foto: moi même

“Olhe!

Andando sobre a água.

Veja quem é.

É Jesus.

Dessa vez ele veio menina”

 

 

Antony Hegarty declama esses versos (da canção Hope Mountain) e Yoshito Ohno, filho de Kazuo Ohno, segura uma cabeça de cavalo diante da plateia. Até há pouco, Yoshito dançava vestido com a cabeça de cavalo de espuma. Ao final, a retirou delicadamente e a sustentou acima da cabeça, como se portasse um enigma.

 

Estamos quase no final do show de Antony and the Ohnos no Sesc Vila Mariana, na noite passada, e eu penso: pode ser que até venha um show mais bonito que esse ao Brasil ainda este ano, mas eu duvido.

 

Tributo ao mestre Kazuo Ohno (que morreu em 2010, aos 103 anos), um dos fundadores da dança-teatro butô, o show é um curioso entroncamento de formas. É aberto por um solo cartunístico da dançarina Johanna Constantine, que poderia estar num filme de Tim Burton (ela ainda voltaria para um segundo solo, mas sua arte é uma derivação distante do butô de Kazuo, não tem porque estar ali).

 

É com a conjugação da voz diáfana de Antony (que sugere uma fusão impossível de Nina Simone com Boy George com Elvis Presley) e a arte de Yoshito que o show leva o espectador ao Paraíso. O teatro está lotado: à minha frente está o médico Dráuzio Varela, na mesma fileira em que estão o diretor de teatro Antunes Filho, o boss do Sesc Danilo Miranda e a cantora Tulipa Ruiz. O show é sustentado por violão, piano e um eventual violino.

 

Há diversas projeções de uma performance de Kazuo Ohno e sua trupe em 1973, intitulada Book of the Dead. A que abre o espetáculo mostra um homem, Kazuo, mamando nas tetas de uma porca imensa. A trupe de Kazuo domina cenários estéreis, como uma pedreira ou um chiqueiro, e todos estão travestidos. Fazem cenas de amores impossíveis e funerais repentinos. Parece a trupe de Zé Celso no seu empenho em questionar as máscaras sociais, sexuais, políticas e comportamentais.

 

Eu estava em Londrina quando Kazuo Ohno esteve no Festival Internacional de Teatro. Ele saiu do seu hotel de manhã e caminhou pelo calçadão, seguido com curiosidade por populares (que não tinham a menor ideia de quem se tratava). Dançou e abraçou árvores. Cada feixe de músculos de Kazuo Ohno falava. Antony Hegarty diz que conheceu sua arte quando tinha 16 anos e ficou encantada (o cantor, que já foi vocalista de Lou Reed, é transgênero, e quer ser chamada de Ela agora). Desde então, o japonês se tornou sua maior referência. Fez uma canção para homenagear o mestre, The Crying Light, que é uma das últimas do set.

 

“Nasci para te adorar

Como um bebê na escuridão

Nasci para te representar

Carregar sua cabeça ao sol

Esculpir tua face na nuca do sol”.

 

Enquanto Antony canta Crying Light, Yoshito Ohno dança com seus olhos de satélite. O sorriso de Mona Lisa de Antony é traiçoeiro: é como se Antony tivesse tramado um show só para assistir Yoshito dançar, noite após noite.

 

Que coisa elevatória que foi quando Antony cantou seu maior sucesso, You’re My Sister, e Yoshito dançou com mais técnica, desespero e convicção! Yoshito até então meio que passava merthiolate no espectador, amenizando dores, porque algumas canções de Antony são como navalhas, cada verso é um talho.

 “Estou muito feliz. Então, por favor, me espanque. Estou muito feliz. Então, por favor, me machuque”, canta ela, em Cripple and the Starfish.

 

Em 2005, Antony Hegarty lançava seu primeiro disco solo em Nova York e a metrópole parecia chocada. Por coincidência, eu também estava lá nessa época. Era uma voz que sempre estivera ali, que cantara em night clubs por trocados e fora vocal de apoio de um monte de gente. Por que não tinham notado sua pegada celestial? Quando a cortina do Sesc Vila Mariana se ergueu e ela cantou Her Eyes are Underneath the Ground, já se tinha no primeiro falsete a medida do privilégio.

 

Ao final, Yoshito dançou de terno preto, segurando uma marionete que era um boneco de Antony, enquanto esta cantava Can’t Help Falling in Love, de Elvis Presley. Meio bizarro em seu didatismo de irmandade, um herdeiro de Ohno rendendo homenagem ao seu admirador, ainda assim foi lindo, com a voz rara de Antony cortando a noite na Vila Mariana.

 

 

 

O REPÓRTER ASSISTIU AO SHOW A CONVITE DO SESC VILA MARIANA, E AGRADECE IMENSAMENTE

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

2 COMENTÁRIOS

  1. Antony foi covarde ! Um carrasco ! Me destruiu ! As palmas e o silêncio da plateia, em reverência. Fui merecedor daquilo ? Palmas contidas, choro livre.

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