegra do disco Maravilhosa (1972). Está elegante, e sua voz permanece tão precisa quanto há 40 anos. Fica à vontade com a plateia, que devolve com gritos de “divina”, “musa”, “maravilhosa” e “casa comigo”. Mas o disco marcou uma fase depressiva da carreira da artista, e o ar intimista marca a apresentação. Em “Segredo”, de Luiz Melodia, ela se entrega e se joga no chão, após os versos “eu tenho um recado/ um ódio interno marcado/ guardado/ fincado, pregado, lacrado”. Todos aplaudem de pé.

0h15 Dom Jose Gaspar
O meio quarteirão entre as ruas Barão de Itapetininga e 24 de Maio está lotado de jovens que dançam, conversam, bebem e fumam. Poderia ser um palco da Virada, mas é mesmo a discotecagem do DJ Junior Black. Ele se espreme na já apertada entrada de um cubículo que é o Rei dos Doces, ponto comercial de Wagner dos Santos, de 40 anos. Há cinco anos, em todas as sextas-feiras das 19 às 23 horas, uma multidão é atraída para esse calçadão no centro para curtir R&B, rap, swag e black music. “Este é o meu público, não é o da Virada”, orgulha-se Santos. Começa a tocar “Rap É Compromisso” (2001), de Sabotage, e a frase do comerciante passa a fazer todo sentido.

DJ Junior Black no Rei dos Doces
1h40 Rio Branco
Começa a ecoar um “Fora Temer” mais forte, provocado por Tatá Aeroplano, o músico paulista que está à frente da homenagem ao gaúcho Júpiter Maçã no palco roqueiro da Virada. O grito já havia sido ouvido no mesmo show com reações espontâneas da plateia ou poucas manifestações dos artistas que subiram ao palco, como a fluminense Bárbara Eugenia. Ela grita: “Fora Temer e Júpiter Maçã para sempre!”. Tatá parece querer mais reações do público, dos artistas, do Brasil. A reação não dura muito tempo. O jeito é tocar “Miss Lexotan 6 mg Garota” (1996), um clássico de Flávio Basso, fundador das bandas TNT e Cascavelletes e influenciador de várias gerações de roqueiros. Júpiter Maçã, como Basso era conhecido, morreu em dezembro do ano passado, aos 47 anos.

1h55 São João

Desde o início da Virada, já são 800 sanduíches vendidos n’A Verdadeira Casa da Mortadela. Silveira, batizado como Antonio Cavalcanti Vieira, morador do Grajaú, na periferia sul da capital, é quem está cuidando da lanchonete para Irineu Stalbo, um italiano de 86 anos que criou um dos clássicos de São Paulo em 1977. O lugar é discreto, corre-se o risco de passar desapercebido diante dele. Lá se mantém a tradição da Itália de tocar o sino sempre que alguém dá uma gorjeta. Até o fim da Virada, a meta é bater os 1.500 sanduíches, o triplo do que se vende em dias normais. Um casal que visivelmente não frequenta o centro, tampouco a cozinha, se espanta quando um dos atendentes usa uma pedra de amolar facas. Eles comem, pagam, e a campainha não toca.

2h42 avenida São João

Com 42 minutos de atraso, a cantora e compositora paulistana Céu sobe ao palco quando a plateia já revela irritação por esperar tanto tempo. Ouve-se na fila do gargarejo gritos de “ridícula” e “tá se achando, é?”. Mas ela logo começa a cativar o público indócil, já desde a primeira música, “Rapsódia Brasilis” (2016).

No mesmo palco 100% ocupado por mulheres em que Valesca brilhou horas atrás, a paulistana Céu grita um “viva Elza Soares!” toda vestida de vermelho. E não se furta a falar da política, mais exatamente às 3 horas e 4 minutos da madrugada de domingo: “Devolveram o ministério, falta devolver o governo. Fora Temer”. E não dedica a próxima música, “Amor Pixelado” (2016), ao paulista de Tietê Michel Temer: “Saiba, meu amor, cuidarei de nós/ mesmo quando eu for em busca de mim/ em busca do que faz você me amar”.

3h10 Arouche

“Eu não confio em você, sua bicha invejosa!”, repete em pique de rock’n’roll a banda Verónica Decide Morrer, uma atualização cearense dos históricos e andróginos New York Dolls. Vestido(a) de vermelho, o(a) vocalista dedica a apresentação “a todas as verónicas que são espancadas, humilhadas, rejeitadas, como eu e você”.

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3h19 Itapetininga

A vida cotidiana penetra a Virada, e vice-versa. Conforme a programação oficial se desacelera na alta madrugada, os notívagos que querem mais diversão se entrosam com a vida diária no centro da cidade velha. O bar Terraço da Barão vive momentos de glória, ao som de um forró moderno na voz de Wesley Safadão, que sai de potentes caixas acústicas e se alastra para os pés dos casais (de todos os sexos) que dançam entre as mesas postas no calçadão. Do lado de dentro do balcão, o trabalhador do bar se faz mídia e registra o momento em vídeo pelo celular, com um sorriso largo no rosto.

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3h30 Anhangabaú

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Um palco foi montado embaixo do viaduto do Chá para dar lugar ao teatro de musicais estilo Broadway abrasileirada, com versões “pocket” de espetáculos sobre Gilberto GilElis ReginaChorão e outros. A alta madrugada é reservada ao vaudeville andrógino dos Dzi Croquettes, grupo histórico dos anos 1970 homenageado pelo musical de mesmo nome. O grupo de homens musculosos e depilados seminus contrasta com a magreza peluda tipo Ney Matogrosso dos Croquettes originais, assim como a locução contrasta sem querer o momento atual de ruptura democrática com o idílio romantizado em torno do grupo setentista que desafiava normas de comportamento (“era tempo de ditadura”, “eles mandaram a ditadura para a puta que pariu”).

Interpretada originalmente por Elis Regina, a canção “Dois pra Lá, Dois pra Cá” (1974), de João Bosco Aldir Blanc, soa estranhamente comportada apesar do vestidão do performer. O discurso investe no discurso antipolítico tipo “fora todos”, demonizador da política, mas suficiente para fazer erguer na plateia um galho da árvore “fora Temer” que veio do cortejo do Tarado ni Você. Um dos atores ousa uma breve extrapolação do protesto genérico e indistinto, quando sugere a Marco Feliciano, Michel Temer e Eduardo Cunha que “vão dar meia hora de cu”. A plateia se divide entre os que aplaudem, os que tateiam mais um “fora Temer” e os que, cansados de guerra, dormem nas cadeiras de plástico do teatro ao ar livre.

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3h45 Cidade Tiradentes

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Na Cidade Tiradentes, extremidade leste da capital, o rapper paulistano da sul  b Brown termina o show e seus seguranças fazem um corredor polonês para ele voltar ao camarim. Brown fura o bloqueio dos seguranças e vai de encontro à grade onde os fãs berram feito loucos. Deixa-se abraçar por eles, ser agarrado, faz selfies, sorri com dentes que parecem ter sido recentemente embranquecidos com laser. Mano Brown está em casa. Sua mulher e empresária, a atenta Eliane Dias, vai pinçando meninos e meninas da plateia e elevando até o palco para dançar com o rapper.

Apesar da alegria, de um show abertamente de entretenimento, enxertado com disco music e soul romântica, ele mostra como sempre que não veio ao mundo a passeio: “Todo mundo brabo. No trânsito, todo mundo general. Não tem humildade, falta sensibilidade. Tanta brabeza não impediu que a gente tomasse um golpe (…). Nossa mente fechou, se alienou. Acredito na nossa juventude, na sua capacidade. Mas por enquanto vocês vão conviver com um governo de ladrões. Tomamos um golpe, e seu voto não valeu nada”. Parecia até que já tinha ouvido os grampos do ministro interino Romero Jucá que seriam divulgados na segunda-feira pós-Virada.

4h12 Paissandu

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Um dos oásis na madrugada agressiva é o chão do largo do Paissandu, terra simbólica da cultura afrodescendente paulistana, devotado nestas 24 horas às chamadas culturas tradicionais, populares, negras. Uma plateia de paulistanos e não paulistanos, de forasteiros e descendentes de outros paulistas e brasileiros, parece confirmar que, dificuldades à parte, a Virada é para virar, amanhecer e continuar. “Abre a roda, por favor”, pede a solista ao público ávido que parecer querer ser a própria roda viva.

 

4h45 Rio Branco

No trajeto dos cortejos, é a vez da “Parada Carnavalizada”, que aglutina os clubbers da festa Mel, o músico eletrônico paraense Jaloo e as comissões de frente da Mocidade Alegre e da Acadêmicos do Tucuruvi. Em macacão sintético moderno, Jaloo evolui dentro da corda que envolve o trio elétrico, ao lado das comissões de frente fantasiadas. Do lado de cá da corda, bem colados aos passistas fantasiados, dois homens assistem abraçados ao semicarnaval quase animado. Um deles, de jaqueta do Black Sabbath, conduz com carinho o outro, que é cego, no compasso do som gravado das percussões de escola de samba.

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4h59 ipiranga com são joão
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O folião dark confabula com dois amigos na esquina “onde cruza a Ipiranga e a avenida São João”, fantasiado como desses personagens de filme hollywoodiano de terror. É a morte? “É uma morte meio gay”, desvenda um dos colegas.

5h08 São João
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Misto de rapper e funkeira vinda da zona leste paulistana, a “rainha do dancehall brasileiro” Lei Di Dai se apresenta em nome das minorias, para uma plateia reduzidíssima em que se destacam as travestis, as transexuais, as “verónicas espancadas, humilhadas, rejeitadas”.

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Simultânea ao show de Lei Di Dai, a manutenção passa pesada, empurrando com um jato d’água montanhas de lixo do asfalto da São João e das ruas perpendiculares para as sarjetas. O sinal está vermelho e quem chegar para o turno de diversão da manhã não perceberá nem um centésimo das toneladas de lixo que a alegria da festa já produziu.

 

 

5h46 Arouche

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Vestido de militar tipo Sgt. Pepper (mas em tons de azul), o baiano Luiz Caldas explica para o público iconoclasta do Arouche que perdeu os preconceitos que tinha entre os 7 e os 16 anos de idade, período de iniciação profissional, quando tocava todos os estilos musicais e esmerilhava a técnica guitarreira. Sua apresentação reflete a mistura, com versões em inglês embromation para “Three Little Birds” (1977), do jamaicano Bob Marley, e “Sultans of Swing” (1978), dos britânicos Dire Straits, mais “Frevo Mulher” (1979), do paraibano Zé Ramalho, citação saudosa ao mestre pernambucano Luiz Gonzaga e muita axé music baiana. A plateia é reduzida, animada e não dá brecha para o “fora Temer”. Às 6h15, ao som de “sene sené sené, sené Senegal”, já é quase manhã, a Virada começa a desescurecer: virou!

 

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7h10 República

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O rapper vindo da zona norte paulistana Rashid dá boa noite e imediatamente se corrige: está acostumado aos shows noturnos, o correto é dizer bom dia. Pergunta quem aqui sonha com uma média no café da manhã, canta o demitido que não tem coragem de contar à família da demissão, elogia Cristo. “Não descendo de escravos/ descendo de reis que foram escravizados”, proclama, do topo da manhã em que já brilha o sol que Alcione chamou na noite baixa do sábado chuvoso. O “Temer jamais” resiste nos sulfites pregados em diversos pontos do palco.

 

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7h45 Paissandu

As culturas tradicionais amanhecem firmes e fortes ao lado da Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos do Rosário, em frente à Galeria do Rock. É a vez da Companhia de Moçambique Unidos de São Benedito, de Taubaté, interior paulista, formada por homens e mulheres, jovens e velhos, todo(a)s preto(a)s.

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9h29 São João

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Acompanhada por plateia reduzidíssima e calorosíssima e pelo mestre conterrâneo de guitarradas Manoel Cordeiro, a paraense Fafá de Belém explode a manhã azul ao som de música chamada “brega”, o “É o Amor” (1991) dos goianos Zezé di Camargo & Luciano e a “Nuvem de Lágrimas” (1990) dos paranaenses Chitãozinho & Xororó. O tempo passa, o tempo voa, e só desse modo transversal, colateral e intimidado a música sertaneja (tipicamente paulista apesar dos preconceitos paulistanos) consegue adentrar a Virada Cultural, de resto refratária à caipirez e aos nossos próprios sertões.

 

10h05 República

Com repertório ainda curto, mas estrutura já ultraprofissional (e dançarinos exímios), o incandescente MC Bin Laden eletriza a plateia da manhã na praça da República, ao som, principalmente, de “Tá Tranquilo, Tá Favorável”. O segurança que protege o palco e o artista de seus próprios fãs tapa os ouvidos, em desgosto aparente. Quando Bin Laden interpreta o clássico “Rap das Armas”, o segurança olha para ele de soslaio, aparentando desgosto ainda maior.

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Como aconteceu na apresentação de Rashid, Jesus Cristo toma a frente de Michel Temer na ligeireza do discurso do dono do microfone. Dilma Rousseff, que não é Michel nem Jesus (nem homem), permanece esquecida e escanteada, seja pelo artista, seja pela plateia. Tá tranquilo, tá favorável.

 

 

10h30 Ibirapuera

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Estamos longe do centro, mas também das periferias, no parque Ibirapuera, na parte mais rica da zona sul paulistana. Um menino que detesta Mozart acha uma violência levá-lo a um lugar no qual o som da Orquestra da Baviera espalha “As Bodas de Fígaro” por todo canto. É uma apresentação nos fundos do Auditório Ibirapuera, que engaja os pais e libera os moleques. Mas há as compensações: oficinas para fazer aeromodelos, até com o motorzinho para fazê-lo funcionar; escorregadores infláveis de 4 metros de altura; esculturas com bexigas; oficinas de tatuagens temporárias e aulas para as crianças brincarem com tintas naturais; ioiôs e bambolês abandonados no gramado.

Para comer, nada das guloseimas tradicionais entupidas de açúcar. Há uma preocupação com as comidas. O takoyaki (bolinho de polvo grelhado) tem uma filinha enfrentável; o café com calma na bike food demora, mas compensa. Quem levou cachorro, mesmo os mansinhos, levou com uma focinheira – afinal, tem horas que é o menino que morde o cachorro.

13h25 Anhangabaú
“A TV é uma fábrica de produzir doidos, como disse Stanislaw Ponte Preta”, declama a atriz Cláudia Raia, no teatro improvisado debaixo do viaduto do Chá. A esta altura do espetáculo Raia 30 – O Musical, dirigido por José Possi Neto, a atriz global, que também é bailarina, cantora e pioneira na produção de musicais no Brasil, faz uma retrospectiva de sua carreira. O cenário perde a força diante de um palco aberto e fortemente iluminado pela luz do dia. Mas a troca de figurinos ocorre de forma tão perfeita que o público se impressiona, num ritmo de três mudanças de roupas a cada cinco minutos.

13h51 Anhangabaú

Monica Estela no espetáculo Everybody
Na chamada Ocupação Anhangabaú, o Snuff Puppets, grupo teatral australiano que veio pela primeira vez ao país, encerra sua apresentação de Everybody, e as pessoas se aproximam do elenco. A professora do ensino básico Maria Rodrigues de Carvalho Perroti, de 62 anos, é uma delas. A caminho de ir para casa, depois de assistir ao show da paraibana Elba Ramalho, ela decidiu parar para ver a performance. Não satisfeita, encontra a atriz Mônica Estela e faz uma pergunta sobre um bebê que fuma e o conceito geral do espetáculo.

Atenciosamente, a atriz de 29 anos explica que o bebê vira um adulto, de terno e gravata, fuma cigarros, anda com pressa, cria brigas. E que a peça fala do nascimento até a morte e os processos internos e externos pelos quais passam as pessoas. Mônica traduziu as falas na véspera da apresentação, que faz parte do Festival Australia Now, de ampla repercussão em outros países. É a primeira Virada dela, que por pouco não pegou uma de suas criações artísticas e saiu pelas ruas do centro para apresentar aos paulistanos seu personagem Janus, ou Januário. É um boneco feito de termoplástico, um material novo, que permite que seja confeccionado com grande riqueza de detalhes. Aprendeu a técnica com a cultuada figurinista, bonequeira e artista plástica russa Natacha Belova. Janus tem 1,77 de altura, exatamente como a atriz.

14h29 Praça Dom José Gaspar
Vinte saraus se revezam em um único palco da Virada. No ano passado, eram dois palcos. “Cortaram o orçamento”, explica Carlos Moura, editor do jornal Centro em Foco, uma publicação gratuita com tiragem de mais de 20 mil exemplares. Toda sexta-feira do mês, ele e um grupo de amigos e interessados, como advogados, escritores, publicitários e músicos, se reúnem no segundo andar do restaurante Cama e Café, na rua Roberto Simonsen, no centro.

15h25 Júlio Prestes

O rapper Criolo, do Grajaú, periferia sul da capital, veste duas camisetas em um dos shows mais concorridos da Virada. A primeira delas tem a inscrição “Democracia 1982” (em alusão ao Corinthians) e a outra, “Ainda Há Tempo”, nome de seu primeiro álbum, de 2006, recém-relançado. Ele não cita políticos, mas o produtor musical paulistano Daniel Ganjaman bolou uma forma de chamar a atenção do público para o momento atual. Quando viu, Criolo apoiou na hora a iniciativa. No imenso telão atrás do palco, são projetados os dizeres “Temer Jamais” em diversas cores, durante poucos segundos. A plateia vai ao delírio e começa a gritar “Fora Temer”.

Na área VIP, o ex-senador Eduardo Suplicy e ex-secretário municipal de Direitos Humanos entra na onda. De espírito jovem, está vestido com uma camiseta vermelha da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco, que ganhou do jornalista Miguel Icassati no meio da Virada. Veste ainda uma bermuda, que parece emprestada dos filhos. Também nesse local está o pernambucano Nelson Triunfo, considerado um dos pais do rap nacional e reverenciado por MC Dan Dan, de Diadema, na Grande São Paulo, que é companheiro de palco de Criolo e mais aguerrido para provocar o público a se manifestar.

Criolo e MC Dan Dan
Num show que ganha os ares de um culto pós-moderno, Criolo prefere provocar a consciência dos espectadores sobre temas como amor, violência, cidadania e justiça social. Quando um grupo de cinco estudantes invade a área VIP com uma faixa de protesto e é controlado de forma enérgica pelos seguranças, o rapper pede para não usarem de violência e provoca: “Nas quebrada que a gente veio, só de tá vivo já é um protesto, tá ligado?”.

15h15 Arouche
A área de imprensa do show da banda oitentista Metrô é praticamente uma embaixada informal da França. A paulistana Virginie, a vocalista, festeja o show que a precedeu, do forrozeiro paraibano Genival Lacerda. “Ter entrado depois de Genival foi a cerreja do bolo”, ela diz, com um sotaque francês que não havia em 1988. Sua voz continua pequena e linda, mas ela já não alcança certas notas. “Preciso de ajuda, gente!”, conclama, ao cantar “Olhar” (1985).

O Metrô nos deu muitas coisas além da batida new wave com defeito de fabricação: nos deu o La Tartine e o jeito blasé do 16º arrondissement. Virginie Adèle Lydie Boutaud-Manent foi uma das musas seminais dos anos 1980. Ex-top model, conheceu os colegas de música no Lycée Pasteur, onde estudavam francês. Em uma época estridente, em que todos buscavam ocupar lugares de líderes geracionais, ela cantava com a delicadeza de uma Nara Leão e tinha um ar nonchalance aristocrático.

Nesse retorno, após 30 anos sem se apresentarem ao vivo para plateia tão expressiva, eles estão à vontade. Não têm mais a obrigação de fazer história. Misturam a seus hits imemoriais coisas como a folclórica “Frères Jacques”; “I Feel Love” (1977), da norte-americana Donna Summer; e “Me Dê Motivo” (1983), do carioca Tim Maia, sem nem ficarem vermelhos. Sândalo de Dândi.

15h35 Praça Julio Mesquita

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O cabelo é tão branco que já ficou com aquele tom amarelado dos castigos do sol e da rua. O velho olha a rua através da grade, com o olhar voltado para dentro de si mesmo. Ele é um dos 210 abrigados provisórios do Centro Especial de Acolhida de Idosos, um prédio histórico a igual distância dos palcos Arouche e Palco São João. A qualquer momento terá que deixar sua casa provisória. Anda arrastando uma perna e não quer conversa. “Não gosto de música. Não me lembro do que eu gostava antes de não gostar. Não vi nada dessa festa. Por que você não me deixa descansar?”.

17h Parelheiros
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O paulistano da zona norte Emicida encomendou um pastel de cima do palco. Brinca que o pastel não chegou. Os jovens fumam narguilé em rodas. As barraquinhas da praça em frente ao Palco Parelheiros, na periferia sul da capital, vendem bolo de cenoura, yakissoba, espetinho de churrasco, vinho quente. E dão um clima de quermesse ao show do rapper, que estende uma camiseta na caixa de retorno à sua frente: “Temer Jamais”.

O público se esgoela quando ele canta “Hoje Cedo” (2013), seu dueto com a baiana Pitty. Mas aí ele contrabandeia versos (“alegria era o que faltava em mim/ uma esperança vaga/ que eu já encontrei”) e fica melhor ainda. Tem menino de 11 anos berrando versos do carioca Cartola e se você já viu cena mais bonita conte pra gente.

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A Virada, que amanheceu há mais de 12 horas, anoitece em Parelheiros. De todos os rolês pela periferia, Parelheiros é o mais alegre e colorido – mais alto astral, inclusive, que grande parte dos shows da Virada no centro. Cidade Tiradentes é cinza e sombria. M’Boi Mirim é recatada e sincera (“Hey, DJ, vai tomar no cu!”, berrava o público por conta da insistência do programador em tocar sempre a mesma música).

18h18 Júlio Prestes

Cabe ao Nação Zumbi, grupo pernambucano herdeiro do manguebit, o show de encerramento do palco principal da Virada Cultural. Também cabe a eles um dos posicionamentos mais críticos sobre a situação política que o Brasil atravessa. “Do cinismo ao sinistro, estamos passando por uma fase de sinistro. E isso depende de nós. Não nos calemos. Quando se cala, o cidadão é apagado. Mas nós não estamos apagados, estamos acesos. Fora Temer. Temer Jamais”, diz Jorge du Peixe, logo seguido pela plateia aos gritos de “Fora Temer”.

O show é marcado pela sucessão de hits dos discos da banda. O vocalista, que substituiu o fundador Chico Science, morto em 1997, lembra dos 20 anos do álbum Afrociberdelia (1996), e não é preciso muito para mostrar a atualidade das composições. Apesar de tudo que aconteceu de lá para cá e da recolocação do país perante o mundo, o Brasil da Virada Cultural 2016 ameaça voltar a ser a reprodução de “Manguetown”, de exatos 20 anos atrás: “Estou enfiado na lama/ é um bairro sujo/ onde os urubus têm casas e eu não tenho asas/ mas estou aqui em minha casa/ onde os urubus têm asas/ vou pintando, segurando as paredes no mangue do meu quintal.” O show se encerra às 19h27. O recado foi dado, no palco e, principalmente, nas plateias.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Só uma correção: a Alcione falou da Dilmona sim. Disse que gosta muito dela, no que foi bem aplaudida.

    E não acredito que ceis perderam a Leci Brandão!!! Lá teve Dilma, estudante, mulher, negro, LGBT, samba e tudo o mais sendo exaltado! 🙂

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