Dois filmes em exibição hoje no festival In-Edit documentam dois dos muitos ângulos da penosa relação de São Paulo com sua própria cultura. Frequentemente espezinhada em sua capacidade de produzir samba, a capital paulista é retratada com precisão na figura do ator e cantor Aldo Bueno, focalizado no documentário O Eterno Amanhecer, de Alexandre de Luca. (às 17h, no CCSP, e quinta-feira, 21h, no Cine Bijou).

Paulistano nascido em 1950, arraigado no bairro do Bixiga e discípulo do germinal Geraldo Filme, Aldo conduziu com seu vozeirão o samba-enredo da Vai-Vai em 1982, “Orum-Aye – O Eterno Amanhecer” (de Osvaldinho da Cuíca e Serginho do Vai-Vai), mas não tem registrado mais quer um mini-LP de quatro faixas lançado de modo independente no início dos anos 1990, Corpo Negro.
Ator a partir de 1972, Aldo integrou montagens teatrais paulistanas de Gota d’Água (1975) e Ópera do Malandro (1978), ambas de Chico Buarque, e atuou num sem-número de filmes nacionais, como Doramundo (1978), O Homem Que Virou Suco (1981), A Próxima Vítima (1983) e O País dos Tenentes (1987), todos de Joaquim Pedro de Andrade; Eles Não Usam Black-Tie (1981), de Leon Hirszman; Anjos da Noite (1987), de Wilson Barros; Boleiros (1998) e O Príncipe (2002), de Ugo Giorgetti…
Além de contar histórias subterrâneas e mostrar uma série de artistas desprezados por São Paulo, O Eterno Amanhecer expõe com delicadeza as razões da instabilidade da trajetória artística de Aldo Bueno, em passagens sobre o abandono na infância, os períodos na rua (Aldo visita a Vila Itororó e mostra os arcos debaixo dos quais costumava dormir), os baques da saúde, os leões enfrentados para simplesmente conseguir sustentar uma trajetória. Outras figuras de asa quebrada da cultura paulistana sobrevoam O Eterno Amanhecer sem necessariamente precisar ser citados – Geraldo Filme, Talismã, Toniquinho Batuqueiro, Plínio Marcos, Osvaldinho da Cuíca, Thobias da Vai-Vai, Itamar Assumpção, Denise Assunção…
Em tom menos doloroso, Veraneio – Uma Antologia Negra (última exibição às 15h, no CCSP), de Nalu Silva, apresenta um personagem que permaneceu nas sombras por décadas até o início dos anos 2000, ao ser redescoberto pela jornalista Cláudia Assef como, provavelmente, o primeiro DJ brasileiro. Hoje com 92 anos, Osvaldo Pereira protagoniza o filme ao lado dos filhos Tadeu Pereira e Dinho Pereira e do neto Jean Pereira, todos envolvidos com o ofício que Osvaldo, em atividade nos anos 1950 e 1960, batizou de Orquestra Invisível Let’s Dance.

Maestro de uma orquestra invisível, Osvaldo desenvolveu o modelo de baile mecânico de bailes black, piqueniques (“que hoje vocês chamam de rave”, diz), êxtase de bailarinos e bailarinas (entre eles a filha Eliane Pereira)… Depois, foi tragado pela velocidade e pela crueldade da história.
Osvaldo descreve a explosão na pista quando tocava os pot-pourris de sambões de Jair Rodrigues e Elis Regina – simbolicamente, ele não consegue se lembrar o nome da metade branca da dupla. A trilha incidental brilha nos sons, nos balanços e nas vozes negras (e/ou simpatizantes) de Jorge Ben, Elza Soares, Bolão e Seus Rockettes, Trio Ternura, Lafayette, Doris Monteiro, Tony Bizarro, Almir Ricardi, Sabrina Malheiros etc.
A certa altura de Veraneio – Uma Antologia Negra, o filho Dinho fala sobre a condição de “preto pobre” de Osvaldo e seus Pereiras. Nos dois filmes hoje em exibição, acima de todas as diferenças, a negritude parece ser o traço de união entre os protagonistas por 15 minutos Aldo Bueno e Osvaldo Pereira. Cabe a pergunta: paulistas e paulistanos costumam maltratar todas as vertentes de suas próprias culturas, ou há alguma preferência na seleção daquilo que se vai esquecer?