Ellen Oléria é mulher, negra, homosssexual (“e gorda”, ela própria acrescenta). Ellen é minoria em, pelo menos, quatro graus distintos e entrelaçados. Ela é uma coleção, uma corporação de minorias. “Meu nome é encruzilhada”, canta em “Linhas de Nazca”, fazendo referência a misteriosos desenhos geométricos esculpidos em solo desértico peruano. Quinta minoria: Ellen é compositora da maioria das canções que interpreta.

Sendo minoria da minoria da minoria da minoria da minoria, Ellen se tornou The Voice, “a voz”, vencedora incontestável da primeira edição do programa revelador de talentos da Rede Globo, batizado, assim mesmo, cafona e provincianamente em inglês. Carlinhos Brown, negro baiano brasileiro de fibra e fímbria, apadrinhou-a e ajudou a conduzi-la ao triunfo na TV. No prêmio, estava incluído o direito de gravar, pela gravadora multinacional Universal Music, seu segundo e recém-lançado álbum, intitulado simplesmente Ellen Oléria. “O caminho é pelo mato amassado/ o caminho é pela pedra polida/ essa é a trilha das linhas de Nazca/ é a minha voz na poesia de maca/ meu nome é encruzilhada.”

O verso forte que remete a dilemas, decisões e rituais afro-brasileiros é também uma linha demarcatória de origem. Ellen nasceu há 30 anos em Brasília e foi criada no bairro periférico do Chaparral, em Taguatinga, uma das cidades-satélite pobres e violentas que contornam o bolsão de riqueza da capital do Brasil. Encruzilhada, ela lembra, é também a cruz cheia de setas em verde e amarelo que compõe a bandeira do Distrito Federal. Retrato cru de desigualdade social persistente, Brasília é encruzilhada. Arraigada no Chaparral (nome extraído de seriado norte-americano de bangue-bangue), Ellen é confederação de minorias.

A Rede Globo não inventou Ellen Oléria. Dois anos antes da consagração televisiva, eu assistia à programação de shows da Feira da Música de Fortaleza, no Ceará, quando me vi de repente diante da algo inacreditável. Era uma banda formada por mulheres e homens, negros e brancos, que juntos praticavam rock e funk e folk e blues e MPB e reggae e rap. Chamava-se Pretutu a banda. Para meu espanto, a figura central era uma mulher, negra, alta etc., que empunhava uma guitarra e trovejava palco e plateia na voz, nos versos, na guitarra e na presença.

Uma banda de rock capitaneada por uma mulher negra: nunca havia visto algo parecido. Talvez não exista mesmo nada parecido, com a possível exceção da figura impressionante de Odetta (1930-2008), sacerdotisa norte-americana que nos anos 1960 extraía sangue da guitarra e da música folk. Odetta, diferentemente de Oléria, não costumava compor nem se afastar dos preceitos rigorosos do gênero musical que escolhera.

ellenoleria_01Ao final do show da Pretutu em Fortaleza, corri para a barraquinha de CDs e comprei Peça (2009), o álbum solo independente de estreia de, aprendi o nome dela, Ellen Oléria. Era forte, recheado de raps e canções sobre violência, ternura e tesão.

Pouco tempo depois, meu espanto sofreu um flashback em Belém, no Pará, durante um festival do programa Conexão Vivo. Tudo de novo: mais uma mulher negra liderando outra banda, dessa vez chamada Soatá e empenhada numa original mistura de rock com carimbó amazônico. Não demorou muito para eu perceber que era ela mesma, Ellen Oléria, liderando outra banda, outra turma, outra formação, outro barato. Não acompanhei o The Voice da Globo, mas assim que, pela terceira vez, reconheci aquela presença no auditório global imaginei que a taça era dela e ninguém tascava.

Sentada toda colorida e de sorriso aberto numa mesa de reuniões da Universal Music, em São Paulo, Ellen explica a conexão materializada na Soatá: namorou durante três anos uma paraense, vivendo com ela sempre na ponte Belém-Brasília, e assim se fez sua viagem musical ao carimbó e à riquíssima cena musical de lá. “Fui seis anos seguidos no Círio de Nazaré. Eu ia para a festa profana”, ri, referindo-se à Festa da Chiquita, comemoração gay paralela que acontece em meio à celebração católica. Não à toa, Ellen fala da paraense Gaby Amarantos com carinho e respeito, reconhecendo nela uma semelhante apesar das inúmeras diferenças musicais.

Ela gargalha diante da minha primeira pergunta (e, não sei se ela sabe, da minha alegria de estar pela primeira vez frente a frente com sua força): Por que o seu nome é encruzilhada? “Você começou cabuloso”, hesita. O gravador pifa e perco a transcrição da primeira metade da entrevista, até perceber meu fiasco e ligar às pressas o gravador do celular. Não sei se conseguirei lembrar as respostas sobre a encruzilhada.

Lembro, por exemplo, que ela definiu sua encruzilhada-Brasília como um “não lugar” – nome, por sinal, de uma sua canção gravada no primeiro CD e regravada no segundo. “Brasília não tem bairros, tem quadras. Não tem cidades, tem satélites”, descreve. O pai (sanfoneiro, forrozeiro) veio de Araçuaí, Minas Gerais. A mãe (mestiça de negra e índia) veio de Uruaçu, Goiás. O pai foi motorista dos Correios por 30 anos, a mãe foi empregada doméstica, lavadeira, diarista, vendedora de cosméticos. Filha brasiliense de Uruaçu com Araçuaí, Ellen, aos 14 anos, já trabalhava numa floricultura.

Os pais se separaram cedo e os três filhos foram criados pela mãe, que lhes deu estudo – Ellen, ingressa na última turma pré-cotas da Universidade de Brasília (UNB), se formou em artes cênicas e está “doidinha para fazer um mestrado”. “Quase peguei as cotas. Se pudesse, ia pegar mesmo”, diz. “Acabei fazendo um curso que tem muito status, dentro da universidade federal, que é de difícil acesso. Rola uma desesperança, para a gente que é formada em escolas públicas, de passar por ali. Isso também integra uma ideia de fazer da minha música meu projeto político”, afirma, afirmativa. O nome de Ellen é encruzilhada, confederação de minorias, Brasília, Brasil. O nome de Ellen Oléria é Brasil anos 2000, época de ascensão social de brasileiros com cara e jeito de brasileiros.

“O acesso ao desejo é a coisa mais custosa para a gente”, descreve a mulher-encruzilhada. Como é comum em músicos de sua geração que vêm da periferia (como Gaby, Emicida ou Marcelo Jeneci), a Ellen cantora foi fermentada em coros de igreja evangélica. “A igreja é um negócio muito legal pra gente que mora nas quebradas, porque a música é uma coisa muito cara. Os instrumentos, os microfones, todo o equipamento de áudio é muito caro”, diz. “Chegava duas horas mais cedo que os ensaios combinados na igreja pra poder tocar nos instrumentos. Ali toquei num set gigantesco de percussão, caríssimo, maravilhoso. Toquei numa bateria, num baixo. Existe um investimento muito grande em música, principalmente nas tradições protestantes.”

Pergunto se ela é evangélica até hoje, e Ellen explode em nova gargalhada: “Não, eu sou sapatão. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Nem saí da igreja por isso, saí inocente nessas coisas. Mas não, não dá. Na prática, a gente começa a ver que a instituição foi criada para nos atender, mas de repente é a gente que tem de atender à instituição, servir à instituição. Não dá.”

A cantora Ellen correu na frente da atriz Oléria, por razões bem práticas. “A música acabou virando mais rapidamente um meio de subsistência. Só consegui cursar artes cênicas porque trabalhava com música. Saía da universidade e ia pro boteco tocar, ia fazer noite. Nessas de voltar muito tarde pra casa, fui assaltada algumas vezes. Perdia meu investimento de meses. Tinha acabado de pagar um violão em seis parcelas e aí alguém levava”, reproduz em prosa a história que conta em ritmo de rap na canção “Testando”. “Conhece a carne fraca?/ eu sou do tipo carne dura.”

De repente pergunto: Ellen, você tem noção da sua façanha? “Oi?”, ela responde antes de trovejar mais uma gargalhada aberta. Às mulheres negras, observo, até recentemente só era permitido cantar samba. A constatação a faz evocar um refrão que compôs mais em tempo de rap que de samba: “Salve negras dos sertões, negras da Bahia/ salve Clementina, Leci, Jovelina, e salve/ nortistas caribenhas clandestinas/ salve negras da América Latina.”

Lembra história contada por Leci Brandão: “Jovelina Pérola Negra não fez vários programas de TV porque os produtores diziam que ela era negra demais pra tela. Oi?, Brasil?”. Conta que Leny Andrade, mulher negra que optou pelo jazz e pela bossa nova, lhe telefonou sem conhecê-la quando a viu cantando “Nuvem Passageira” (1976), do gaúcho Hermes Aquino, na TV Câmara. “Leny me disse assim: ‘Não gosto de nada, não aguento mais nada, não tenho paciência. Mas vi você cantando e achei bonitinho’”, recorda, disfarçando a timidez e o orgulho numa só gargalhada.

Se o primeiro álbum era 100% autoral, no novo ela se adapta ao padrão The Voice, trazendo ao convívio das canções autorais um imaginário musical brasileiro que revela muito sobre ela, Oléria. O Nordeste pernambucano de Alceu Valença abre o disco, com “Anunciação” (1983). Há duas canções raciais do gênio negro do samba-soul Jorge Ben (Jor): “Taj Mahal” (1972) e “Zumbi” (1974).

De Milton Nascimento, inventor (negro) do clube da esquina mineiro, ressurgem outras duas: “Maria, Maria” (1978), imortalizada pela voz da gaúcha Elis Regina, e a mais obscura “Aqui É o País do Futebol”, canção crítica sobre futebol lançada pelo trágico carioca Wilson Simonal no contexto da Copa do Mundo de 1970. “Brasil está vazio na tarde de domingo, né?/ olha o sambão, aqui é o país do futebol/ esqueço a casa, o trabalho/ a vida fica lá fora/ o dinheiro fica lá fora/ […] o salário fica lá fora/ a fome fica lá fora”, canta, secundada por um rap do padrinho televisivo-musical Carlinhos Brown.

Mas e a façanha? Havia dentro dela a confiança de que sua densidade e sua multidão íntima de minorias poderiam vencer o programa edulcorado dos domingões da rede conservadora de TV? “A gente não sabe como são os processos, que interesses estão envolvidos, que tipo de controle existe. Eu não controlo o processo, só posso fazer o meu. Isso eu posso garantir, estudei bastante, estudei as músicas, planejava o que ia fazer no palco. Na hora não fazia nada de tão nervosa”, alegoriza o (des)controle.

Uma outra coisa ela não podia controlar, mas parece ter indiretamente controlado. As identidades feminina, negra e “gorda” estão escritas na testa, mas para se declarar homossexual diante de todo um país seria necessária uma saída de armário.

“Da primeira vez que convidei minha namorada pra ir comigo no programa, botei ‘namorada’ na rubrica pra identificar parente. Aí não botaram”, constata, num tom quase magoado de voz. “Comentei com umas duas meninas, que nem eram daquele setor: ‘Poxa, será que não vão botar?’”.

Ou seja, Ellen queria que colocassem, certo? “Pensei que ia ser legal, porque é, né?”, ri. “Aí o (apresentadorThiago Leifert atravessou o palco e me disse: ‘Acaba de aparecer a legenda embaixo, mãe e namorada da Ellen’. Eu disse: ‘Você tá falando sério?’”. A artista imprime a essa última oração um sentimento de gol, colocando na voz o maior sorriso do mundo. Sim, sua identidade sexual foi exposta para milhões, e a reação foi a melhor possível, entre espectadores e até entre amigos a princípio receosos. “Depois todo mundo fez farra, mesmo os muvucados, os escondidos, os 007”, provoca.

Tijolo sobre tijolo, minoria sobre maioria, Ellen Oléria vai vencendo barreiras e desafios, movida por uma autoconfiança que lhe parece natural, mas que é nova para mulheres brasileiras quaisquer, quanto mais as parecidas com ela. Cada uma de suas identidades fortalece as outras, e assim se rompem os laços de desavenças entre minorias distintas, que é motriz cruel de todos os preconceitos.
Nas explicações que encontra para harmonizar suas encruzilhadas, Ellen atribui valor máximo ao ofício que abraçou: “A música que faço é mais esperta que eu. Ela é muito maior do que nós, do que nossas limitações pessoais”. Mas, ora, não é de dentro dela que a música brota? Ellen Oléria, seu nome é legião. Seu nome é todos nós.

 

(Texto publicado originalmente na edição 124 da revista Fórum.)

 

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9 COMENTÁRIOS

  1. Feliz em poder conhecer melhor o trabalho da Ellen!! Eu sabia só da passagem pelo The Voice.
    Sabe que eu a imagino cantando blues como aquelas cantoras antigas, sabe? Acho que ficaria muito bom…

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