O que nos faz monstros? O que nos faz artistas? Talvez essas sejam as questões centrais levantadas na terceira temporada da série da Netflix Monster, criada por Ryan Murphy e Ian Brennan, que conta a história de Ed Gein (1906-1984), conhecido como “o açougueiro de Plainfield”. Gein ficou menos famoso por matar pessoas e mais pelo que fazia com seus corpos e com os corpos que desenterrava do cemitério de sua cidade, em Wisconsin. Além de praticar necrofilia, usava os ossos humanos e as peles para fabricar utensílios domésticos, como tigelas, cúpulas de abajur, forros de cadeiras, roupas, máscaras e espartilhos.
Ryan Murphy, conhecido por produções que abordam o universo LGBTQIAP+, acentuou os aspectos queer da personagem central da série. Gein era obcecado pela figura materna e expressava o desejo de ter um corpo feminino, usando para isso as peles, cabelos e vulvas que retirava de cadáveres de mulheres. Além disso, expressava o seu fascínio pela história de Christine Jorgensen, uma das primeiras mulheres trans a ganhar notoriedade, na década de 1950. No entanto, para evitar o risco de patologização e estigmatização de mulheres trans, associando-as a um criminoso “monstruoso” como Gein, a série apresenta a personagem de Christine como um contraponto, lembrando que mulheres trans são muito mais vítimas de violência do que assassinas e levantando a hipótese de Gein usar corpos de mulheres e roupas íntimas femininas não por se identificar como uma mulher, mas por desejar penetrá-las violentamente da maneira mais profunda, já que a penetração peniana havia sido interditada por sua mãe repressora.
Por outro lado, a série é feliz ao mostrar como Anthony Perkins, ator que se consagrou ao interpretar em Psicose (1961) Norman Bates, um personagem baseado em Gein, se via como um monstro pelo simples fato de ser homossexual. Da mesma forma como uma mãe fundamentalista religiosa e castradora pode ter ajudado a criar o “monstro” Ed Gein, uma sociedade fundamentalista religiosa e castradora, com a legitimidade do discurso médico/psicológico, cria “monstros” como Perkins ao rotular quaisquer desviantes como tal.
A única amiga/namorada de Gein na série, Adeline Watkins, é uma garota vista como anormal por se identificar, em uma cidade pequena, com os valores modernos da cidade grande e rejeitar o papel social que lhe atribuíram, o de esposa obediente, frequentadora de cursos de corte e costura, para viver livremente sua sexualidade e trabalhar como fotógrafa. A união de Ed Gein e Adeline Watkins na série nos remete a uma espécie de Família Addams, criada em 1937 como cartoon e popularizada nos anos 1960 como série de TV. Vistos como excêntricos, os Addams se divertiam desenterrando seus parentes mortos. O humor mórbido dos Addams fazia uma crítica aos valores da família tradicional estadunidense WASP e ao american way of life. Trazendo referências das culturas judaica e latina, os Addams eram vistos como os “outros”, desajustados e, portanto, aterrorizantes. Da mesma forma, não é à toa que os fãs de Lady Gaga se autodenominam “little monsters”. Vítimas da violência LGBTfóbica, assumem com orgulho a identidade queer, termo originalmente pejorativo para designar algo estranho ou bizarro.
O questionamento do que pode ser considerado um monstro também é levantado pela série de uma outra perspectiva interessante. Ed Gein era fascinado pela nazista Ilse Koch, conhecida como “a bruxa de Buchenwald” por colecionar pedaços de peles de presos do campo de concentração tatuadas e confeccionar com eles cúpulas de abajur. As imagens dos cadáveres de judeus amontoados como gravetos teriam feito com que Gein, numa tentativa de normalizar o que tinha visto, passasse a reproduzir as práticas nazistas.
Ocorre que, para o regime nazista, Ilse Koch e figuras como Josef Mengele não eram considerados monstros. Suas ações estavam respaldadas pela ideologia dominante e suas vítimas eram vistas como ratos ou baratas a serem eliminados ou usados em experiências macabras. Hannah Arendt não define Eichmann, responsável por operacionalizar a solução final contra judeus, como um monstro, mas como um burocrata medíocre que obedecia cegamente a ordens e almejava mostrar um trabalho eficiente. Por sua vez, pendurar o cadáver desfigurado de Mussolini de cabeça para baixo, episódio mencionado sutilmente na série, pode ser encarado como um ato justificado de resistência ou vingança e não uma monstruosidade.
Na perspectiva de um militante vegano radical, decorar a parede de uma casa com cabeças de animais caçados pode ser tão repugnante quanto decorá-la com cabeças humanas. Elize Matsunaga, inclusive, usou os conhecimentos que adquiriu caçando para matar e esquartejar seu marido. A forma como um peru é cortado em um almoço de Dia de Ação de Graças na série de Gein desperta o trauma do filho de uma das vítimas, que teve o corpo decapitado, aberto e pendurado, como em um açougue. Norbert Elias mostra, em O Processo Civilizador, como a forma de apresentação da carne na mesa foi alterada para desassociar o alimento de seu aspecto mórbido. Se hoje o uso de peles de raposa é malvisto, o uso de couro de boi em sapatos, roupas e móveis ainda é naturalizado e não causa a mesma repugnância na maioria da população, que não enxerga a prática como macabra.
A arte, ao transgredir padrões do chamado bom gosto, pode causar estranheza, incômodo, ferir sensibilidades e colocar em dúvida dogmas sociais. É curioso lembrar, assim, que Lady Gaga, a mãe dos little monsters, causou alvoroço ao usar no MTV Video Music Awards de 2010 um vestido de carne bovina para protestar contra a política do “don’t ask, don’t tell” nas forças armadas estadunidenses, que discriminava militares LGBTs. Artistas visuais e performers, como Berna Reale e Gunther von Hagens, foram ainda mais longe ao utilizar ossos ou cadáveres humanos plastinados em suas obras. Assim como o criminoso é alvo de um processo de rotulação social que o estigmatiza, o artista se faz artista reconhecido por instâncias de legitimação como a crítica, os colegas e o público.
Talvez o maior mérito de Monster – A História de Ed Gein seja assumir que seria demasiadamente pobre se limitar a contar a história pessoal de Ed Gein, ignorando o que ela nos diz sobre a sociedade, o poder das imagens, o impacto do protagonista no imaginário social e cultural, inclusive na história do cinema. Brincando com a metalinguagem, a série conta os bastidores dos filmes Psicose, de Alfred Hitchcock, O Massacre da Serra Elétrica (1974), de Tobe Hooper, e O Silêncio dos Inocentes (1991), de Jonathan Demme, todos inspirados em Gein. Ao desenterrar Ed Gein, a série de Ryan Murphy o usa como fio condutor para costurar as histórias de personagens tão díspares como Ilse Koch, Christine Jorgensen, Anthony Perkins e outros criminosos que marcaram o imaginário social dos Estados Unidos. Como um Frankenstein às avessas, todos carregam um pedaço de Gein que ajuda a compreendê-lo melhor.
Os monstros – vampiros, zumbis, ETs etc. – refletem os medos e contradições de cada época. A personagem de Hitchcock na série explica que Norman Bates mostra que o verdadeiro monstro habita em nós, ou seja, é profundamente humano. A edição da série une o voyerismo de Gein e de Hitchcock, intercalando cenas em que ambos espionam mulheres por buracos. Mostra a plateia de Psicose no cinema reagindo a uma cena em que o Gein da série – e não o Bates do filme – age. Intercala cenas recriadas de Leatherface, o vilão de O Massacre da Serra Elétrica, e de Gein perseguindo suas vítimas com a serra elétrica, assim como cenas recriadas de Buffalo Bill, de O Silêncio dos Inocentes, e Gein dançando, usando diferentes fotografias para demarcar o terreno da ficção recriada e o da “realidade” ficcionalizada, da criatura e do criador, do personagem de cinema e da inspiração. A série incorpora códigos reconhecidos do gênero de terror, como sustos, sombras, perseguições e trilha sonora tensa, para contar a história de Gein, que influenciou tanto filmes paradigmáticos de terror, fechando assim o ciclo metalinguístico.
Monster – A História de Ed Gein pode ser considerada, assim, uma grande homenagem ao cinema e a seu poder de recriar histórias. Quando a lápide de Gein é depredada na série, são as personagens de cinema inspiradas nele que aparecem no cemitério para assombrar o depredador, mas também para passar o recado de que esses filmes guardarão sua memória.
Tanto Perkins quanto Hitchcock se tornaram vítimas do próprio sucesso. O primeiro, estigmatizado como ator “estranho”, foi obrigado a reinterpretar Norman Bates em outros filmes, enquanto o diretor acabou despertando na audiência o gosto insaciável por sangue, ajudando a criar, ainda que involuntariamente e indiretamente, os subgêneros de “terror sexual”; slasher, em que um assassino persegue e mata um grupo de jovens, geralmente restando no final uma jovem hipersexualizada; e gore, que traz representações gráficas de muito sangue e violência.
Embora se reconheça que a influência de produções culturais sobre o comportamento das pessoas é apenas secundária, indireta e mediada por uma série de fatores (biológicos, psicológicos e sociais), não deixa de ser interessante notar que, assim como Gein tinha fascínio por imagens do Holocausto e sua amiga/namorada por fotografias de vítimas de homicídios de Nova York, vistas por ela como obras de arte, a audiência dos filmes de terror influenciados pela história de Gein e da série Monster – A História de Ed Gein, que se insere no fenômeno das séries de true crime, apresenta um comportamento de certa forma necrófilo, por mais que as cenas mostradas não sejam as reais e se reconheça que contar essas histórias também seja uma forma de exorcizar, por meio da ficção, o terror real.
Em artigo publicado na Folha de São Paulo em que analiso as séries sobre Jeffrey Dahmer e as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), defendi que um policial que mata dezenas de pessoas não é visto socialmente como um serial killer, por supostamente estar agindo em “legítima defesa” ou em “estrito cumprimento do dever legal”. A série sobre Ed Gein reforça esse argumento ao mostrar Tobe Hooper, diretor de O Massacre da Serra Elétrica, justificando a necessidade de fazer um filme de terror que denunciasse, por meio do excesso de violência, como a sociedade estadunidense estava anestesiada e normalizava os crimes terríveis cometidos por seu Exército na Guerra do Vietnã. A série mostra que uma das inspirações de Hooper foi a vontade de eliminar com uma serra elétrica em promoção no supermercado a fila enorme de clientes que estavam na sua frente. Há, porém, uma diferença radical entre fantasiar e realizar e entre realizar no cinema e realizar na vida real. Situação bastante distinta de assistir a um filme de terror ficcional é o do episódio de setembro de 2025 em que três jovens argentinas foram assassinadas e esquartejadas com transmissão ao vivo para quarenta e cinco pessoas em uma rede social.
Ed Gein sofria de esquizofrenia e, portanto, não foi considerado apto para ser julgado. Em vez de cumprir pena em uma prisão, foi internado em um manicômio. Em um instante de lucidez, questiona na série por que é tratado então como um criminoso, recebendo um castigo em uma instituição que parecia uma prisão, e coloca em xeque o discurso médico-jurídico que sustentava que ele estava recebendo um tratamento. A ideia do criminoso como um ser doente, que tem o seu comportamento determinado biologicamente, prevaleceu no nascimento da criminologia, no fim do século XIX. Se por um lado ele era considerado diferente do ser humano normal, patologizado, por outro, não poderia ser responsabilizado por seus atos.
Ao humanizar Gein, retratando-o com uma pessoa solitária, com um tom de fala quase infantil, e despertar a empatia do público por ele, a série corre o risco de ser acusada de minimizar seus crimes. Porém, com um humor ácido, Monster – A História de Ed Gein fantasia uma pseudo-redenção de Gein no reencontro com sua mãe, ridicularizando o absurdo do culto aos criminosos e da ideia de self-made man. A série problematiza, de forma cínica, o fato de Gein não ter contado sua própria história, sendo vítima de representações distorcidas, exageradas e mentirosas no cinema, quando a própria série fantasia episódios para fins dramatúrgicos.
Gein é retratado na série como uma espécie de ídolo e modelo para outros assassinos que praticavam atos similares aos dele, como Richard Speck, Edmund Kemper e Jerry Brudos, mas virou também uma espécie de ícone pop. Inspirou personagens icônicos do cinema, foi tema de músicas e alimentou, ainda que indiretamente, uma indústria cultural e do entretenimento milionária, da qual ele não se beneficiou. A imprensa que cobriu o caso na época não é poupada na série, sendo os jornalistas retratados como abutres, o animal que se alimenta de cadáveres. Os habitantes da cidade que fazem turismo na fazenda do açougueiro de Plainfield, após sua prisão, e tentam adquirir souvenires, por sua vez, fazem o xerife diagnosticar a sociedade – e não apenas o criminoso – como doente. A frase insistentemente repetida pela mãe de Gein na série – “só uma mãe poderia amá-lo” – carrega uma boa dose de ironia, nesse sentido.
(Danilo Cymrot é mestre e doutor em criminologia pela Faculdade de Direito da USP. Pesquisador cultural, é autor de O Funk na Batida – Baile, Rua e Parlamento, Edições Sesc, 2022, finalista do Prêmio Jabuti.)