Nunca tinha visto o ministro Juca Ferreira tão ressabiado. Não era o mesmo expansivamente soteropolitano Juca que atendeu o telefone na tarde da última sexta.
Uma semana ministerial zicada precedeu essa entrevista, e foi o que a motivou. O ministro ainda se batia em explicar a interpretação de que um folder que distribuiu no Senado continha propaganda eleitoral extemporânea. Um dia antes, disse a dois jornalistas no Rio de Janeiro que estes recebiam para “escrever mentiras”. E acrescentou: “Meu pinto, meu coração, meu estômago e meu cérebro é uma linha só. Não sou um cara fragmentado, entendeu?”. Era um pouco mais de franqueza do que de costume, uma espécie de desabafo. Não era o mesmo Juca de antes, decididamente.
Juca Ferreira tem a (saudável) reputação de ligar para os jornalistas quando estes publicam algo que avalie como sendo desfavorável a si. Não faz isso com truculência, contudo. Acredita de fato em dialética. Pode assustar (ou deslumbrar) o repórter mais despreparado, mas apresenta-se de cara limpa para o embate. Não raro, dispensa a intermediação das assessorias de imprensa, o que é cada vez mais raro entre homens públicos.
Liguei, a serviço, para questionar o Ministro da Cultura sobre os incidentes da semana. O essencial da entrevista já foi publicado, mas achei que poderia ser publicada na íntegra. Ei-la:
Há federações de jornalistas que manifestaram indignação (em relação às declarações), dizem que o sr. exagerou ao dizer que os jornalistas só escrevem mentiras.
Tem três assuntos que são importantes nessa série de incidentes e toda essa questão. O primeiro é o que aconteceu no Senado em torno do folder. O segundo é esse diálogo que eu tive no Rio de Janeiro. A terceira é o pinto, que eu acho que é o mais irrelevante, porque ali não tem palavra de baixo calão. Eu fico surpreso de ficarem surpresos que o ministro também tem pinto. E eu estava descrevendo os meus chacras, eu também faço parte dessa cultura desde a década de 60. Eu falei do cérebro, do coração, do estômago, e ficaria estranho, inclusive para a tese que eu estava defendendo, que é a integridade, que eu não falasse. E falei uma palavra que é falada em qualquer mesa dominical das melhores famílias brasileiras que é PINTO.
E esse caso o sr. acha irrelevante.
Mas torna-se relevante porque, de alguma maneira, há uma demanda de que, para ser ministro, tem de ser eunuco. Os eunucos eram os assexuados ou castrados que tomavam conta das mulheres dos sheiks, e pela delicadeza da função deles, os sheiks queriam ter a confiança de que não haveria nenhum acidente de percurso. Mas para cuidar da cultura, eu acho muito melhor um ministro íntegro tanto no sentido ético, quanto no que eu aprendi e procuro manter como uma força pessoal, que é essa minha inteireza. Sei que tenho um cérebro, e frequentemente exercito; tenho coração, tenho afeto; tenho estômago, não abstraio minha necessidade de manter minha matéria; e tenho um outro chacra importante que é o sexo. Num país onde as pessoas vão à praia quase nus, onde liga a TV e vê uma liberdade que não é vista em muitos países do mundo, levantar que isso seria chocante, eu acho hipocrisia. Vou mais longe: na entrevista de 100 anos do nosso querido Oscar Niemeyer, o principal arquiteto do Brasil, ele fez questão de dizer, sem ser perguntado, que não compreendia porque as pessoas, com o tempo, se desinteressam pelo sexo. E que, com 100 anos, ainda era praticante, e isso não o tornou menor, pelo contrário, deu uma noção exata da grandeza dele. E foi mais longe: disse que as formas que ele encontrou na arquitetura para expressar sua criatividade são quase todas inspiradas nas formas femininas, o que demonstra a coerência dele. O Darcy Ribeiro, que foi outro grande brasileiro, nunca deixou implícita nem secundarizada a paixão dele pelas mulheres, que durante toda sua vida foram um móvel importante de toda sua existência. Michel Foucault, quando esteve na Bahia, disse que o que mais lhe chamou a atenção no Brasil, principalmente na Bahia, é que pela primeira vez, ele via pobre com orgulho corporal. “Cuidem disso, é o que vocês têm de mais precioso”. É uma hipocrisia. O Globo, na matéria que publicaram, disseram que “Ministro diz que sua indignação irritou até o pinto”. Eu não disse isso em nenhum momento, é uma chacota. Porque meu pinto, em toda sua existência, nunca se interessou por assuntos políticos ou econômicos. Eu não estava dando uma entrevista, estava enfrentando um jovem jornalista, que estava me provocando diante da minha afirmação que não daria entrevista sobre o folder. Eu estava indignado com a reportagem em que diziam que o folder apresentado no Senado continha propaganda eleitoral. É apenas um folder estimulando que os parlamentares votem na pauta da Cultura. O jornalista ficou atrás de mim, me perseguindo, perguntando se eu não me sentia mal usando dinheiro público para patrocinar campanha política, e que eu tinha mentido. É uma técnica que alguns jornalistas usam, que não enobrece a imprensa brasileira. Eu perguntei: ‘Você leu o folder?”. Ele disse não. Eu disse: a imprensa tem de ser investigativa. Mas, no caso, reagiu a um factóide, que é normal que aconteça no enfrentamento entre oposição e situação, mas a imprensa reverberar é um erro. Ele insistia, insistia, insistia. Continuou dizendo: “Mas usou dinheiro público”. Aí eu voltei e disse: eu não sou vocês que recebem dinheiro para contar mentiras. Claro que eu não estava me referindo à imprensa. Em nenhum momento eu usei a palavra imprensa. Eu estava me referindo às pessoas que, independente dos fatos, desrespeitam a dignidade das outras pessoas. Agora, assumo que, naquele enfrentamento, a minha palavra isolada dá a impressão que eu estava mandando recado para a imprensa. Então, me penitencio. Não estava generalizando. E coloco na mesa toda minha relação com a imprensa que é bastante positiva. O ministério sempre esteve totalmente aberto à imprensa, mesmo em momentos que recebo conselhos da possibilidade de manipulação. Ela sempre teve acesso aos processos financeiros, aos fluxos. Eu considero na imprensa como um protagonista no mesmo espaço onde eu atuo, que é a esfera pública, com a função de fiscalizar , de noticiar, de representar um tipo de abordagem que não é antagônica, mas complementar à minha. Me orgulho da liberdade que a imprensa tem no governo Lula.
O que aconteceu no Senado em termos do folder? O sr. não considera que foi propaganda eleitoral?
Absolutamente. Eu vou fazer propaganda? Ali tem 90 deputados da oposição, inclusive os líderes na Câmara. Eu tenho costume de ligar para parlamentares quando dão declarações sobre a cultura. Na semana passada liguei para o Tasso Jereissati e o Arthur Virgílio pedindo que tratassem com isenção generosidade o Vale Cultura, que era um mecanismo que ia beneficiar 12 milhões de pessoas, que não podia ser usado politicamente. E que eu assumia que era um presente que o Congresso ia dar perto do Natal para os trabalhadores brasileiros. Por que eles tinham dado uma declaração dizendo que tinha medo que o Vale Cultura fosse beneficiar o filme do Barreto. Eu disse que não tinha nada a ver, porque uma vez aprovado, o Vale Cultura vai passar por uma série de processos de licitações, primeiro das empresas operadoras, credenciamento das lojas, livrarias, cinemas, teatros que vão usar o cartão magnético. Eu disse que, se, no início de 2011 estiver funcionando, estamos no prazo. E aí, nessa conversa, eles foram muito receptivos, o Virgílio me disse que respeitava o MinC, que não era usado politicamente, que tinha atitude suprapartidária, tinha respeito por mim e minha equipe. Aconselhou que fosse ao Congresso, fizesse um esclarecimento. Proponha à Comissão de Assuntos Econômicos, que é dirigida pelo Garibaldi Alves. Eu conversei com o Garibaldi Alves, ele disse “boa idéia, venha falar com a relatora”. Mas, no dia que eu fui lá, notei uma tensão. Fiquei esperando 2 horas, uma indelicadeza, não se faz isso. Porque mudaram a pauta. Mas tudo bem, não sou uma pessoa que tenha grandes exigências. Fiquei lá, disciplinadamente na sala ao lado. Notei uma tensão. Tinha chegado na véspera a pesquisa que dava um crescimento de Dilma e queda do José Serra. Havia também o medo de ser usado para o filme do Barretão. Havia uma pressão de incluir as revistas semanais. Mas era uma tensão normal, eu já fui vereador em Salvador, e sei que qualquer coisa, especialmente em ano eleitoral, ganha conotação política, enfrentamento. Mas isso é a parte mais superficial, mas nós temos 7 anos de trabalho suprapartidário, temos projetos em todos os Estados do País, todas as capitais, independentemente da orientação política do governador ou do prefeito. Temos atendido a todos os parlamentares, independemente se são de oposição ou não, inclusive incorporando sugestões deles. Porque eu não considero o Estado uma propriedade do partido que ganha eleição, nem da terra dos que venceram a eleição. Trato isso aqui com uma consciência republicana absoluta. Mas eles queriam criar um constrangimento para o governo. Eu era o ministro errado, na hora errada, no lugar errado. Havia uma tensão da vida política normal, da refrega partidária, e usaram a gente como mecanismo de expressão desse conflito. Um senador até disse assim: “Ministro, desculpa. Se não fosse o folder, seria o ar-condicionado, mas alguma coisa ia acontecer aqui hoje”. O folder é… você já viu o folder?
Sim, já o vi. Está no site de vocês
A superfície interna tem quatro dobras. Quando abre a central, que é a única integrada, tem esses 8 projetos que interessam aqui, que são projetos pactuados. Anteontem, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro se solidarizou comigo, abriu o evento dizendo o seguinte: “O ministro Juca não precisa de solidariedade, mas eu queria dizer aqui que o folder não tem nada de partidário. Foi uma demanda que nasceu aqui, dentro do Palácio Guanabara, em Laranjeiras, e eu estava presente. Foi uma demanda dos movimentos culturais, sindicatos, de que é preciso encaminhar essa pauta imediatamente.” Quem propôs que financiássemos foi a Frente Parlamentar em defesa da cultura.
Mas, num primeiro momento, o sr. reconheceu como um erro.
Mas não um erro desse tipo. O que foi que eu reconheci? O Arthur Virgilio me perguntou: “Ministro, isso aqui tem dinheiro do ministério?”. Eu disse: não sei, mas podemos saber. Chamei a assessora e pedi para saber. Aí veio a resposta e eles me diziam que não tinha. Eu pedi para confirmar, com medo de algum erro. Aí confirmaram que não tinha. Eu reconheci então que, se não tinha dinheiro, o ministério não precisava assinar. Porque, pela proximidade que a gente tem com a Frente Parlamentar da Cultura, que é suprapartidária, não precisa necessariamente ter a marca do ministério. E como eu achava, naquele momento, que foi me dito que não tinha dinheiro… Está tudo dito e gravado, eu disse com a maior transparência. Se você ver o filme. Eu disse: o que tem aqui é um excesso de cooperação botando a marca, não precisava a marca do MinC. Agora, em nenhum momento eu disse que era um material eleitoral porque eu não sou maluco. Não é um material de propaganda, nem de chantagem com os que não votam, nada disso. Era uma manifestação de desejo da área cultural, que foi pactuada em uma série de reuniões públicas. O Fórum de Secretários Estaduais de Cultura assina o folder. Os secretários de capitais do Brasil assinam o folder, uma infinidade de organizações do mundo cultural que querem o Super Simples, as demandas da Cultura. O Demóstenes Torres, o senador, percebeu que se esquentasse isso um pouco ia reverberar na imprensa. E é aí que eu critico a imprensa. A imprensa frequentemente é vítima dos factóides que são produzidos, que são até certo ponto normais da vida parlamentar, mas que a imprensa, para noticiar, tem de investigar. O mínimo que tem de fazer era ter aberto o folder e checar se aquilo era eleitoral. Era essa a minha indignação.
De toda evidência, o folder em questão não constitui propaganda política; se assim fosse, por que incluir nomes de deputados da oposição? Estão tentando criar um caso a partir do nada. Sou baiana, conheço o ministro e sei que ele é um sujeito da maior integridade.
Celene Fonseca