O Brazil não merecia o Aldir

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2001
Bosco & Blanc conversando no bar, nos anos 1970
Bosco & Blanc conversando no bar, nos anos 1970

O Brasil já andava bem mal das pernas em setembro de 2017, quando Aldir Blanc (1946-2020) concordou em conceder uma entrevista, apenas por e-mail, a este jornalista. “Amanhã é meu aniversário e haverá, sem minha presença, já que não estou bem e não posso beber, comemoração na livraria Folha Seca na Ouvidor. Se quiser, apareça”, convidou em 1º de setembro, enquanto justificava a ausência física que preferiu cultivar nos últimos anos de vida. “Mais uma vez, desculpe: não estou enxergando lhufas”, penitenciou-se a certa altura pela digitação incorreta, mesmo sendo um homem que enxergava tudo ao redor com extrema lucidez.

Passaram-se menos de três anos, e os dias eram então incomensuravelmente menos difíceis do que os atuais. Quem “governava” o Brasil pós-golpe em Dilma Rousseff era Michel Temer, e ainda não sabíamos que tudo poderia piorar e se deteriorar ainda mais, ainda mais rapidamente. “Tudo que se referir aos ladrões do Centrão e ao presidrácula será blindado”, relatou/profetizou uma história que se repetiria em 2020, em círculo vicioso.

“Quanto ao Temereca, é o maior criminoso e entreguista do país!”, ele definiu Temer, sem saber que outro ainda pior estava a caminho. “Sou contra a pena de morte, mas quando vejo o que esse merda está fazendo fico em dúvida se não seria melhor julgá-lo com rigor, direito amplo de defesa, mas com fuzilamento incluído na pena. Há muitos anos defendo que esse tipo de criminoso mata sem parar. Vi, trabalhando como médico, crianças morrerem porque as verbas para esquistosomose tinham sido roubadas. Institucionalmente, Temeroso é muito pior que Marcola e Fernandinho Beira-Mar juntos.” Ainda não havia políticos trabalhando a favor do coronavírus que viria a matar o compositor.

A entrevista por e-mail se estendeu por 14 dias, durante os quais Aldir discorreu sobre temas diversos, sobretudo musicais, e mostrou desassombro em atirar farpas contra gravadoras, o ex-parceiro Guinga, políticos de direita, críticos musicais… Sobre Guinga, disparou: “Fizemos a parceria com bons resultados, mas notei logo que havia implicâncias com palavras, cismas, e que muitas músicas eram abandonadas logo depois de feitas. Ora, para resumir, o que adianta letrar nota por nota (Guinga não musica letra) músicas que chegariam a ter 50 ou 60 versos ou mais para não serem ouvidas???”.

Sobre a interferência de gravadoras no artesanato dos artistas, ele contou: “Você sabia q o primeiro LP do João Bosco, aquele com capa verde do grande pintar Carlos Sclyar, era com o Tamba Trio e arranjos do Luiz Eça? A RCA vetou o LP inteiro, e chamaram o Rogério Duprat para refazer tudo. Tiraram uma suíte para os arcos da Lapa de quase 12 minutos de duração, lindíssima”.

Falando sobre a canção “De Frente pro Crime” (1974), rememorou tempos em que compositores hoje vistos como unânimes estavam longe de sê-lo: “Sabe o que parte da crítica da época dizia desses sambas? ‘João Bosco e Aldir Blanc , com suas habituais obsessões com uma violência inexistente…’. Gostaria de soltar todos esses críticos no Jacarezinho para uma injeção de Brasil na bunda”.

Brasil, por sinal, sempre foi uma obsessão de Aldir, que, ao que consta, jamais saiu das fronteiras do país natal. “O Brazil não merece o Brasil/ o Brazil tá matando o Brasil”, formulou ao lado do melodista Maurício Tapajós, em “Querelas do Brasil” (1978), criada para a garganta de Elis Regina. Antecessora do clima de anistia que invadiria “O Bêbado e a Equilibrista”, no ano seguinte, “Querelas do Brasil” parece ter sido composta sob medida para 2020. Enquanto Aldir Blanc vivia suas horas finais, o atual presidente do Brazil desfilava na rampa do Palácio do Planalto ladeado por uma grande bandeira vermelha, azul e branca dos Estados Unidos. O Brazil nunca mereceu Aldir Blanc.

Leia, aqui, a íntegra da entrevista de setembro de 2017.

 

 

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