Estou impressionado com a eficiência das redes sociais para trabalhos de demolição, erosão e aniquilamento exatamente nos assuntos sociais. Os exemplos são recentes e próximos. Neste instante são as biografias que atraem a sanha coletiva. Apenas para referência dos futuros, há uma tentativa das editoras em eliminar a censura ou aprovação prévia dos biografados e seus herdeiros, como consta na lei.

De um modo geral, se percebia alguma insatisfação pública com essa forma de impedir a circulação das ideias. Parecia antidemocrático proibir biografias e merecia repúdio, era interferência indevida, coisa de país atrasado. Subitamente se manifesta um grupo de artistas importantes da música, o Procure Saber, que com este nome-mote levantou a discussão sobre o Ecad e sua falta de transparência e conseguiram, depois de uma caitituagem explicita na Câmara e no Senado, acelerar a aprovação de uma lei que cria a fiscalização do Ecad, entre outras coisas.

Roberto Carlos, o Rei, assumia pela primeira vez sua veia ativista e deu o aval final para que Caetano, Gil, Djavan, Chico, entre outros, consolidassem um grupo forte e representativo com força de lobby, a mesma força que um dia foi da indústria, agora agindo a favor dos artistas, pelo menos deles. A alta direção do Procure Saber ganhou o apelido de Oito Orixás, mas a presidência foi para a ex de Caetano, Paula Lavigne, empresária, pragmática, realista e que partiu para a ação.

O próximo movimento do grupo foi levantar oposição à demanda das editoras em mudar a lei, permitindo biografias não-autorizadas. O grupo publicou uma nota se manifestando a favor da permanência da lei como está, mantendo o privilégio dos biografados de proibirem, ou autorizarem, inclusive mediante pagamento, como se fosse uma espécie de direito de imagem.

Imediatamente a insatisfação contra esta espécie de censura levantou-se e rugiu. Jornalistas e a imprensa, outros biografáveis, a malta dos comentários, o assunto se espalhou, em princípio contra os artistas proibicionistas. Surgiram argumentos defendendo uma análise melhor. Há um conflito entre a liberdade de expressão, o direito à informação e o direito à intimidade preservada, conflito engasgado na lei, e o Supremo Tribunal Federal está tentando mediar esse ponto.

Sutilezas constitucionais à parte, o bate-boca se espalha nas redes sociais e o fenômeno se manifesta. Assim como a chuva cai e a grama cresce, falar mal é da natureza humana.

Os novos arquétipos em ascensão dão as caras. No more guitar heroes. O negócio agora é pesar no sarcasmo, pisar no defeito, esverdear a ironia. Um universo em desencanto se acaba em dedos apontados, acusando, indo ao âmago, dando nomes e sobrenomes, dia e hora.

Sim, porque agora temos como levantar a capivara de qualquer um, em algum lugar da rede alguém vai buscar a declaração feita em 1992, contradizendo sua opinião de hoje. Suas letras de músicas desmentem suas ideias, ou afirmam a nossa postura de lutar pela liberdade, ou ainda jamais pensei que você, meu ídolo, fosse capaz de tanta mesquinharia.

Deu para entender? Há uma disputa pela atenção no meio da confusão, cada um quer ser melhor algoz, acertar a pedra na cabeça, no olho, onde sai mais sangue. Subitamente o debate é considerado relativismo, coisa de fracos. Não é disso que a turba precisa. Queremos Chico Buarque na lama junto conosco, é pessoal e valem todas as fofocas, boatos e maledicências.

Pessoalmente prefiro as biografias livres e soltas e multa e cadeia para a canalha que escrever mentiras, assim decidirá um juiz. Até acho que o Supremo pode dar uma ajuda em fazer a coisa clara, pode explicar aos herdeiros o alcance limitado do seu poder sobre as coisas que já entraram para a cultura, o lugar comum. Tomara.

O fenômeno é a avalanche de opiniões. De uma em uma, são gotas de chuva que se desmancham no ar. Mas quando as redes sociais acumulam as opiniões se produz essa vossoroca que desbasta a reputação de um Chico Buarque para passá-lo a limpo. Os exemplos recentes se sucedem aqui perto.

Emicida faz uma letra de um pós-samba falando de sua dor de corno. Ela não passa de uma dadeira. As meninas compreendem, têm uma leitura normal do olhar masculino, sim, é coisa de gênero. Mas as feministas resolveram que precisamos acabar com essa discriminação e chega de olhar masculino sobre tudo isso que aí está.

Não consigo acreditar que indo contra um poeta vai se resolver as coisas que os machos sem rima aprontam. Em questão de horas a rede estava cheia de palavras de ordem, e se sucederam as repetições, os likes, e começam os comentários sobre a vida sexual do Emicida, e subitamente a galera que devia estar apontando o dedo para dizer que ele é o nosso menestrel, ele fala da nossa vida, essa mesma galera ia empurrando o rapaz pro precipício das reputações.

Emicida usou o verso para provar que era dominado pelas mulheres em todas as suas músicas, só devoção e fervor. Rimou sua defesa e o contrataque surtiu. Todo mundo replicou a defesa e sossegou a multidão. Às vezes funciona, mas requer um poeta em sua máxima potência.

Tenho amigos que consideram um avanço essa possibilidade moderna de a multidão manifestar-se como tumulto e criar um fato virtual, um meme que se propagará até o fim dos tempos por sua força própria. Chico é canalha é um meme. Leonardo da Vinci também foi um canalha à sua moda. Mas o meme que resta é a obra.  Acho que as redes sociais não estão conseguindo dar essa volta, em transformar-se em aparelhos da civilização.

Fico pensando qual seria a ajuda para que se construam açudes, represas, canais que consigam criar benefícios dessa enxurrada com tanta vontade humana de participar. Tem dias que acho que é preciso um botão “não curto” para atenuar o ímpeto das malvadezas e irresponsabilidades. Um tanto de automoderação, uma retroalimentação que estabiliza um sistema prestes a surtar, instável. Sério. Tenho certeza que um debate como este das biografias teria melhores resultados se o argumentos tivessem menos ruído, menos cacofonia, menos tumulto.

Não acho que está nas pessoas a solução e nem que esta forma libertária de expressão deva ser emudecida. Mas de alguma maneira a polidez na convivência precisa ser a forma, como já é parte de nossa sociedade que, em sua enorme maioria se comporta exemplarmente no metrô, na praia e na rua. Falamos obrigado, faz favor e com licença sem pedantismo, sem afetação, são sinais de convivência resolvida.

Neste caso das redes sociais, é um problema de engenharia e de negócios. Se, por um lado a polêmica, a gritaria, o excesso é bom para os negócios, já que que causa e atrai olhares e audiência, por outro lado o trafego das opiniões é 100% controlável. Muitos sites criam mecanismos de moderação automática, o YouTube é um exemplo.

Se queremos uma rede social melhor, temos de usá-la para sua própria correção. Queremos um botão de “não curto”? Gritemos por ele, ou vamos para o tuíte e seus belíssimos mecanismos naturais de participação, a reverberação e flutuabilidade dos assuntos de interesse. O que não dá é achar que linchar, apedrejar e cuspir são liberdades obtidas com a internet. E também que passou a ser sincero e de bom tom vir a público contar seus problemas pessoais, geralmente seus fracassos, que normalmente seriam discutidos com seus e suas melhores amigas, em lugar reservado e em voz baixa, e que agora atraem multidões de likes, especialmente se o seu fracasso pessoal é vinculado a alguém cujo nome todos conhecem.

Quem vem a público reclamar de uma dívida de negócios? Quem sai por ai dizendo que está sofrendo pressão no trabalho? Ou reclamando do ex-colega, ex-parceiro? Não é assim que rola aqui fora. Pois foi isso que aconteceu com o Fora do Eixo. Uma avalanche indiscriminada de retransmissões de reclamações que normalmente as pessoas já não fariam. Foi irracional.

De tanto furor não saiu um advogado com uma manifestação jurídica, nem uma queixa trabalhista, nem uma denunciazinha ao Ministério Público, nada, só furor.

Havia fundamento nas queixas, nada que não fosse e será resolvido com um pouco de humildade e melhores maneiras, mas nada que justificasse a execração com nome e sobrenome de Pablo Capilé. Talvez ele ter declarado na TV pública que o PSDB não dialoga com os movimentos sociais tenha sido o pisão no calo das paixões politicas, que deram a ordem de “fogo nele”. Mas o que se viu foi um atestado de que as redes sociais têm uma personalidade infantil, influenciável, manipulável, e isso pode gerar consequências concretas indesejáveis.

Como uma criança, a rede precisa aprender a ter educação, a se comportar, para desenvolver uma personalidade mais “social”.

Durante a pichação do Fora do Eixo – aquele castigo medieval de cobrir com piche e penas e fazer desfilar para a turba jogar caroço de manga chupada, humilhação pública – vi pessoas das melhores instituições presentes nos fluxos de discussão. Mas não vi, não me lembro e queria que vocês me corrigissem se alguém apontou para essa distorção no convívio social. Está valendo, passou a valer? Não foi apenas um surto. Está se transformando num hábito social? Que merda, façamos algo.

Isto é uma ressalva: não sou do Fora do Eixo. Tenho relações com eles, até por ser um ativista da música, me convidam e vou lá conversar, pelo Brasil. Neles vejo um grande esforço de organizar e procurar caminhos coletivos na música dos jovens. Com todos erros e a inépcia de quem faz as coisas para aprender, mas fazem e persistem.

Só um satélite consegue enxergar a dimensão e a lonjura deste país, mas o FDE está presente no território e praticamente é a unica forma de resistência ao mercantilismo musical, aquele dos donos do negócio. A penúltima utopia, e não merecia esta afronta, especialmente desse povo barrigudo e careca que um dia acreditou em Woodstock. Carapuças, enfiar!

Pois é isso. A lei das biografias pode ter um desfecho melhor, mais cuidadoso, porém livre, torço por isso. Nossos ídolos musicais enfiaram o rabo entre as pernas e saem de cena esculhambados. Façam disso suas canções da juventude perdida.

Vai sobrar para nosotros el resto a tarefa de reconstruir a Lei Rouanet aprovando o ProCultura, a Lei do Direito Autoral, ir arrecadar direitos autorais na internet, conseguir dar um jeito na legislação trabalhista dos músicos e artistas, continuar a tentar criar uma classe, uma união, um movimento. Teria sido lindo, mas o Procure Saber, só se voltarem dispostos a trabalhar pelos outros colegas. Faz parte, é do futebol. Toca reto.

 

(Pena Schmidt é produtor musical e diretor de palco. Foi superintendente do Auditório Ibirapuera, diretor artístico da gravadora multinacional Warner Music e proprietário do selo independente Tinitus. Trabalhou com MutantesJorge Ben Jor, Jorge MautnerTitãsIra!, Camisa de VênusUltraje a RigorOs Mulheres Negras, entre outros artistas. Escreve o blog Peripécias do Pena.)

 

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