Punk rock turbina o Paranoid Park paraibano

0
2190
Cena do filme Desvio
Cena do filme Desvio, de Arthur Lins, um mergulho na angústia adolescente no sertão da Paraíba

Grafite, quadrinhos, punk rock: o novo cinema nordestino já tem o seu clássico adolescente. Desvio, de Arthur Lins, exibido na noite de domingo no Fest Aruanda, festival de cinema em João Pessoa (PB), mostra um sertão diferente do que tradicionalmente o cinema brasileiro tem retratado, emoldurado pela street culture dos adolescentes paraibanos, um conto de cultura urbana com sotaque e nervosismo, velocidade e vertigem pop.

Tudo começa numa penitenciária, com o indulto de Natal. É aí que sai da cadeia Pedro (Daniel Porpino), que fez uma cagada em João Pessoa e está pagando por esse algo terrível (que não ficamos sabendo o que é) há alguns anos, silencioso e paciente. Ele volta para a casa da mãe em Patos, no interior da Paraíba, onde encontra os velhos amigos, os antigos parceiros, a prima adolescente Pâmela (Annie Goretti). Há uma construção de tensão e suspense que esperamos conduzir, inevitavelmente, para alguma explosão apoteótica, na cartilha do cinema moralista. Mas não é esse o caso.

A banda feminista punk Margaridas em Fúria, o noise rock do grupo pós-punk Vênus in Fuzz e grupo Carcassa fazem em cena, ao vivo, a trilha sonora, conceitualmente fundamental na narrativa e na composição dos personagens. É somente na música, na escolha entre Ramones e Sonic Youth, no debate da autenticidade do primeiro álbum, que a geração retratada (insatisfeita, na periferia do mundo, encolhida) parece se amparar com alguma solidez, alguma determinação existencial – mesmo a política, com o velho lema “Fora, Temer” afixado na parede, virou um desconforto ocasional, pouco fundamentado para os garotos. Mas não para o cineasta, que mostra a alternativa, a adequação possível que a sociedade oferece: a chapa de alguma lanchonete ou o cargo executivo numa empresa de natureza predatória.

O diretor tem nomeado, em entrevistas, uma referência acima das outras: O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish, 1983), de Francis Ford Coppola. O próprio passeio solitário do personagem Pedro pela estrada, na moto emprestada do amigo, é uma espécie de mergulho na escuridão, uma vertigem instantânea que se conecta imediatamente ao filme de Coppola, assim como a simetria sanguínea entre o irmão mais velho, Mickey Rourke, e o caçula, Matt Dillon (no caso de Desvio, entre o primo e a prima). Mas outras produções também vêm à mente imediatamente quando o filme atinge uma cadência. Kids, de Larry Clark, é um deles, assim como Paranoid Park, de Gus van Sant, e Bom Trabalho, de Claire Dennis.

Pâmela, a prima de Pedro, espelho feminino do desajustado, passeia pelo mundo exprimindo uma revolta que não consegue expressar em palavras, uma indignação gutural, pictórica às vezes – um diagnóstico realista da juventude abarcada. Inconformada com a autoridade do pai (a mãe nem aparece), com o papel reservado às garotas no patriarcado, Pâmela sente uma indignação que não consegue verbalizar e não consegue articular um ato que se contraponha a isso. Da distribuição de flyers ao furto de vodca no mercado, tudo tem uma naturalidade quase neutra no mundo de Pâmela, que sonha com uma aventura além dos limites da família.

Arthur Lins captura, em diversos momentos, o discurso esquizofrênico da juventude em manifestos extemporâneos de alguns personagens, que falam da passagem do tempo e da finitude com frases desenraizadas, trôpegas, emprenhadas de clichês e sempre com uma vontade de dizer mais. O mesmo meio ambiente que parece hostil, também parece acolhedor, em algumas situações. A teen angst do grupo de garotos parece dotá-los de certa solidariedade de ocasião. A realidade, no entanto, parece deter-se mais rigidamente apenas em um caixa de banco estourado numa noite quente e estilhaçada. Não há maniqueísmos na narrativa de Desvio, tampouco o filme está enredado num discurso de correção política. É só um retrato. Provavelmente, um dos mais acurados de uma cinematografia nova e eletrizante.

Desvio (Ficção, 2019, 1h30, PB) – Direção de Arthur Lins. Com Daniel Porpino, Annie Goretti.
PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome