Lá vem o homem que matou o homem que matou o homem mau. O rapper Rincon Sapiência, de 31 anos, partiu de uma formidável tradição para construir seu álbum de estreia, Galanga Livre. Primeiro houve o filme de faroeste O Homem Que Matou o Facínora (1962), de John Ford. Decalcado na versão de Ella Fitzgerald no mesmo 1962 para a antiga “Ol’ Man Mose”, de Louis Armstrong, o então jovem Roberto Carlos criou “História de um Homem Mau” (1965), numa mistura pop de faroeste e iê-iê-iê. Preteando Roberto Carlos, Jorge Ben (Jor) subverteu o rock do colega no samba-soul “O Homem Que Matou o Homem Que Matou o Homem Mau” (1965). Em 1973, Bob Marley & The Wailers elaboraram “I Shot the Sheriff”, que o paulistano da zona leste Rincon Sapiência, aliás, Danilo Albert Ambrosio diz ter servido de base primária para “Crime Bárbaro”, faixa que abre Galanga Livre após um sample de “Jimmy, Renda-Se” (1970), de Tom Zé.
Muita água correrá entre o início com “Jimmy, Renda-Se” (alô, Jimi Hendrix) e o final do álbum de Rincon com “Ponta de Lança (Verso Livre)”, referência evidente ao igualmente futebolístico “Ponta de Lança Africano (Umbabarauma)” (1976), do sempre futebolístico Jorge Ben. Bem longe dos bangue-bangues estadunidenses que construíam ideologia ~supremacista~ (ou seja, NA ZIS TA) representando indígenas como retratos do “homem mau”, Sapiência coloca o colonizador português (branco) no papel de um homem mau que passou séculos escravizando homens e mulheres pretas como ele. Na água que passa debaixo da ponte em forma de música, o artista se dedica a matar várias formas reais de aprisionamento, cativeiro, supressão da liberdade real e/ou simbólica. O senhor de engenho, concluímos juntos na entrevista abaixo, pode ser um patrão escravagista, uma relação amorosa opressiva, uma cabeleira que se alisa na marra, um playboy batendo panela nas varandas gourmet, um político golpista, até mesmo alguém que mora aqui dentro, um pedaço censor encafifado dentro de nós mesmos.
Com a palavra – em texto, em vídeos e em som -, Rincon Sapiência.
Pedro Alexandre Sanches: De onde vem o codinome Rincon Sapiência, e também o Manicongo?
Rincon Sapiência: Rincon veio do jogador colombiano Fred Eusébio Rincon Valencia, conhecido como Fred Rincon. Em 1998 ele jogava no Corinthians, eu era careca, mais troncudinho e usava um brinco na orelha esquerda que nem ele. Os caras mais velhos do bairro ficavam zoando, “olha lá, não parece o Rincon?”. Tiravam uma onda, aí pegou o Rincon. Ao longo dos anos veio o Sapiência, quando ouvi uma definição da palavra que dizia que é o conhecimento das coisas divinas e humanas. Sou um cara que me ligo em signo, espiritualidade. Não sou um adepto, mas gosto de umbanda, candomblé, signos, karmas, alimentação, disco voador, extraterrestre. Falei, pô, tem tudo a ver comigo, com minha busca pessoal de vida, conhecimento divino e humano também, social. E o Manicongo veio de uma pesquisa, escutei uma música do Nas que falava sobre sermos reis e rainhas na África antes da escravidão. Passei pra pesquisar a respeito e vi que no império do Congo os reis eram chamados de manicongo. Como acho que é uma referência importante da gente dar, falar do continente africano, mas sem falar da escravidão, achei que esse nome se aplica muito bem.
PAS: Achei que tinha um trocadilho com manicômio, uma coisa que nem existe mais oficialmente…
RS: Tem gente que fala, Rincon Sapiência, vulgo Manicômio, ou Manicombo, e por aí vai (ri).
PAS: Rincon é loucão, doidão, ou não?
RS: Se ele é doidão? Não… Depende do ponto de vista, né? Careta a gente não é, não. Mas doidão também não. Quase lá.
PAS: Loucura é uma virtude, pô.
RS: É, não é ruim, não. Acho que a sobriedade, no sentido figurado, nunca foi algo tão funcional. O estilo sóbrio de ser sempre foi tão questionado que hoje em dia a loucura já tem a ver com querer contrapor: pô, existe esse lado também.
PAS: Aí tem o nome real do Rincon Sapiência, que é…
RS: Danilo Albert Ambrósio. Mor nome bonito, né?
PAS: É bonito.
RS: Podia ser, se eu cantasse sertanejo era Danilo Ambrósio, ou Danilo Albert, alguma coisa assim.
PAS: Como rapper não dá?
RS: Hoje em dia tá massa, tá rolando esses nomes compostos no rap. Mas quando eu comecei não tinha muito, não. Tinha que inventar um adjetivo, o Hostil, o Veloz, o Sagaz, o Voraz… Daí Sapiência, Rincon Sapiência.
PAS: Queria que você contasse um pouco sobre o Danilo – de onde vem, que idade tem, um pouco de sua história antes de ser Rincon Sapiência.
RS: Cara, Danilo é nascido e criado na Cohab I, zona leste de São Paulo.
PAS: Quantos minutos do centro? Tem essa conta?
RS: Cara, eu tenho uma virtude, que eu morava perto do metrô. Então todo mundo falava “ê, zona lost“, eu dizia: “Se bobear eu chego mais rápido que você aqui no serviço”.
PAS: Perto do metrô Itaquera, ou outro?
RS: Perto dos dois, mas mais perto do Artur Alvim.
PAS: Hoje em dia tem um estádio de futebol lá.
RS: É, e eu chegava no centro em, sei lá, 35 minutos. Isso me ajudou muito, porque eu e mais uns parças dávamos calote no metrô, bastante… Agora posso falar, porque consigo pagar as conduções (risos). Estou mais velho também, a gente perde o apetite de fazer essas coisas.
PAS: Qual é sua idade hoje?
RS: Tenho 31. Tem aquela parte que volta, que passa livre, então você dá uma puxadinha mínima, abre um vão, vira de lado e passa – dica pra vocês mais jovens (risos). Depende da fiscalização.
PAS: Tinha repressão?
RS: Tinha, às vezes dava mal. Aí ia pro ônibus. O ônibus é pedir carona, “ô, motô!”. Ou passa por baixo ou ele abre a porta de trás, e ia. Eu ia muito pra galeria ouvir CD.
PAS: Galeria do Rock?
RS: É.
PAS: Ou no subsolo?
RS: Pra gente é a Galeria do Rap, na 24 de maio, onde tem a Florida Laser, Mágica do Hip-Hop, tinha a Trucks que hoje em dia não tem mais. Tinha a Johnny B. Good, que é a loja de rap do finado Johnny.
PAS: Perguntei sobre a distância pro centro porque todo rapper costuma frequentar muito o centro por causa disso, né?
RS: Sim, sim. A gente ia bastante e ficava de giro, sonhando. Um parceiro falava que a gente ia alugar um apê no centro, morar junto. A gente criava uma vida Kids, já viu esse filme? A gente se inspirava muito (risos), castelava um monte de coisas. O centro é onde estão todas as periferias, todas as informações, tudo. Meu primeiro emprego foi de office-boy, sempre que eu era dispensado mais cedo eu descia a rua Augusta a pé mesmo e ia pra galeria. Era a meca para gente. Não tinha internet, você olhava na prateleira, tem CD novo de fulano. Pedia pra ouvir, ouvia na loja mesmo. Mas geralmente você ouve e compra, né? A gente não comprava, não. Essas pessoas dessas lojas são minhas amigas hoje e conhecem meu trabalho. Acho legal isso. Eles me conheceram como um neguitinho que cola às vezes pra ouvir um disco e hoje vê que a gente construiu um trabalho com uma projeção legal.
PAS: Valeu a pena pra eles deixar você ouvir os discos.
RS: É, exatamente. Porque imagino eu que por ora eles achavam chato também, “ixe, esse aí não vai comprar, não”. Pedia pra ouvir um, ouvir outro, mas não…
PAS: Alguns não deixavam?
RS: Às vezes tem disso. Pela cara do cara você fala, puta, só vou ouvir umas três faixas e já vou embora daqui (risos).
PAS: Falei do metrô e acabei desviando sua resposta, sobre sua história e sua vida antes…
RS: Ah, minha vida… Estudava por ali mesmo pela Cohab. Morava de frente pra uma praça, praça famosa, praça do Morcegão. Ali tinham duas quadras, numa o futebol comia solto, o racha. Se perdesse um jogo você ficava, sei lá, meia hora ou mais, dependendo de gente que tinha jogando, os bancos tudo cheio. E mula, né? Tomava um chapéu, “ih”, todo mundo zoava, aquela competição, dez minutos, dois gol. E na outra quadra rolava o skate, o pessoal montava uns ferros.
PAS: Fala um pouco sobre seus pais?
RS: Minha mãe é de Marília, interior de São Paulo. Meu pai é daqui mesmo. Meu pai não teve pai, então sempre trabalhou, desde muito cedo. Ele cozinha. Inconscientemente eu tenho um monte de influência que vem dele. O lance da vaidade, de roupa, de gostar de cozinhar. Só cozinho bem depende do dia, às vezes passo do ponto no sal. Mas gosto de cozinhar. Tive essa referência, não tive esse lance de que quem cozinha e lava louça é mulher, porque meu pai sempre foi agilizado nesse lance. Ele me influenciou muito. E minha mãe sempre trampou autônoma, o que é uma outra influência minha. Nunca me dei bem tramando pros outros, igual a minha mãe. Minha mãe gosta de costurar as roupas dela, manda muito bem, costura muito bem. Teve um salão de cabeleireiro dela, tinha umas clientes que recebia em casa mesmo pra fazer chapinha. Eu falo na música, “quente que nem a chapinha no crespo, não/ crespos tão se armando”. A minha infância tem duas coisas muito peculiares: o barulho da máquina de costurar Singer (imita o som) e um monte de tecido no chão, e o cheiro de cabelo quente. É doce.
PAS: Ela faz até hoje?
RS: Ela faz no dela.
PAS: Hoje não se alisa tanto mais, né?
RS: É, mas minha mãe ainda, é mais velha… Eu acho uma pena, até porque danificou bastante ao longo dos anos. Mas minha mãe continua linda de qualquer forma. Eu preferia que ela não passasse, não.
PAS: Eu entendi que ela fazia pra outras pessoas…
RS: É, e no dela também (risos), fazia geral. Até hoje. Fogão, o bagulho de ferro lá em cima, enrola bobe, tradição.
PAS: Pelo som eu ia chutar que você tinha alguma origem nordestina, mas então não?
RS: Eu tenho uma origem longínqua, mas dizem que a mente traz, né? Nasci aqui em São Paulo, mas tem pessoas que falam muito desse lance nordestino. Eu tenho meu bisavô, que veio da Bahia. Eu gosto muito de andar, faço essa ligação. Eles saíram de Itapicuru e vieram andando até São Paulo, por causa da seca.
PAS: A pé? Caramba.
RS: Eu sou um cara que ando muito, vejo que tem influência disso, e minha mãe anda muito também. Eu sou o mais novo.
PAS: Mais novo de quantos?
RS: De três. Meu pai trampava, meus irmãos estudavam, e eu sempre fiquei muito sozinho em casa com minha mãe, que é muito ativa. Ela tem mais o meu jeito. Eu sou pacato também, mas meu pai e meus irmãos são muito mais que eu. Minha mãe é mais porreta, eu sou mais porreta também, que nem ela. E ela sempre andou muito, aí não pode deixar o filho sozinho em casa, me levava junto. Então esse lance de eu saber andar no centro, de andar bastante, vem desde muito novo. Minha mãe ia comprar tecido, ia pechinchar, ia pro Brás, e eu sempre ia com ela. Aí peguei esse gosto por andar bastante.
PAS: Você falou do Congo, não sei se já foi pesquisar, resgatar, procurar sua origem africana… Você fala dos malês também no disco…
RS: Também, também. A minha família é do êxodo total. Meu bisavô de Itapicuru, na Bahia, no que ele veio descendo, andando, ele conheceu a parceira dele, minha bisavó, em Minas Gerais. Aí nasceu minha avó. Aí minha mãe foi nascer em Marília. Aí o pai da minha mãe é de Barra Mansa, Rio de Janeiro, e os pais do meu pai são de Minas Gerais, de Passos. Passos é o sul de Minas, tem uma remanescência grande da cultura afro, afrobrasileira. Parte dessa cultura afro vem do Congo, a exemplo da congada, o jongo, o tambor de crioula. Toda essa associação do Manicongo, do Galanga…
PAS: Estava pensando que era por causa do país…
RS: Na real o Congo era um território só, com Angola. Os colonizadores portugueses chegaram e no final das contas parte ficou com os colonizadores franceses, resumindo, e parte com os portugueses, Angola por exemplo. Tanto é que parte dos congoleses fala português também. Veio muito da cultura do Congo pra cá. Chico Rei, que se chamava Galanga, era também um rei no Congo e veio pro Brasil na condição de escravo. E ele foi um escravo que comprou a sua alforria e a alforria de outros escravos. Então todas essas coisas que eu invento têm uma ligação de pesquisa histórica que faço, e também de pesquisa familiar. Acredito ser descendente direto de um rei do Congo.
PAS: Quando a música entra na sua história já é via rap? Vejo que sua ligação vai além do rap, você é muito musical.
RS: Sim. Música veio pra mim de criança mesmo, pai e mãe, muito disco, vinil, em casa, fita cassete, Michel Jackson, rádio, Antena 1, Alfa, que tocava muita black music antiga, e também o samba dos anos 1990, Katinguelê, Sensação, Art Popular, essa parada toda, que era o equivalente ao sertanejo hoje. Era a música mais dos programas de TV, das rádios. E o rap por parte dom meu irmão mais velho. A minha formação é música como entretenimento da família, de ouvir muita música e, quando a gente comprou um videocassete, assistir muito clipe. Meu tio gravava umas fitas VHS com os clipes. E na rua era o futebol, até porque eu não empinava pipa bem, não era o melhor na bolinha de gude, essas coisas. Vim aprender a andar de bicicleta depois de velho, com uns 20 e poucos anos. Ando mal até hoje. O futebol foi onde fiz muitos amigos, onde entendi a rua, o que é os bandidos, a polícia, quem faz o quê, o pessoal do skate, do samba, quem é da favela, quem é das casinhas, quem é da Cohab. Todo esse ambiente eu peguei do futebol, que é quem me formou na rua.
PAS: Foi o que fez a socialização?
RS: Exatamente. Tanto é que Rincon não é à toa. Eu levar isso pro meu nome artístico é porque o futebol tem uma significância grande na minha vida.
PAS: Você cogitou ter outra profissão sem ser músico e rapper?
RS: Jogador de futebol (risos).
PAS: Mas chegou a trilhar?
RS: Ah, eu cheguei pertinho. Não por ser bom, mas por ser dedicado. Sou muito dedicado quando gosto de algo. Então eu treinava mesmo à vera, corria no campo, tinha o físico bom. Ainda tenho, só não trabalho mais que nem antes (ri).
PAS: Só no palco?
RS: Isso, a gente só cansa. Era legal, eu tive a oportunidade de treinar na Portuguesa. Eu era um jogador em fase de teste, não recebia salário, não era contratado, mas tinha uma vivência com o clube. Eu ia até o Canindé, botava o fardamento, pegava o busão, ia pra Fazendinha, chegava lá e treinava, gramadinho, jogava várzea, corria no campo.
PAS: Nesse tempo não pensava em ser rapper?
RS: Então, nessa época eu já tinha o rap, tanto é que treinei na Portuguesa e uma hora desencanei, pra falar a verdade, porque não estava… Às vezes era da hora, joguei jogo-treino, joguei coletivo com o jogadores contratados do próprio clube. Era a oportunidade que você tinha de tentar mostrar alguma coisa, fazer um gol ou cumprir bem sua função – eu era volante – e mostrar serviço. E tinha vez que nós só corria no campo, ficava meio de fora. Se bem que o treino dos caras era avançado. O maluco ligava o relógio, saía correndo, passava umas cordas, pulava, tinha que fazer uma média boa. Falava “ixe, se eu fizer isso aí vou ser a pior média”. Os caras não eram bons também, essa era a verdade, mas o físico dos caras era foda.
PAS: Algum ali virou jogador conhecido?
RS: Cara, era muito louco, tinha um. Fomos em quatro nesse time de várzea, dois atacantes, um zagueiro, eu volante. O melhor de nós, o neguitinho, lembrava o Edilson que jogava no Corinthians, veloz, matador. Era esse período. O treinador gostava dele, porque ele era maloqueiro. Não tinha muito maloqueiro. Eu via que o treinador até dava risada quando ele arrumava confusão.
PAS: Qual definição de maloqueiro você está usando? Gaspar do Z’África Brasil fala que maloqueiro é quem vive na maloca, e isso é uma coisa boa, é indígena.
RS: Maloqueiro porque, eu lembro até hoje, ele fez um gol e nisso o zagueiro bateu nele, fez o gol e caiu, golaço. O zagueiro foi ajudar a levantar e ele tirou o braço. Aí cria aquele clima, o bad boy do time. Eu olhei pro treinador pra ver o que ele achou, ele deu risada. Falei “caraio, maluco, gosta dele”. E ele é um cara que desencanou.
PAS: Não virou jogador?
RS: A vida da rua… Até arrumou umas confusões aí na rua. Ele tinha tudo pra ser um jogador. É uma pena, acredito que não é só o caso dele, não. Uns caras que às vezes são muito bons, muito talentosos, mas a necessidade… Precisa da coisa de imediato, a parada não rola no tempo que acredita, já vai tentar outras coisas. Acaba não dando certo.
PAS: A gente tem hoje uma galeria de rappers muito fortes, e uns, como Emicida, apareceram muito cedo, jovens, e outros demoraram mais, como Criolo, que já foi aparecer lá nos 30 e tantos. Você está entre um ponto e outro, nem demorou muito, nem foi muito rápido.
RS: É bem essas mesmo, até porque a gente acompanhou o passo a passo dessas pessoas, Emicida, Projota, Rashid… Emicida é um mês mais velho do que eu, o Rashid deve ser uns dois ou três anos mais novo… A nossa diferença de idade é muito pouca. Quando o Emicida lançou Triunfo eu lancei Elegância, até diria que chegamos a ser os dois expoentes do rap, já fizemos um show muito foda no Sarajevo, com KL Jay tocando, show meu e do Emicida, uma fase boa dos dois, começando a despontar. E no resumo ele foi muito, tum!
PAS: Saiu correndo.
RS: Saiu correndo.
PAS: Atrás da bola.
RS: Exatamente. Mas hoje eu entendo esse processo todo. Não que ele não tenha, mas eu tenho toda uma autenticidade no meu trabalho, na linguagem musical, numa série de coisas. Hoje em dia percebo que precisei desse tempo. E logicamente pretendo amadurecer muito mais ainda, mas precisei de todo esse tempo pra chegar nesse resultado. Eu falo porque já tive uma oportunidade, vamos dizer assim, num selo de que eu fiz parte, de poder lançar um disco. Hoje em dia eu fico pensando se eu ia gostar desse disco, saca?
PAS: Um selo grande?
RS: Era um selo grande, eu fico pensando se ia achar da hora as coisas que fiz nesse disco. Agora este aqui (segura Galanga Livre nas mãos) eu já sei que vou. Tem pessoas que se resolvem muito fácil, Emicida é um cara que se resolveu muito fácil. A parada dele é essa, desse jeito, assim, ele foi trilhando esse lance. Eu tive que maturar bastante, é o que aconteceu com o Criolo também, né? Ele, fazendo rap tradicional, era muito bom, mas acho que o trabalho dele se tornou mais relevante quando teve um tempo de aprender a cantar, de estar com as pessoas certas pra produzir o trabalho dele, um trabalho que vai além do rap. É um cara que precisou desse tempo pra chegar, não é nem que antes disso o trabalho não era legal, mas pra ele chegar nesse Criolo que é hoje ele precisou de determinado tempo. Tem pessoas que precisam de muito tempo, outras de menos. Eu precisei de um tempinho aí. Eu me profissionalizei em 2010 na música e em 2017 vim lançar meu primeiro álbum.
PAS: Por que você data em 2010 a profissionalização?
RS: Quando eu saí do último trampo formal.
PAS: Era qual?
RS: Telemarketing. Aí fiquei só no rap, e deu certo. Ganhava mais que no telemarketing, tinha mais tempo, passei a ficar mais junto com meu filho.
PAS: Você tem filho?
RS: Tenho filho, um só. Durante um tempo ele tinha alguns auxílios, auxílio-creche do trampo da mãe dele. A gente pagava uma pessoa parente nossa pra cuidar dele quando a gente trabalhasse. E chegou uma época que essa pessoa foi lá, pediu uma grana que pra nós era inviável. Aí se criou uma tensão entre nós ali na família, e agora?, fodeu, não tem auxílio-creche. Falei: quer saber?, ele vai ficar comigo. E rolou.
PAS: Você é casado com a mãe dele?
RS: Não mais. Nessa época eu era.
PAS: E você passou a cuidar dele, é isso?
RS: É, fazia rap, cuidava dele, foi aí que, por exemplo, gravei tudo em casa e produzi tudo em casa.
PAS: Com ele em casa? Que legal.
RS: Exatamente, a forma que você tem de trabalhar é o faça você mesmo, produzindo seu próprio trabalho, gravando na sua casa e conseguindo dar conta. Ela chegava do serviço, tinha que estar a janta pronta, os bagulhos tudo (ri). Tinha que dar conta. Confesso que é desgastante. Eu gosto muito da rua, e fazer rap, fazer arte tem muito a ver com relação. São Paulo é uma cidade que não para, tem um sarau na terça, não sei o que tal dia. Por várias vezes eu queria estar nesses lugares e não dava. Mas aí, ao invés de ficar frustrado em casa, falei: vou fazer música até cansar. É o que eu fazia. Se eu partir dessa tem mais música pra lançar, que já está gravada, tudo lá.
PAS: Teve aquela primeira geração do rap, hoje você não consegue imaginar uma música deles que falasse de questão amorosa. Você cuidava do seu filho em casa e ao mesmo tempo gravava, foi o Galanga mesmo?
RS: Gravei o SP Gueto BR, que é de 2014, e o Galanga nessa mesma leva.
PAS: Juntando serviços domésticos, cuidando do filho, cozinhando e fazendo disco?
RS: Exatamente.
PAS: Essa é uma história diferente dos artistas da primeira leva, do Mano Brown etc.
RS: É. Lógico que eles tiveram as dificuldades deles, e talvez uma dificuldade maior, porque não tinham a tecnologia que a gente tem hoje. Eu sou um cara que me ligo muito em tecnologia. Isso ajuda também, até porque quando estou produzindo alguém ou as pessoas me veem trabalhando comentam: “Carai, você tem paciência“. Pô, pra mim é uma delícia, sabe? Gravar é foda, porque é uma responsabilidade, você tem que gravar um take pra eternidade, então às vezes tem música que intimida um pouco.
PAS: Você sente isso, pensa que vai ficar pra posteridade?
RS: Sim. Tem música que falo, puta, tenho que gravar, não posso errar. Você conta até dez antes e vai que vai. Pra eu não chegar nessa tensão, que é uma tensão gostosa, às vezes eu gozo o processo de produção, de mapear a música, editar, fazer os arranjos, produzir, trabalho minucioso. Pra essa gravação ficar boa pra eternidade às vezes o take está ótimo, mas tem uma partezinha ali que não gostei tanto. Hoje em dia a tecnologia permite que você abra um buraco, regrave, edite, faça as cirurgias que a gente costuma dizer. As pessoas veem eu fazendo isso e falam: “Nossa, cara, de onde você tira paciência?”. Eu gosto muito.
PAS: Na história dos primeiros rappers, numa outra realidade econômica do país, muitos nem tinham pai presente. Você contou há pouco que seu pai esteve presente, e está contando que você é presente na vida do seu filho. Seu filho vai ter uma outra história ainda além dessa que conhecemos hoje. Mas aconteceu alguma coisa no país que mudou as condições das pessoas…
RS: No meu caso, um lance que é significativo é que quem tinha emprego formal quando eu estava junto era a mãe dele. Isso já tem a ver com essa mudança. Minha mãe, por exemplo, trampava dessa forma que falei, vendendo as roupas que costura, com as clientes de cabelo. Mas ela não saía pra trampar, com uma rotina, de bater cartão de tal hora a tal hora. Se bem que você ser dona de casa é um trabalho.
PAS: Trabalho árduo, pesado…
RS: Daqueles, daqueles. Com três neguitinho dando trabalho, não era nada fácil.
PAS: Você sabe porque já foi dono de casa também.
RS: Exatamente. Tem essa diferença. Isso leva a gente a criar esse tipo de responsabilidade. A mãe dele ganhava mais do que eu, tem todas essas coisas que já são novas. Quem assumiu uma certa liderança financeira era a mãe dele, saca? E hoje é um novo momento, a gente está separado e eu vejo ele por períodos. A gente tem uma identidade boa, uma relação de amizade.
PAS: Com que idade ele está?
RS: Com 9 anos. A gente tem uma relação de amizade que às vezes é até exagerada, porque parece dois parça (risos). às vezes preciso falar “desce daí que você é o pai”. Aí perde até o juízo, né?, as coisas que ele fala pra mim, me zoa. Mas eu acho legal, porque isso é até uma parada de pedagogia que já li, que nossa geração tem dificuldade em impor limite nos filhos. Vejo eu nesse desafio, tipo, se meu filho falar palavrão tá suave, se ele dormir tarde… Lógico que pego no pé dele por causa disso, mas pra mim tá suave porque eu durmo tarde também, ou eu queria dormir tarde, queria ficar assistindo alguma coisa quando era menor. Hoje a gente tem esse lance de deixar as crianças fazer. Mas essa sociedade nova muitas vezes é intolerante no que diz respeito a homofobia, a racismo, a uma série de coisas, muito por causa disso também, porque não aprenderam a ter limite, a saber que eu sou esse, ele é esse, aqui é o meu espaço, aqui é o dele. É importante educar as crianças sem ser general, mas sabendo colocar limites.
PAS: Nessa parte de racismo, homofobia, machismo, você já dá aulas, digamos assim, pro seu filho?
RS: Ah, total, porque é coisa que aprende, né? Cai no mesmo lance, coisas que a gente reproduzia também. Você vai xingar alguém, “viado”, “seu boiola”. São uns negócios que eu já travo, comento. Às vezes lá de casa eu já ouvi as besteiras, dos moleques falar piada de cabelo, negócio com cor…
PAS: Tudo que há de horroroso as crianças reproduzem.
RS: É, já falam, né? Aí, quando ele subia, eu falava: “Então, estava ouvindo ali, o Serginho falou tal fita, isso ali não é da hora, não, parça”. Aí já vai pras ideias. Mas é um processo, pai você aprende a ser, né? Principalmente eu, que é primeira viagem. Por mais que a gente tenha vários valores legais, pra colocar isso em prática da melhor maneira a gente às vezes não é assertivo, às vezes bate cabeça.
PAS: Impor limite é difícil pra caramba, até pra gente mesmo…
RS: Impor limite é difícil. É um desafio dia após dia, a paternidade.
PAS: Galanga Livre, esse é um nome de disco que acho que também é um personagem. É o personagem que conduz o disco? Sei que ele é o Chico Rei, mas queria que você explicasse por que ele vira o titulo do seu disco.
RS: Muito pela parte filosofal. O Galanga, na verdade, é inspirado no Chico Rei. Quando vi que o nome do Chico Rei era Galanga, achei bonito.
PAS: Era o nome dele antes de vir pro Brasil escravizado?
RS: Isso. Achei esse nome bonito e coloquei no meu personagem. Mas esse lance de ele matar o senhor de engenho é justamente matar aqueles valores que privam nossa liberdade. Essa é a simbologia de matar o senhor de engenho. O racismo priva nossa liberdade de deixar nosso cabelo ser armado. Minha mãe, por exemplo, não deixava. Deixar o cabelo crescer…, eu me amarrava, consumindo o rap desde novo eu queria ter os corte, os black, as trança. Minha mãe pegava um pouco no pé quanto a isso.
PAS: Ela achava que não devia? Você entende a razão dela?
RS: Entendo a razão dela, desempregado, querendo cantar rap, você não tem referência quase nenhuma de rappers.
PAS: A sociedade marginalizava mesmo o cara que tivesse um cabelo black.
RS: E ela pensava: “Como meu filho vai arrumar um trampo nessa lata aí de brinco, alargador?”. Quando eu usava o alargador ela pulava alto. Começou com um menorzinho, aí foi aumentando, “aí não dá!” (risos). Essas coisas tudo davam um conflito. Existem valores que privam a gente de ser a gente. Então você matar o senhor de engenho significa isso, matar esses valores que privam nossa liberdade. Ao longo do disco falo sobre várias coisas relacionadas à liberdade, não necessariamente no contexto escravocrata. A “Moça Namoradeira” sugere que a garota seja mais livre e não se apegue àqueles valores de encontrar um príncipe encantado…
PAS: Que transe com quem ela quiser.
RS: Exatamente, de ela se dar o tempo de conhecer alguém, ter um parceiro. Aí “A Noite É Nossa” já fala numa perspectiva inversa, o cara falando, putz, “um pouco de frustração/ queria viver livre pra voar/ faltou a malandragem no meu coração/ que deixou o cupido te acertar/ fico a esperar”, ele é um cara que está se lamentando por ter se apaixonado. Mas aí ele usa desse sentimento de liberdade e fala, mano, o importante é que a noite é nossa, já botei a minha melhor roupa, o melhor traje, eu vou que vou, vou mergulhar, e já era. Propõe a liberdade de várias formas, “A Coisa Tá Preta”, a coisa tá boa.
PAS: Liberdade de deixar o cabelo crespo…
RS: Exatamente. Eu acho que esse é um elemento interessante pra contextualizar um álbum. Você precisa ter um título e esse título ter a ver com as músicas, a capa, o conteúdo visual, gráfico ter também tudo a ver com o que está sendo proposto.
PAS: O que é essa roupa?
RS: Ah, essa roupa eu inspirei muito nos dândis, uma linha de conceito de moda que existe no Congo, influenciada pelos colonizadores belgas. Eles usam blazers, chapeuzão. É um lance que habitualmente já gosto de usar, e como chegou o frio a gente já começa a se vestir melhor. Eu trouxe uma linguagem que já tem no “Elegância”, de 2010. A saia representa muito um conceito da moda contemporânea, que não tem mais a divisão de gêneros.
PAS: Fiquei na dúvida se era um traje africano ou uma saia mesmo.
RS: É uma saia, porque durante muito tempo existia esse conceito engessado do “rosa é feminino, azul é masculino”, “saias são para mulheres, calças para homens”. Hoje a moda desconstruiu totalmente isso, não têm gênero as peças.
PAS: Mas a maioria das pessoas ainda obedece às regras antigas, né?
RS: É, não são descoladas, não estão antenadas. Hoje em dia as garotas montam looks maravilhosos que não são necessariamente uma blusinha feminina. Elas usam camiseta mesmo, uma que eu ou você usaria. Formam looks legais. Tem a ver com esse conceito de moda de quebrar o gênero. Eu gosto muito de moda, acho que a gente só ganha com a quebra de gêneros na moda.
PAS: Machismo e homofobia não pegam no seu pé nessa hora?
RS: Pega, pega. Nunca chegou a mim diretamente, mas já ouvi de três pessoas diferentes da mesma forma, elas têm um grupo no WhatsApp de rappers envolvidos, pessoas do rap. A pessoa joga a foto e fala: “E aí, que que cês acham? Viu a capa do disco do Rincon?”. Aí começa um debate. Um monte de gente já me falou isso, “caramba, e lá no grupo?”. Sério mesmo que tem vários grupos falando sobre isso (ri)?
PAS: Você deve ficar feliz de saber disso?
RS: Eu fico feliz, porque é quando você promove a discussão e as ideias…
PAS: Você tinha essa intenção inicialmente?
RS: Ah, total. Pra falar a verdade, olho e acho tão bonito, a roupa bem montada.
PAS: “Elegância”.
RS: Elegância total. Se a parada está visualmente bonita, você não tem o que contestar, né? Na minha cabeça vai nesse caminho.
PAS: Isso é outra questão de liberdade? A liberdade de um homem usar saia?
RS: Total, como o Galanga é um personagem escravo, quem seria o Galanga Livre? Ele não é o cara que serve à casa, ele é o dono da casa. No caso, tô saindo da casa bem trajado, com a cabeça erguida, com roupas bonitas e tudo mais.
PAS: Posso concluir disso tudo que Galanga Livre é você?
RS: Galanga Livre sou eu, exatamente.
PAS: E começa na primeira faixa matando o senhor de engenho. Você fez isso na sua vida?
RS: Fiz isso na minha vida.
PAS: É aquele momento de sair do emprego? Como se mata o senhor do engenho?
RS: É quando você sai do emprego formal, vê que tá gastando energia, se estressando, adoecendo, e não é por você, é por alguém que não é seu parceiro, sabe? Você é um número ali dentro. É melhor colocar essa energia pra você, pra sua vida. Eu saí do meu emprego formal já casado, já com filho. Você querer ser profissional do rap já é uma loucura, e se dispor a fazer isso com filho e casado é mais loucura ainda. Exigiu audácia e disposição da minha parte pra chegar nesse ponto. É o lance do amor próprio, que eu já tinha alcançado antes disso, mas você percebe que o amor próprio cresce quando você vê que agora tem seu tempo, tem condições de ser você, de vestir o que quer, de comer o que quer, e tudo mais. E na parte afetiva, de diversas formas, eu poderia filosofar horas sobre o assassinato do senhor de engenho. E acredito que posso vir a matar outros ainda no decorrer da vida. A liberdade, infelizmente, não é algo pleno. A gente tem uma série de restrições morais e sociais sobre o que pode ou não pode fazer.
PAS: Quero fazer uma pergunta que se eu fosse escamotear diria “alguém pode dizer que…”. Sou um cara branco te entrevistando. Não é justo eu botar a culpa no outro, uma coisa que passou pela minha cabeça e vou te perguntar então na primeira pessoa. Um racista, se eu estiver sendo racista neste momento, vai dizer que o cara que quer matar o senhor de engenho é um cara negro que está dizendo que vai matar um cara branco. Sei que a gente já passou dessa fase, não é mais assim, você acabou de explicar que é matar um sentimento dentro de você que te impede de ser livre. Mas eu quero saber se o racismo ainda emperra essas coisas, se ainda causa esse tipo de confusão que acabei de narrar agora. Você não está propondo matar o cara branco que te escravizou, ou melhor, que escravizou seus antecessores…
RS: Uma das influências de eu ter escrito isso é a música “I Shot the Sheriff”, do Bob Marley. Eu estava vendo a apresentação dele no Woodstock, talvez, num festival na Europa, aqueles brancos todos que tomam LSD e ficam doidão. Eu vendo o show, com legenda, tem uma parte que ele canta que o Mr. Brown, que é o xerife, aparece e parece que vai atirar nele, mas ele se antecipa e pum!, mata o Mr. Brown. Bob Marley é muito visceral, muito performático, sentimental. Quando vi isso aí falei, caramba, o cara cantando sobre matar alguém assim e não soa agressivo, porque ele é tão artista, canta tão bem, a banda dele é enorme, percussionista, órgão, teclado, guitarra, backing vocal. Pô, não tem como questionar, né? Então primeiramente pra fazer isso eu acreditei muito na minha caneta, na qualidade da minha poesia e da minha história, e também na música, que é bem gostosa de ouvir, balançar a cabeça e curtir. Sou um fazedor de arte, saca? Quando você assiste um filme do Van Damme e ele mata o vilão ninguém fica assustado, as pessoas até gostam e falam “uau!, cê matou o vilão!”. Tento seguir na mesma linha. Tem a parte mais filosófica, mas não significa que eu, pelo momento que vivo como artista, com meu trabalho indo bem, eu tendo condições básicas… Eu, que não compro roupas caras, me visto bem, tenho condição de me vestir bem, ter um pisante da hora, comer bem, me locomover bem, saca? Então a nossa autoestima e confiança se torna diferente, como cidadão. Mas às vezes você tá nessa pinta toda e mesmo assim você vê o racismo, você vê a pessoa achando que você vai pegar o celular dela. Esses dias tava um cara andando na Paulista, meu celular nem é o mais bala, mas é mais legal que o dele (ri), eu fiquei pensando nisso: pô, eu sou mais estiloso que o cara, as roupas mais legal, o celular mais legal, enfim, e o cara tá com medo de mim, entendeu? Talvez poderia ser o contrário.
PAS: Deveria ser o contrário.
RS: É, é algo que está instituído assim, de o cara associar minha imagem como alguém que poderia dar o bote. Ele estava andando, eu vindo mais de trás, toda uma leva de pessoas, qualquer um podia pegar o celular dele. Mas ele se assustou comigo.
PAS: Eu me coloquei nessa pergunta pensando inclusive nisso, de que sei lá quantos por cento dos jornalistas que vêm te entrevistar são brancos. Em que grau está essa desigualdade? Como você analisa o ponto em que estamos no Brasil quanto a isso?
RS: Acho que a gente está propondo ocupar os espaços. É o que me faz criar todo esse espírito. Às vezes penso, a grosso modo: puta, mano, cê tá falando que tá matando o senhor de engenho, tá falando da volta pra casa, seu trabalho não é pop, vamos dizer assim.
PAS: Isso é você com uma autocrítica sua?
RS: Eu comigo mesmo. Mas aplico tanta energia, tanta verdade nisso, dou meu máximo pra ter um capricho na produção musical, na capa do disco, em tudo, justamente pra isso se tornar pop. Acho que a valia disso ser pop é justamente estar presente, o cara pegar seu veículo, sua revista, pra ler qualquer coisa e chegar até mim. E o cara ligar a televisão na Globo que seja e chegar até mim, e até meus parceiros também. Toda essa minha gana de pop, vamos dizer assim, mesmo sabendo que eu não tenho todos os signos da cultura pop, é justamente por causa disso, porque acho que é necessária essa representatividade. Minha gana por ganhar dinheiro, por ficar da hora, é justamente pra ser essa referência mesmo que falta. Porque o ponto mais foda é que a gente é maioria, se falar de sociedade. Quando você liga a TV e sai zapeando de canal e não vê preto é um desajuste muito grande.
PAS: Isso é o senhor de engenho te matando.
RS: Exatamente. É por essas e por outras que ainda tem senhores de engenho a serem mortos, saca? Você pega, sei lá, num país como os Estados Unidos, onde os pretos são minoria, se tem muito mais referências. É um país racista pra caramba também, que nem aqui, não muda nada talvez. Mas você tem um equilíbrio a mais de referências, em várias áreas, não somente na música. Acho que esse é um lugar a se chegar. A gente tem vários pontos contra, mas eu tô preferindo colocar nos discursos das minhas músicas só o axé mesmo, só que nós tá da hora.
PAS: Mas você não evita nenhum assunto.
RS: É, não evita nada, mas eu tô valorizando mais falar sobre sermos reis, que a gente tá chegando, que a gente é bonito, que…
PAS: Como é “A Coisa Tá Preta”? Isso é uma frase positiva?
RS: A coisa tá preta, a coisa tá boa. Tô indo mais nesse caminho. Poderia estar falando sobre, sei lá, extermínio. Há um índice muito grande de jovens pretos que são mortos. Estive no Espírito Santo, me falaram que é o estado onde mais morrem jovens pretos, tem um lance cruel ali com a polícia. Essa denúncia é necessário ser feita, mas eu tô preferindo trazer esse discurso de autoestima e de nobreza.
PAS: Que também é um jeito de fazer essa denúncia sem ser do jeito que o senhor de engenho manda…
RS: Exatamente. Diria que meu trabalho artístico e de comoção sobre o assunto passa por isso.
PAS: Fala um pouco sobre “A Coisa Tá Preta”? É uma das minhas prediletas.
RS: Pô, eu gosto muito também. Se você pensar na origem da frase, dizem que a coisa tá preta num sentido negativo. Tem a ver com um lance fúnebre. Mas, como a arte tem o poder de ressignificar… Por exemplo, você raramente vai ouvir numa música de rap alguém falar “é nós”. É “nóis”. É impossível você falar que “é nós”, “nós vamos”. Você pega uma parada que não é certa e faz se tornar uma realidade. Então “a coisa tá preta”, independente da origem da frase, sempre foi dita pra falar que a coisa não tá legal. Mas aí, com o poder que a arte tem, com a minha ideia de trazer e enaltecer a cultura preta e o povo preto, transformei isso num bordão nosso de positividade. Vejo as pessoas postarem a respeito no sentido positivo, depois da ressignificação que dei na música. Vejo minha influência forte nesse sentido, e é o poder que a arte tem. Saiu uma matéria uma vez num portal, vários comentários falando “isso não tem nada a ver”, “vitimismo”, não sei o quê.
PAS: É um bombardeio.
RS: É, eu só penso que o choro é livre e agora, quando falar que a coisa tá preta, as pessoas vão pensar sempre nisso, que a coisa tá boa, por conta da música.
PAS: Vou aproveitar e te perguntar: entre amigos brancos, tento combater o racismo, o meu e o dos outros, o tempo todo, e é muito comum se falar o verbo “denegrir”. Pra mim acho ofensivo, passei a achar que era. E quando tento falar que é ofensivo as pessoas dizem isso que você está falando, “que é isso?”, “nada a ver”.
RS: É muito louco, porque as significâncias têm o poder. Tem a palavra no sentido literal e a sifgnificância. A origem de “denegrir” realmente seria enegrecer, saca?
PAS: Tornar negro.
RS: Então você falar negativamente, “você está denegrindo”, quer dizer você está enegrecendo, e isso é ruim. Mas no meu nível de filosofia a própria palavra “negro” já tem uma origem ruim, tanto é que eu prefiro usar sempre o termo “preto” ao invés de “negro”. É uma loucura, né? Eu particularmente conheço pessoas que dizem “não, não se pode falar ‘negro'”. Eu acho que passaram a dar significado à palavra “negro” sobre as pessoas da etnia afrodescendente e sua miscigenação toda. Eu não gosto de usar, mas quem usa tá suave, porque criaram um significado novo. Mas originalmente a palavra “negro” é porque “negro” tem uma origem já pejorativa na sua essência. Então a magia ruim é magia negra, e por aí vai, a lista ruim é a lista negra. Uma vez vi um GC na TV, tava falando que o trânsito tava ruim, estava escrito assim: “Dia negro”. O negro me chamou atenção, o que tava acontecendo? Manifestação, Zumbi dos Palmares? “Dia negro”, fui ver, não, (ri) dia negro no trânsito de São Paulo, e os carros tudo engarrafado lá. Tem uma parada que lembro do tempo de escola, cara. Hoje em dia não é mais, mas é no Dicionário Aurélio, me lembro muito disso, em 1996, na quarta série, a palavra “negro” no Aurélio era assim…
PAS: Você foi procurar porque quis?
RS: Eu era meio nerd, né?, era das notas boas. Tal fita, fala uma palavra, a gente adorava brincar de stop, eu e os amigos nerds. A gente foi, “negro”, tutututu, maior adrenalina, era eu preto, o outro, um preto mais claro que veio a se conhecer preto bem mais depois, e outro menino, branco. Nós ficou até meio, “caralho”, porque tava “sujo”, “encardido”, umas parada assim, sabe? Então eu já não acho massa sair gritando “sou negro”. Mas respeito muito o movimento negro, o não sei quê das mulheres negras, tô fechado com elas. A gente tem questões muito mais profundas do que ficar falando a origem das palavras, mas a gente tem isso na nossa construção do país, palavras que originalmente têm sentidos que a gente nem imagina.
PAS: Se fôssemos ou se desejarmos ser uma democracia de verdade um dia a gente tem que aprender a dar valores negativos pro branco também, e positivos pro negro, que é o trabalho que vocês estão fazendo o tempo todo, vários artistas.
RS: É, o exemplo que você falou, maloca. Maloca é casa de índio, né? Maloca, saboca, oca, e tudo mais. Mas provavelmente partiu do pensamento colonizador de associar coisas bagunçadas, de origem ruim, como malocagem, maloqueiro…
PAS: A música que fala dos crespos…
RS: “Ponta de Lança”.
PAS: É o máximo o que você fala, amar os pretos… Tem um duplo sentido, não sei se cê tá falando que um crespo ama o outro…
RS: “Quente que nem a chapinha no crespo, não/ crespos estão se armando/ faço questão de botar no meu texto que pretas”, será que é isso? (Fica confuso com a letra.) Cara não sabe cantar a própria letra (risos). Se eu venho rimando antes acerto todas, mas se pegar do meio a chapa é quente. (Concentra-se.) “Faço questão de botar no meu texto que pretas e pretos estão se amando/ quente que nem o conhaque no copo, sim/ pro santo tamo derrubando/ aquele orgulho quer já foi roubado/ na bola de meia vai recuperando.” Fala muito sobre resgate de orgulho.
PAS: Desculpa, não quero te interromper, mas é que é aí que ficou meu duplo sentido, não sei se você está dizendo que o preto tá amando a preta e a preta tá amando o preto ou se cada um deles tá amando a si próprio. Cabem as duas coisas?
RS: Cabem as duas coisas. Quando você deixa o seu cabelo se armar, você abre mão de… Por exemplo, fui careca anos, eu mesmo raspava meu cabelo.
PAS: Tem um clipe que você tá de cabelo curtinho.
RS: É, ali querendo ou não, já tinha a camurcinha. Mas eu era tipo zerinho. Era louco, porque quando estava maior eu só andava de bombeta. Pra você ver como o assassinato do senhor de engenho é por partes. Ali eu já ouvia rap, já tinha consciência racial, uma pá de fita. Mas durante muito tempo eu andava muito de boné, tinha vergonha da minha cabeça.
PAS: Como é sem boné, posso perguntar?
RS: (Tira o boné e exibe o cabelo trançado.) Agora tô chique, até de franja emo (risos). Mas careca, sem boné, eu tinha vergonha da minha cabeça, sabe? O crânio do preto tem o formato particular, que as pessoas zoavam pra caralho.
PAS: É? Eu nunca diria isso.
RS: Tem, tem. Lógico que o povo preto tem várias etnias, mas tenho aquele formato que é tipo avantajado aqui.
PAS: Você tá dizendo que a sua vergonha não era do cabelo, era do formato?
RS: Então, mas já conta. Você já raspa o cabelo porque negão é careca, não deixa o cabelo se armar. Começava aí. Aí careca ainda, se alguém tirava a bombeta na escola era treta fodida. Tanto é que o bullying mais fodido era quando alguém, tchibum!, aí você vai pegar o boné, joga pro outro. Eu tinha um pouco de vergonha da minha cabeça, pessoal me chamava de alien. Sabe aqueles bagulho do Egito, que falam que é uns extraterrestre?
PAS: É um formato lindo de cabeça, eu queria ser daquele jeito.
RS: Cabeça avantajada, a minha é igualzinha à desses extraterrestre aí (ri). Vai saber, né?
PAS: Vai saber se os ETs nasceram aqui mesmo…
RS: Ou se eu vim de nave e nem lembro (risos).
PAS; Rincon, o que tá acontecendo no Brasil? É inegável que existe uma consciência despertando, que já pode ter o cabelo do jeito que quiser, até as marcas já se aproveitam disso e fazem propaganda de cabelo cacheado…
RS: É, parte de dois princípios. A moda recentemente esteve com estampas étnicas. Ainda tem muito disso, vai na C&A. Eu tive camiseta da C&A com estampas étnicas. Mas de onde vem o lance da moda? Vem do próprio comportamento das pessoas. Se as pessoas que trabalham com moda reparam que tá havendo um movimento de resgate de origens, de raízes, de voltar à África, à sua essência, isso se torna uma tendência.
PAS: O problema é quando elas só vendem pra pessoas brancas.
RS: Exatamente. O produto de cosméticos entende que a pele preta tem uma textura particular, tem que ter o óleo da pele preta, a maquiagem da pele preta, o lance pro cabelo crespo. E fora isso a gente tem o poder de consumo também. Então nem todo mundo é tão bonzinho assim de falar: “Porra, mano, vamos cuidar dos cabelos crespos”. Eles sabem que a gente hoje em dia tem poder de consumo, e a parada da gente vira um alvo também, que eu acho de certa forma positivo. Lógico que pode-se dizer que é oportunista, mas… O colonizador nunca é bom, né? Mas a gente tem um lance que o colonizador português não foi dos melhores também. Isso eu vi em Senegal, quando estava lá, um país com pouco mais de 50 anos de independência, país muito bonito, muito rico, muito da hora, muita coisa em construção, principalmente nos bairros, muita rua de terra, mas o pessoal fala vários idiomas, o idioma das etnias deles, o francês do colonizador, um monte de gente sabe falar inglês, tem referência legal. Você vai comprar roupa de camelô, é roupa da Zara, referências de modas. Mas falei isso porque tinha pensado no seguinte detalhe: os colonizadores mais espertos – como falei, eles nunca são legais -, o francês ou o inglês, quando houve o fim da escravidão, passaram a… Enfim, aquele monte de pretos que eram escravos tem que ser cuidado, tem que estudar, então eles fizeram políticas que fizeram os pretos participarem disso. Os Estados Unidos é país racista pra caralho, mas sabendo do potencial dos pretos no esporte, no basquete, há todo um apoio, nas universidades, nas quadras mesmo, nas quebrada. Os caras jogam basquete, respira basquete, são os melhor do mundo. Há um potencial nos pretos, na música, na arte, então na educação deles aprendem música, teatro, uma série de coisa. Aqui no Brasil não houve um cuidado. A gente ficou muito, muito tempo ao Deus-dará, ou refugiados nos quilombos, ou servindo seus senhores da mesma forma que era no tempo da escravidão. O ideal é que fizessem algo pra gente participar, pra gente poder comprar os produtos, pro dinheiro circular, enfim. É uma das situações econômicas do Brasil ser essa. Tem se erguido nos últimos anos, mas o Brasil durante muito tempo é um Terceiro Mundo justamente por causa disso. É uma minoria com dinheiro, com grana, com estudo, e o resto do país fodido e sem ter grana pra movimentar. É o lance do Bolsa-Família, por exemplo. No Bolsa-Família o cara tem uma renda mínima, num lugar muito afastado, e com essa renda mínima ele consegue consumir. Aí, no que ele consegue consumir, ele vai comprar naquela vendinha que tem no bairro lá. Aí esse cara da vendinha do bairro vende tudo, porque o pessoal tem dinheiro pra consumir. Como ele tá vendendo tudo, ele precisa comprar mais dos fornecedores. Aí a economia movimenta, entende? Não é a melhor solução econômica pra gente, o ideal é todo mundo ter condição de comer, de tudo. Mas quando cê toma uma medida dessa você ajuda o capital girar. Aqui no Brasil sempre foi uma dificuldade segregária, os índios muito isolados, mais que os pretos ainda, participando menos da sociedade ainda do que os pretos, mais marginalizados. Quem perde com isso é o próprio Brasil.
PAS: Nós estamos num momento no Brasil de puxar o breque disso tudo. Na minha opinião, um governo golpista que tá tentando retroceder nessas coisas todas. Não sei se você concorda, queria ouvir uma avaliação sua.
RS: É um retrocesso, né? O ideal pra eles sempre foi a manutenção de privilégios. Antes só eles iam pra faculdade, só eles andavam de avião, só eles consumiam, só eles iam numa grife massa e compravam. Quando começou a democratizar as coisas e os menos favorecidos começaram a ter acesso, a ser protagonistas, e dos que passaram a ser protagonistas se tornaram concorrentes daqueles que sempre tiveram lá com aquele conforto todo, aí isso se tornou uma situação a ser brecada. Pessoal falou, pô, dando nome aos bois mesmo, se o Lula é eleito e tem mais oito anos de Lula onde vai chegar? Tava essa distância aqui enorme, aí começou a equiparar, aí pessoal pensou: “Puta, fodeu, se ficar mais oito anos desse tipo de política vai equiparar mais ainda, vamos brecar esse processo aí, vamos falar que é meritocracia, que isso é esmola”. Boa parte das pessoas tá acreditando que o Bolsa-Família é esmola.
PAS: Você acha que vão conseguir brecar? Você é um exemplo vivo do cara que aprendeu seus direitos, que não vai querer aceitar retrocessos.
RS: Pra mim é justamente esse o processo. A reviravolta passa pelo engajamento do povo. Essa situação de golpe pode levar o povo a se engajar. Eu já tinha falado isso anteriormente, durante muito tempo as pessoas votam pela propaganda eleitoral, pelo jingle, pelo perfil da pessoa, se é boa pinta. O próprio Fernando Haddad é isso.
PAS: E o João Doria Jr. também, os dois, cada um num lado do espectro.
RS: É, cada um numa linha de política, mas os dois foram eleitos na imagem. Haddad nunca… Eu sei que ele tem uma caminhada, mas eu desconhecia e a grande maioria das pessoas desconhecia, e ele foi muito pela lata dele. Isso sempre aconteceu, com Fernando Collor, com Marta Suplicy, de várias formas isso rolou. Esse conflito político todo pode levar as pessoas a querer se engajar mais e saber escolher melhor seus candidatos. Agora, na ausência disso, se as pessoas realmente forem dormir no barulho das grandes mídias, se basearem em ter informação somente pelo Jornal Nacional, pelas mesmas vias de sempre, com as mesmas intenções de sempre, aí a gente vai sofrer calado. Tudo bem que tem uma grande parcela que vai reivindicar e não vai aceitar o que tá acontecendo, mas eu acredito na força da maioria. E a maioria ainda não está engajada.
PAS: A maioria é uma incógnita.
RS: É, a gente não sabe até que ponto há uma disposição de reivindicação. É muito louco, o que eu penso é que as classes mais favorecidas estão ainda mais tapadas que as periferias. O exemplo é o que aconteceu, as pessoas apoiarem determinado candidato, Aécio Neves, e cair as michas dele, e a única coisa que tiveram pra fazer é apagar a foto que postou junto e tirar a foto de perfil do Facebook que apoiava o 45.
PAS: Se ele se safar botam a foto de volta.
RS: Exatamente. Qualquer um pode cair numa dessa, mas aí a gente precisa ser ético, né? Se eu estiver apoiando alguém assim e for comprovado por A mais B que deu milho, eu vou falar “deu milho e não tô compactuando com isso, apoiei, mas acho que foi milho, já era”. Essas pessoas podiam estar reivindicando isso também, tudo isso que aconteceu, justamente por ter apoiado, por ter colocado a camisa da seleção, por ter batido panela na varanda, tinham que estar reivindicando o fato de cair essas michas desses políticos todos. Mas não.
PAS: De alguma maneira os políticos e essa elite que bate panela, majoritariamente brancos, estão demonstrando que não são nenhum exemplo de boa conduta. Estão democratizando uma coisa que historicamente os negros – os pretos, vou falar do seu jeito – levaram a culpa, sendo que os bandidões brancos que existem por aí… Tá assustador de acompanhar.
RS: Tá, porque você vê que é um lance criminoso mesmo, chega a ser mafioso. Cai a micha de um, aí ele entrega o outro, que entrega o outro, já vê que o outro tava envolvido também, e por a mão no fogo por ninguém é possível.
PAS: Todos senhores de engenho, na verdade hoje eles estão se matando uns aos outros.
RS: É, eu acredito na forma de pensar política. Eu já tive um ponto de vista que era tipo assim: eles não representam, eles não têm caminhada nenhuma na rua, então ninguém vai saber o que tem que ser feito.
PAS: Aquela coisa “fora todos eles”?
RS: Nenhum, nenhum. Mas aí me passaram um ponto de vista muito interessante, quando eu era adolescente, influenciado de certa forma por ideias anarquistas. Eu lia muito livro de revolução, então peguei bode de político. Mas aí me falaram um detalhe muito interessante, que é: preto não votava, mulher não votava, o voto não era democrático, e muita gente se fodeu, morreu pra as pessoas terem o direito de votar. A gente precisa saber que tem um poder de mover pelo menos as diretrizes das coisas. Hoje em dia eu acredito nisso. Vejo determinado político, não vou botar a mão no fogo por ele, mas vejo que ele pode levar por um caminho que é mais favorável que o outro candidato quer levar. Então eu faço questão de ir até a urna e fazer a minha escolha e participar desse processo aí.
PAS: Você tocou num ponto importante, central no Galanga Livre, que é a liberdade versus as coisas que escravizam a gente. Estamos num momento em que reforma trabalhista, reforma da previdência…, ninguém imaginou que pudesse chegar nesse ponto, mas estão tentando passar leis que vão reescravizar a população, negros principalmente, mas todo mundo.
RS: Exatamente. Acho que houve avanços extremamente significativos, de os pretos começarem a estudar, a pertencer. Falo porque nesse meio mesmo do rap e cultura urbana no geral, sarau, tem muita coisa, muita gente fazendo marca de roupa, roupas bonitas, trabalho com moda, maquiagem. Conheço muita gente protagonizando coisas que eu não via em tempos passados. Participei do desfile do Diego Gama na Casa de Criadores, é muito louco cê ver estilistas pretos, homossexuais, fazendo a parada com todas as adversidades que têm como vivência e como cidadão, e fazendo coisas maravilhosas. Me senti extremamente honrado por fazer parte disso. E protagonismo, porque eu estava numa parada mesmo de desfile, de ver as pessoas se maquiando, montando kit. Era louco porque cê vê aquela pretinha que cola no rolê, aquela outra, tudo bons profissionais. O protagonismo nosso tá bem legal. E quando se falava em anos atrás sobre desemprego… Hoje o desemprego tá maior, mas teve uma fase que se falava de desemprego, mas tinha um outro fator a se considerar, que tinha gente que era bom profissional, tinha sua renda, mas fazendo vídeo, sendo fotógrafo, e isso não tem carteira assinada. Muitas pessoas, pra fazer pesquisa sobre empregos, se baseiam em carteira assinada, e na real tinha muito músico, gente vivendo da música, rapaziada do funk, criando seus escritórios, vendendo show, ganhando grana, fotógrafos, videomakers, pessoas que trabalham com maquiagem, moda. A gente passou a assumir um protagonismo que a gente não tava assumindo outrora. Então é o golpe mesmo, começou derrubando a Dilma Rousseff e agora derruba os privilegiados por esses últimos governos. Começou reforma da presidência, congelamento de grana na saúde e na educação, e por aí vai. Se deixar mais ainda a coisa na mão deles é daí pra pior. O próprio Jair Bolsonaro assumiu que territórios quilombolas, indígenas, com ele não ia ter boi, ia tudo pro saco. É esse o pensamento.
PAS: E que a profissão dele é matar.
RS: Sim. É esse o pensamento que tá rolando. O Brasil nunca discutiu o racismo de forma explícita.
PAS: Você acha isso? Acha que precisa?
RS: Hoje em dia tá um pouco mais explícito, então tanto aparece a gente fazendo obras como essa como aparece gente assumidamente falando que não tá com nós, que tem que acabar.
PAS: Na verdade esses sempre pensaram assim, só não diziam.
RS: Sempre pensaram assim. Mas como a gente começou a gritar tanto, fazer tanta arte, tanta coisa, Facebook, rede social, eles precisavam se posicionar. Aí foram, tiraram suas máscaras e estão agindo agora.
PAS: Teria algo de positivo nisso, então? Está às claras. Às claras é um termo racista – está ao ar livre.
RS: Tá, é. Mas ao mesmo tempo é um processo que eu vejo nos Estados Unidos, onde o racismo sempre foi menos velado que aqui no Brasil. Lógico que tem uma história muito triste deles também, muitas mortes, mortes de líderes. Os líderes foram simplesmente assassinados, Malcolm X, Martin Luther King. Mas coisas que aconteceram em 1968, em 2008 eles estão elegendo um presidente preto, saca? Tudo bem que tem toda uma jogatina pro Barack Obama estar lá, tem tudo a ver com a imagem ruim que estava os Estados Unidos diante do mundo, mas querendo ou não foi um marco importante na história deles, principalmente.
PAS: Nós precisamos passar por ele ainda.
RS: Então a gente tá meio que vivendo esse período de embate mesmo. Tomara que ninguém morra reivindicando seus direitos, como morreram lá. Mas a gente tá nesse processo pra daqui a alguns anos quem sabe estar colhendo esses frutos aí.
PAS: O disco começa com Tom Zé, né? Por quê?
RS: Foi uma música sampleada, “Jimmy, Renda-Se”. Tom Zé é um artista, música brasileira é muito rica, eu tento ser um artista de personalidade muito forte. Tem artistas que você ouve o primeiro timbre de voz, a primeira nota, o primeiro acorde da banda, e cê já sabe. Se pensar em Mutantes já sabe daquele som psicodélico louco das guitarras, se pensar nos Novos Baianos, no Jorge Ben, só o groove do violão, nem precisa cantar e você já sabe quem é. E o Tom Zé é desses aí, é dos caras que têm muita identidade. Eu gosto de pesquisar a obra dele. Achei essa música aí, achei que combina muito, que poderia virar um rap. Sampleei, entreguei o sample no começo da música. Como a gente tem um time legal aqui, a gente fez todas as vias legais.
PAS: Tom Zé deixou?
RS: É, tá tudo no fechamento.
PAS: Essa é outra das liberdades que no princípio o rap não se permitia, experimentar com a música do jeito que vocês fazem hoje, botar um Tom Zé, música nordestina, bateria de escola de samba, afrobeat…
RS: A história do rap é extensa, teve muitos artistas ousados, alguns não tiveram tanta grife e outros as coisas passaram batido.
PAS: Está pensando aqui mesmo ou fora?
RS: Aqui mesmo, se pensar um clássico do rap nacional “O Homem na Estrada”, conheci primeiro “O Homem na Estrada” (1993) que a música do Tim Maia, “Ela Partiu” (1977). O próprio “Fim de Semana no Parque” (1993), dos Racionais MC’s, que faz alusão ao Jorge Ben (a “Dumingaz”, de 1975).
PAS: Você conheceu tanto Tim Maia como Jorge Ben via Racionais?
RS: Exatamente, tanto é que certo dia eu tava ouvindo de bobeira, aí que ouvi “vamos passear no parque”, falei, ah! É muito louco, sempre houve, Rappin’ Hood também, houve algumas misturas.
PAS: GOG faz bastante isso.
RS: O GOG também, mas também teve uma resistência, logicamente, pelo momento, pela época, pela forma. O rap começou nos anos 1980, era uma cultura dos b-boys, de dança, e acho que Racionais foi quem deu esse caráter de música de periferia, de falar da realidade da periferia dessa forma que se tornou o estilo do rap durante muito tempo. A partir disso, quando uma parada grande se destaca, sempre tem esse movimento. Tipo, Emicida começou a se destacar, apareceram muitas coisas parecidas com Emicida. Racionais se destacando tinha muitas coisas parecidas com Racionais. Muitas coisas encararam isso como uma regra, como “o rap tem que ser feito dessa forma”.
PAS: Existia em todos os gêneros, o sambista não podia sair da linha, ninguém saía do seu quadrado.
RS: Sim. Falo porque a música rap no Brasil era muito grande, então quando o artista não era tão bom ele era enjoativo. Mas quem fazia música grande era Racionais, que era muito além dos padrões da música geral, no mundo talvez. As músicas tinham 5 minutos no mínimo.
PAS: Mariana Bergel (da produtora Boia Fria, que representa Rincon) estava falando de como você é um dos rappers prediletos de Mano Brown, de como ele assina embaixo do seu trabalho. Como é essa convivência?
RS: Ah, muito louco, porque é um herói mesmo. Ele eu vejo como se fosse um Bob Marley, um Paul McCartney, um cara grande da música. Uma admiração enorme, e a vida me deu essa bênção de ter um prefácio dele no disco e de conhecer a pessoa dele, trocar ideia, tomar um café, dar risada, contar história. Quando a gente se encontra, que não é sempre – estive com ele recentemente, trocando ideia, ouvindo música -, você ver o lado mais humano do cara, um cara alto astral pra caramba, inteligente.
PAS: Dá um medão, um respeito de conviver de igual pra igual com um cara desse?
RS: Total… Ele tem um pouco o estigma, se algum comediante vai imitar ele imita um cara sisudo, falando tudo errado. Aí cê vai sentar com o cara, o cara tem um conhecimento enorme de música, de filme, de tudo. E, querendo ou não, quem fez essa obra que ele fez não pode ser visto como um cara ogro, sabe?, que nem as pessoas tentam representar. Ele é um cara especial.
PAS: Foi uma referência central pra você, quando começou?
RS: Total. Eu passei a querer fazer rap por causa do Xis. O estilo do Xis é despojado, zona leste, essa parada toda. Ele tem uma influência muito grande do futebol também – apesar que é corintiano, nem todo mundo é perfeito (risos). Mas o lance de bater o reto, de chamar atenção, falar “nossa, tem palavrão”, era Racionais, sem dúvida. E era o bairro todo, do jeito que a gente ouve funk hoje em dia, tocando nos carros, era rap. Os caras empinando pipa, deixava o carro estacionado na rua de frente aos prédios na Cohab, ia pra quadra – quem empina pipa é marmanjo, né?, não é nem a molecada, é os caras mais velhos mesmo (risos) – “cê não sabe como é caminhar”. Os caras ouviam, cantavam, cê ficava ouvindo.
PAS: Essa cena é muito maravilhosa.
RS: E essa cena é verdade, um flash que eu tenho, sei até o nome do cara, um cara que namorava uma mina do meu prédio.
PAS: O estereótipo é um cara marrento, bravo, e você tá falando dele empinando pipa ouvindo Racionais.
RS: Apesar que pipa é um negócio sério de quebrada (ri), dos caras.
PAS: Mas tem uma coisa infantil…
RS: Não, é, a essência da pipa é infantil, muito. Mas na quebrada, “ô, mano, ó a minha linha aí”, dá até briga (risos). É um lance de marmanjo mesmo, oclinho na cara, sai sem camisa, camiseta aqui no ombro (ri), empinando pipa e ouvindo rap.
PAS: Eu tenho mais a idade do Mano Brown, e pelo menos entre os brancos a geração do pagode era detestada, execrada. Acho tão bonito, sempre que entrevisto um cara da sua idade do rap, o respeito que vocês têm com os pagodeiros. Assim como o Mano Brown é amigo do Netinho de Paula, também não tinha esse preconceito que na sociedade branca passava de outro jeito. Sobre a importância que esses caras tiveram para os moleques da sua idade, qual foi?
RS: Hoje em dia, principalmente, quando a gente passa a conhecer mais de música, eu acho ainda mais foda do que antes. Antes era o hit mesmo. Hoje eu pego a letra, os arranjos, às vezes tento tirar no teclado as cifras e começo tocar, você fala: “Ó, caraio, o que ele fez aqui foi foda”.
PAS: Pode dar alguns exemplos?
RS: Exemplo de letra é aquela música… Não sei o nome, porque ela não tem o nome do refrão. Mas é aquela do Katinguelê, “ei, mulher/ me comovi com sua história” (trata-se de “Cilada”, de 1994). Resumindo, a mulher é prostituta. “Não sei o que lá sofreu na vida/ tão decidida”, música linda, linda, linda, linda. E é do rádio, né?
PAS: É a mãe da “Moça Namoradeira”?
RS: É, “no começo foi seu lado humano”, ele fala que a mina começou a desencanar da prostituição, foi fechando com ele… Aí, como é que é? “Alguém que teve alguma sorte/ a mais na vida do que eu/ seu olhar então se foi/ me abandonou.” Ela conheceu outro cara que tinha bala, voltou pra prostituição. Aí vem o refrão: “Quem te viu na madrugada/ perdida/ dando início a uma virada/ na sua vida”. Eu ouvia assim, da hora, Katinguelê, Salgadinho, o óculos na testa, os caras atrás. Era playback na TV (risos), o cara cantava e ficava o resto dançando atrás. Era o que os caras zoavam, o Rodolfo Abrantes dos Raimundos sempre zoou os pagodeiros. Mas hoje ouço, falo, caralho, mano, os caras botar uma música falando da prostituta no rádio, e fizeram uma música mor bonita ainda por cima.
PAS: E sobre arranjos, algum exemplo?
RS: Ah, tem vários. Os grooves simples, mas tem aquela música do Art Popular que tem um cavaco no começo (cantarola “O Canto da Razão”, de 1993), uns groove fenomenal. Não é à toa que Leandro Lehart hoje em dia não tá na crista da onda, mas é multiinstrumentista, produtor, monstro, cara grande. Mas na época o estigma era esse, pagodeiro, era meio desdenhado. Mas se pegar tecnicamente… O problema foi no final dos anos 1990, quando começou a vir “Pagode da Amarelinha” (“Amarelinha”, 1997, Art Popular), dancinha não sei o quê, aí ficou meio chato, meio banal.
PAS: Tem o problema também de quando massifica muito.
RS: É, até os grupos bons passaram a fazer umas músicas menos legais depois. Mas o começo dos anos 1990 era sensacional.
PAS: É legal que na sua geração tanto os meninos pretos como os brancos assimilaram esses caras. Hoje em dia eles são cultuados.
RS: É, hoje virou um clássico. Tem uma festa, Discopédia, que talvez seja a festa preta mais quente de São Paulo no momento. Fui no especial 1990, foi melhor que o especial Beyoncé, por exemplo. É a geração toda que ouviu, né?, então não tinha uma que o DJ virava que o pessoal não cantava. Era coral pra todas as músicas, uma hora de coral, o baile todo cantando, nostalgia.
PAS: Viraram nostalgia.
RS: Um dos rolê que eu fiz, solteiro ainda, no comecinho, eu fui no show do Sensação sozinho, no Bovinu’s. Fase nova da vida, solteiro, tava no centro, sigo eles no Instagram, estou vendo de bobeira, olhei lá, “Sensação no Bovinu’s, no centro”.
PAS: Bovinu’s é uma churrascaria?
RS: É, mas rolam uns bailes black lá, umas atrações. Era tipo agora, saí da boia fria, tô no centro.
PAS: O que era assim era aquele de samba-rock, o Green…
RS: Green Express. Se bobear eu tava até na boia mesmo. Tava de bobeira na rua, caçando assunto, estava até com uma rapa, você vai no centro, perto da galeria, sempre encontra uma rapaziada. Meio que desbaratinei, vou ali e já volto. Acabei sozinho, e foi showzão. Meus preferidos desses aí eram Sensação, Art Popular e Katinguelê.
PAS: Molejo e Raça Negra?…
RS: Gostava. Mas eu era novo, o Raça Negra agradava os mais adultos. Mas é muito louco, o Raça Negra tá com um hype fodido, e o Molejo também. O Molejo é mais legal, é a mesma visão, você vê na TV, os caras engraçadinhos, roupa colorida, e os caras tocam pra caralho. O Anderson Leonardo toca percussão. É igual o Exaltasamba, o Exalta pra mim nos anos 1990 nem era o meu preferido. Foram eles que deram uma oxigenada no samba durante um tempo. Meio que não tinha nada de pagode fazendo sucesso, e os caras vieram, porque o Péricles canta bem, porque a banda é boa, porque quem sabe fazer música tá na ativa.
(A reportagem resultante dessa entrevista foi publicada originalmente na revista CartaCapital.)