“Lá no morro, o pau quebra, o clima sempre esquenta/ as criança com medo não aguenta mais/ e se eu disser que a polícia tá matando quem acorda cinco da manhã pra trabalhar tentando ser alguém?” Essas são palavras do MC Poze do Rodo em “Talvez“, primeira faixa de seu por enquanto único álbum, O Sábio (2022). “Parece até que liberaram as arma/ faz tempo que nós vive debaixo de tiro na Vila Cruzeiro/ (…) Quem mandou matar Marielle até agora eu não sei”, completa o MC carioca de funk, rap e trap, nascido Marlon Brendon Coelho Couto da Silva há 26 anos, na Favela do Rodo, em Santa Cruz, zona oeste do Rio de Janeiro. Com quase 16 milhões de seguidores no Instagram e 6 milhões de ouvintes mensais no Spotify, Poze do Rodo foi preso na quinta-feira, 29, por suspeita de apologia ao crime e envolvimento com o Comando Vermelho, de acordo com a argumentação da Polícia Civil do Rio de Janeiro.
Solto por habeas corpus nesta segunda-feira, 2, ele foi recebido e celebrado por uma multidão de fãs que cercava o presídio de Bangu 3 à sua espera. O evento incluiu comoção, tumulto, spray de pimenta de um lado, fogos de artifício de outro.
Rápido como ninguém, dois dias após a libertação Poze lançou o videoclipe de “Desabafo 2”, com música inédita e minidocumentário com cenas da prisão, da soltura e do reencontro com a família. Menos de 24 horas após o lançamento, “Desabafo 2” já tinha sido assistido por 2,3 milhões de pessoas no YouTube. O MC parece se credenciar velozmente para se tornar um “Charles, Anjo 45, um “Zé do Caroço“, um Mano Brown para os anos 2020.
A prisão teria sido precipitada pela divulgação de um vídeo de Poze durante um show na Cidade de Deus, no último dia 17, em que o artista canta “Tropa do General“, uma de suas primeiras a despertar atenção, seis anos atrás, e bem mais agressiva e direta que “Talvez”. “Desde menor sou Comando, nós é relíquia/ trem-bala dos manos/ com os fuzil tudo na pista”, diz a música de quando ele tinha 20 anos. Na mesma época, Poze cutucava a onça com vara curta, em “Ai, Nosso Fuzil Tá Demais“.
De fato, o compositor tem abordado a temática do crime em algumas de suas músicas, como as cinco criações coletivas da série “A Cara do Crime” (2021-2025) e três traps chamados “Assault” (2021-2024), todos em conjunto com outros popstars da cena trap do Rio e de São Paulo, como Orochi, Filipe Ret, MC Cabelinho, Xamã (também ator global), MC Ryan SP, Chefin e Oruam. “Sou mais um favelado/ vivendo a vida de bacana”, provoca “Assault – Rio” (2021), raspando outro ponto nevrálgico da coisa.
A maioria desses artistas está vinculada à gravadora/produtora Mainstreet, que emerge, da periferia para o centro, como potência do pop brasileiro atual (uma outra face da mesma moeda que rege a atual música sertaneja, enriquecida pelo poder de fogo do agronegócio). De certo modo, a realidade de Poze do Rodo imita a ficção da série da Netflix Sintonia (2019-2025), iniciativa de uma congênere da Mainstreet, a produtora KondZilla, do paulista do Guarujá Konrad Dantas. Com personagens transitando entre o funk, o crime e a igreja, Sintonia é uma ferramenta para quem quiser compreender rudimentos do contexto que produz uma profusão de artistas como os de KondZilla e da Mainstreet.
Também em 2020, também aos 20 anos, Poze do Rodo lançou “MC Não É Bandido“, em sentido inverso ao dos funks e traps de crime. “Eu não quero saber o que eles vão falar/ pelo meu passado eles quer me julgar/ ninguém vai ofuscar quem nasceu pra brilhar/ então sai da frente pra tu não se machucar”, afirma Poze, que numa detenção anterior admitiu ter atuado como “vapor” do tráfico na Favela do Rodo durante a infância e a adolescência. “Graças a Deus eu tô aí/ vários conspirando na intenção de mexer com nosso emocional/ mas passa mal que eu tô legal”, completa em “MC Não É Bandido”, num impulso de libertação das malhas do crime também muito frequente nos traps de Poze do Rodo.
No mesmo 2020, quando ainda se identificava mais com o funk solar que com os tons soturnos do trap, o MC da Favela do Rodo participou de “Do Crime ao Funk“, do MC Bielzin: “Mas Deus abriu os meus olhos no momento em que eu mais precisei/ me tirou da boca e me botou na música outra vez/ agora eu tô fazendo o que eu quero e eu vou ser feliz/ eu vou ser feliz”. Para a Polícia Civil do Rio de Janeiro, a boca de venda de drogas e a música são um mesmo lugar e o destino dos “crias” é nunca encontrar pouso em lugar algum.
É o que dão a entender os policiais envolvidos na operação de quinta-feira, que têm se arvorado a críticos musicais, caracterizando Poze do Rodo como “falso artista” e “suposto MC”, com ouvidos seletivos que ignoram (ou desconhecem) outras partes do discurso daquele que entendem como inimigo. “Quando eu me esbarro com a sua mãe, a gente chora/ não dá pra acreditar que você foi embora”, lamenta “Mundo Covarde” (2022), em que o narrador chora o assassinato de um amigo de infância. “Maus elementos”, devem se apavorar os juízes censores da crônica alheia, para se defender não dos personagens da narrativa, mas do narrador por trás dela.
“Não Vou Falhar” (2022) é transparente nos detalhes que os adeptos da repressão não querem nem escutar: “Minha mãezinha orando de joelho/ pedindo a Deus pro seu filho voltar/ já errei, mas só eu sei tudo o que passei/ fui fora da lei/ mas não me culpei/ no foco eu mirei/ tudo eu conquistei/ (…) mãe escolhe uma casa em frente ao mar/ chega até a me dar emoção/ hoje eu tô podendo proporcionar vários momentos bom”. O que não servir à criminalização do funk, do trap, do rap etc., as autoridades e instituições do chamado “asfalto” preferem simplesmente varrer para debaixo do tapete.
Nada de novo no front
Nunca é demais lembrar que não há nada no front no caso Poze do Rodo. É um enredo que se repete sempre e sempre e sempre. Em 2022, tudo foi desenhado no livro O Funk na Batida – Baile, Rua e Parlamento (2022), de Danilo Cymrot, músico e doutor em criminologia, que escreve nas perspectivas jurídica e artística, e não numa prumada policialesca-crítica-censora-julgadora. Cymrot faz um apanhado geral de outras situações em que a guerra cultural e o pânico social quiseram confundir pobreza, cultura periférica e/ou negritude com crime – os rolezinhos, os bailes funk, os arrastões…
Essa triste história vai bem mais longe, e remonta, guardadas as diferenças de cada época, à detenção dos integrantes do grupo Planet Hemp em 1997, por apologia (sempre ela) ao uso de drogas, ou as prisões de Gilberto Gil e Rita Lee em 1976, por consumo de maconha. Ainda mais atrás, quando não havia trap nem rap nem funk, a repressão se abatia sobre as hoje institucionalizadas escolas de samba. Em 1940, por exemplo, a polícia do Rio decretou o fechamento de algumas escolas após episódios de briga entre elas, argumentando que elas configuravam uma “ameaça à segurança pública”.
Como relatou Sérgio Cabral (pai) no livro Escolas de Samba do Rio de Janeiro (1974), em 1942 um colunista do Jornal do Brasil, de nome Sílvio Moreaux, vociferava contra o samba com argumentos parecidos aos dos policiais que algemaram Poze do Rodo e o levaram preso sem camisa, de bermuda e de chinelos. O artigo de Moreaux pedia censura a “assuntos apologistas de baixezas” como “as macumbas e as malandragens” expostas pelas escolas de samba em desfile. O objetivo, segundo ele, seria “livrar nosso povo das ideias africanistas que lhe são impingidas pelos maestrecos e poetaços chamados de poetas do morro”. O hoje mitológico Paulo da Portela reagia então afirmando que “nós, os sambistas do morro, não merecemos tantas acusações”, que segundo ele vinham sempre acompanhadas dos “piores adjetivos” e das “piores humilhações”. O patrono da Portela argumentava que as escolas de samba, antes de antros de violência, eram um instrumento eficaz para erradicar a violência dos morros. Qualquer semelhança com o que Mano Brown dizia no final do século passado e com o funkeiros e trappers pregam em 2025 não é mera coincidência.
Ostentação, ouro, fama, família
De volta a Poze, uma parte expressiva de suas músicas se enquadra no formato da ostentação, algo onipresente na música atual seja no funk, no trap ou no sertanejo. “Quero deixar a minha coroa em paz/ quanto mais eu tenho, eu quero mais”, diz em “Pesadão” (2022), num discurso que qualquer financista, agroboss, banqueiro ou magnata de big tech faria se cantasse trap. “Faço grana, compro ouro, prazer, é o Poze do Rodo/ fiquei rico muito novo, cada hit é um estouro”, constata “Tropa do Mantém” (2022). “Fazendo dinheiro fácil/ eu se destaco/ favelado milionário”, reforça “Tropa do Sábio” (2022), buscando e ostentando o mesmo que qualquer capitalista de ontem, de hoje, de amanhã. O crime de Poze do Rodo, ironicamente, parece ser o de defender com unhas e dentes o capitalismo selvagem. A Avenida Faria Lima viria abaixo se a “lei” aplicada nas favelas pela Polícia Civil valesse para todos, de todas as cores.
As músicas de Poze também fazem referências a sexo (especialmente na fase funkeira dos primeiros anos), drogas, armas e marcas importadas – aparecem aos borbotões, mas com certeza em frequência bem mais modesta que a que se pratica, por exemplo, em Hollywood, na Netflix ou na Amazon. Na contramão, há um pedaço do cancioneiro do MC do Rodo que não desperta nenhuma atenção nas patrulhas defensoras da tradição, da família e da propriedade: a dos traps familiares. “Por que toda essa covardia comigo?/ moleque bom, ajuda o que é preciso/ tô trabalhando e sustento meu vício/ (…) tudo que eu quero eu tenho, mas é disto que eu preciso: a saúde dos meus pais, felicidade dos meus filhos”, pede o artista no primeiro episódio do agora atualizado “Desabafo” (2023).
Com cinco filhos nascidos a partir de 2019, Poze dedica a eles o trap-balada quase romântico “Me Dá Sua Mão” (2023): “Ver vocês sorrir, vocês crescer/ e ensinar, e aprender/ no dia que o medo chegar/ olha pro lado, vou tá com você/ filho (filha), me dá sua mão/ vou te apresentar o mundo/ onde não existe bicho papão/ nem medo, vem pro meu colo”. Ecoa no tempo o velho funk “Rap do Silva” (1996), lançado por Bob Rum, sobre o assassinato de um Silva que “era funkeiro, mas era pai de família”.

Nas entrevistas coletivas tipo reality show pós-prisão, os delegados da Polícia Civil relacionaram a obra de Poze do Rodo ao que classificaram como “narcocultura travestida de música para enaltecer a facção”. Seletivos, eles não parecem identificar a abundância de sinais de narcocultura no Spotify, no X, no Instagram (onde a esposa de Poze, a influenciadora digital Viviane Noronha, acumula 2,6 milhões de seguidores), no Lollapalooza, no Rock in Rio, na publicidade, nas igrejas, na própria polícia… “Hoje nós é mídia, chefe de família/ isso que incomoda, alemão passa mal”, provoca o MC Poze do rodo em “Tô de Pé” (2022), mais consciente que as instituições policiais de seu próprio papel na vida social.
Texto publicado originalmente no portal Opera Mundi.