Encontrados na tradução

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“A gente fala a língua da natureza do mato. Foi sabiá que ensinou pra gente.” O sabiá canta na voz de Morzaniel Iramari Yanomami quando ele explica seu jeito quebrado de falar, que traz uma sonoridade nova aos ouvidos da plateia do Centro Educacional Unificado (CEU) Pera Marmelo, situado no Jardim Santa Lucrécia, no distrito do Jaraguá, extremo norte da capital do estado de São Paulo.

O indígena Yanomami da terra Watorik Teri/Demini, localizada no município de Barcelos, no Amazonas (divisa com Roraima), está presente no auditório em carne, osso e canto ensinado pela sabiá, para falar sobre seu filme Urihi Haromatipê – Curadores da Terra-Floresta. Nós, que só sabemos falar o português nativo do Brasil, sentimos uma estranheza assoviar no ar ao vento da programação da Aldeia SP – Bienal de Cinema Indígena, em cartaz na capital dos bandeirantes caçadores de índios de 7 a 12 de outubro de 2016. O ruído do vento se repete na rota do Circuito Spcine, seja nos CEUs de norte, sul, leste e oeste, seja no ponto de cultura nuclear do Centro Cultural São Paulo (CCSP), onde zune na íntegra a programação de 53 filmes imaginados e concretizados por indígenas de diversas etnias, digamos, brasileiras.

Apesar de primavera, está frio no pico do Jaraguá, e o vento deixa no fundo da língua um gosto acre de estranhura. Às vezes é difícil decifrar o que diz Morzaniel, que também parece, ele próprio, mal entender quando falamos o danado português. Algo está perdido nas traduções. O “Morza”, como o chama amorosamente o pessoal não-indígena da Aldeia SP, articula as frases de maneira peculiar, come as palavrinhas menores que costumam intercalar as maiores, “a gente fala língua natureza do mato”. Para o espectador de criação eurocêntrica, estadunidocêntrica, é preciso blindar a tentação branca de menosprezar e recusar a gigantesca cultura do outro, do estranho, do diferente.

Mas, como de hábito, é muito mais suculenta do que parece a história que se esconde por baixo das camadas e camadas de medo. Mesmo tímido diante da plateia (aparentemente) não-indígena, Morzaniel solta a voz nas estradas, já não pode parar:

Morzaniel Iramari Yanomami
Morzaniel Iramari Yanomami – fotos Caio Palazzo/Aldeia SP

“Eu não falava português. Era mato, lá dentro, lá do mato mesmo. Aonde eu moro não existe pescadores, garimpeiro, nunca eu via na minha vida garimpo. Meu pai e minha mãe, eles morava perto fronteira Wenezuela. Aí depois eles vieram pro Amazonas, por causa do (líder amazônico YanomamiDavi Kopenawa. 1998 chegou a escola, Davi conseguiu escola. Não sei que ele conseguiu Europa, Noruega. Eu não pensava eu ia falar português, porque os Yanomami falava não precisa falar português. Se você falar português, só inventa tudo que você falava. Aí depois eu comecei sair pa cidade, comecei estudar. Aí pessoa gostaram, foi primeiro que aprendi pa escrever a língua materna. Eu comecei viajar po Noruega, eu não falava nem o português, nem eu não sabia como eu podia falar. Só minha língua eu falava. Outro antropólogo traduzia comigo, pa mim”.

O discurso límpido vai desanuviando a fala quebrada que no começo confundia neurônios brancocêntricos emburrados. Morzaniel aprendeu a falar a língua bandeirante colonizadora já adulto, há 15 anos. Português é língua de viagem, estrangeira, às vezes nem isso: “Quando eu tô lá minha aldeia não fala português, eu fala minha língua. Mesmo Boa Vista, eu tô morando, eu não fala muito assim como se português. Eu fala português quando faço palestra e faculdade, alunos. Eu falo. Porque eu não interessava muito aprender falar português. Eu interessava muito em ancestrais o que ele falava. Meu irmão, ele aprendeu rapidinho português, ele fala bacana como fala. Entende bem, brinca como os brancos brinca. Não sei por que ele aprendeu rápido. Eu primeiro não aprendi muito português. Até hoje eu não fala bem assim. Meu irmão aprendeu português porque o castelhano, eu levei ele po Wenezuela, lá que ele começava entender o castelhano falando, pessoa espanhol. Tem uns Yanomami estudando faculdade, eles não fala bem português. Mas assim mesmo eles escreve, ouve, escreve, entende”.

Desde nunca a plateia do Pera Marmelo estivera perto de lotada na noite de segunda-feira, pré-feriado da padroeira católica do Brasil, e não são só as palavras que nos acovardam – a falta de termos legíveis no ritual de cura Yanomami deve colaborar para que muitos adolescentes deixem ao meio a exibição do filme de Morzaniel. Uma jovem da plateia salva os paulistanos da norte e os paulistanos em geral da vergonha passada diante do visitante Yanomami e da realizadora indígena Guarani Mbyá Jerá Guarani, também paulistana, também presente na tela e no debate.

Diz assim, sob aplausos crocantes, a jovem espectadora que veio à Pera Marmelo na noite fria da segunda-feira: “Quero em nome da juventude pedir desculpas pela falta de postura das pessoas que aqui estiveram e não conseguiram sequer respeitar quem estava interessado em assistir ao filme. Apesar do CEU ser um espaço que promove esse tipo de evento, muitas vezes a nossa juventude está muito distante de toda a preciosidade que é trazer um cinema como o de vocês para cá. Apesar de o Jaraguá ser Guarani, o nosso pessoal é muito distante disso tudo. O máximo que a gente faz é passar pela aldeia de ônibus e ignorar completamente o quanto aquele povo resiste“.

Sim, há uma aldeia Guarani – a Tekoa Pyau – dentro da maior cidade do Brasil. Aliás, há duas, no mínimo, talvez mais. Outra é a Tenondé Porã, localizada no extremo oposto, no distrito sulista de Parelheiros, onde nasceu Jerá Guarani, produtora do filme coletivo Xondaro Ha’Egui Bondaria Jeroky – A Dança dos Xondaros e Xondarias.

Com sua história pessoal, Jerá ensinará, a nós que aqui estamos, que o modo estranhudo de Morzaniel falar é antes de tudo um signo de resistência, permanência, bravura, perseverança.

Ponte São Paulo-Bahia: Jerá Guarani e Sirleia Kiriri
Ponte São Paulo-Bahia: Jerá Guarani e Sirleia Kiriri

“Meu povo é muito guerreiro, existe e resiste nesta grande cidade de São Paulo. Na aldeia Tenondé Porã, assim como na aldeia do Jaraguá, a gente tá muito espremida pela cultura jurua, pela política jurua”, diz Jerá, explicando que “juruas” (pronuncia-se algo como diwá) somos nós, os mal apelidados brancos, os não-índios. “Muitas vezes a gente tem que escutar os jurua falar pra gente: ‘Que esses índios estão fazendo aqui que não vão pro mato?’ Como diz meu pai (ri), ‘ficam aqui estrovando’.  E aí a gente fala pro jurua que não foi a gente que chegou até vocês. São vocês que chegaram até nós há mais de 500 anos. Mesmo com todas essas influências, tem pessoas Guarani que, apesar de ter sido um dos primeiros povos a ter contato com o povo jurua, não sabem falar português. E são justamente essas pessoas que me motivam nesta caminhada, neste trabalho de fortalecimento cultural do meu povo Guarani”.

Jerá retransmite uma ideia recorrente entre indígenas presentes no festival da aldeia de concreto, em geral mais apegados às tradições orais e audiovisuais (ao cinema) que às tradições escritas e lidas (à literatura). Os indivíduos mais velhos, dizem, são os livros das florestas sem livros de papel. “Eu sempre falo pros mais velhos que aprender a ler e escrever é muito fácil, difícil é saber todas as coisas que eles sabem e que têm uma beleza inexplicável, que não tem como explicar com palavras“, narra Jerá, que também é professora nesta Grande São Paulo de Anhangabaú, Sumaré, Pacaembu, Sapopemba e Jaraguá.

“Eu falo um pouquinho melhor português porque fui pra escola de jurua com 11 anos. Mas até 11 anos eu não sabia falar nem meu apelido em português, que é Giselda. Na nossa língua não tem som de S, de L, de F. Falar Giselda era muito difícil (ri). Aí minha mãe encasquetou que eu tinha que ir pra escola com minha irmã, e fui, e no meu contato com a educação escolar, com a cultura jurua, uma professora maravilhosa foi Maria Inês Machado, uma ótima pedagoga, uma ótima pessoa, que foi atrás de mim na escola quando eu desisti por três vezes. Eu não entendia nada que ela queria me falar, mas eu entendia o carinho que ela tinha, de fazer cafuné em mim, me abraçar e me beijar. Então desde os 11 anos eu tenho contato com a língua jurua, e, por uma necessidade na época de estudo de magistério e pedagogia, a gente tinha que ler bastante, e o que a gente lia eram textos em jurua. No meu trabalho tenho que falar da minha cultura, ir pras reuniões, defender nossos direitos constitucionais que o próprio jurua inventou, mas não respeita de verdade”.

Morzaniel do extremo norte, Jerá do canto sudeste, ambos aparentemente tímidos diante dos juruas, vêm se encontrar na Pera Marmelo, embevecidos com suas próprias falas quebradas e se chamando de parentes (como é tradição entre indígenas de diferentes etnias). “Eu, Jerá, acho muito bonito quando vejo meus parentes de outros povos, e mesmo os Guarani também, quando fala quebrado, quando não fala português completamente, organizadinho, bonitinho. Significa que a gente se mantém muito indígena na nossa essência. Quando vejo os Guarani falando quebradinho eu fico muito feliz, é sinal que a gente de fato ainda se mantém”.

A noite nevoenta parece muito mais bonita quando saímos do bairro com nome de jardim de santa católica, embalados pelo canto de sabiá de Morzaniel e pelos livros sem papel de Jerá (“eu tenho que comer muito kumandá, que é feijão, pra chegar na sabedoria dos mais velhos”). Mas algo parece que permanece perdido nas traduções em vaivém entre as línguas originárias ameríndias de cabelos negros como as noites que não têm luar e as línguas portuguesas branquelas eurofalocêntricas.

Plateia estudantil da Aldeia SP, num dos CEUs que compõem o Circuito Spcine
Plateia estudantil da Aldeia SP, num dos CEUs que compõem o Circuito Spcine

Se os CEUs, em “semana de saco cheio”, oscilam entre quase vazios e quase cheios, no CCSP à vizinhança do espigão da avenida Paulista a Aldeia ganha contornos surpreendentes. As sessões estão quase sempre superlotadas, gente de todas as etnias sobrando do lado de fora da sala de exibição. Ao final das projeções, os encontros entre espectadores e realizadoras, entre realizadores e espectadoras reproduzem e amplificam a eletricidade dos choques culturais, linguísticos, étnicos, de gênero etc.

Outro realizador indígena, de etnia Pankararu, nasceu como Jerá na cidade multiétnica de São Paulo e tem um jeitão que de imediato lembra mais um rapper afroamericano que o ameríndio pernambucano que ele também é. Alexandre Pankararu editou o femininíssimo documentário Voz das Mulheres Indígenas (de Cristiane Pankararu e Glicéria Tupinambá) e dirigiu Terra Nua em dupla com sua esposa, Graciela Guarani, realizadora indígena Guarani Kaiowá nascida no Mato Grosso do Sul. O casamento trans-etnias começou em Belém do Pará, onde ambos se conheceram durante um Fórum de Mídia Livre. E a filha do casal, de 5 anos, no futuro escolherá ser identificada como Pankararu ou Guarani Kaiowá? “Ah, é um conflito, né?”, ri Alexandre.

Ailton Krenak lidera os parentes na abertura da Aldeia SP, no CCSP
Ailton Krenak lidera os parentes na abertura da Aldeia SP, no CCSP

Apenas durante esta segunda edição da Aldeia SP ele vem a conhecer pessoalmente o idealizador do festival, Ailton Krenak, líder indígena da etnia Krenak do vale do Rio Doce que virou as Minas Gerais que viraram a lama da Samarco. Mas Alexandre conta que deve a Ailton parte maciça de sua identidade indígena:

“Em 1999, (o cineasta franco-brasileiro) Vincent Carelli e Ailton Krenak fizeram a série chamada Índios no Brasil. Eu morava aqui em São Paulo e essa série me aproximou lá de Pernambuco, porque apareceram os rituais da gente, tia Quitéria, tio Agenor, meus primos. Isso me aproximou dum jeito que falei, não, tenho que trabalhar cinema, aproximar o povo Pankararu que tá espalhado no mundo”.

A descoberta motivou Alexandre, depois de 28 anos vivendo em São Paulo, a fazer o caminho migratório inverso ao que sua mãe fizera. “Depois que assisti Índios no Brasil vi que aqui não dava pra mim, fui embora pra lá”. TransPankararu é o nome bem-humorado que ele e os parentes dão à ponte terrestre que une Pernambuco e o bairro de Real Parque, no distrito (ex-)indígena do Morumbi, a partir de onde se esparramam por São Paulo os Pankararu, entre outros muitos nativos e não-nativos.

Alexandre Pankararu
Alexandre Pankararu

Alexandre fala paulistês como qualquer um de nós que aqui moramos às margens dos rios mortos (ou melhor, assassinados) Tietê, Pinheiros e Tamanduateí. É outra a questão dele com as línguas originárias. “A língua Pankararu é única e foi extinta há muito tempo, então é difícil você se resgatar. O que fizeram no meu povo é o que tão fazendo com os Guarani Kaiowá de Jaguapiru (Dourados, MS). Lá introduziram os Nhandeva e os Terena, pra ter fusão e conflitos, só que se ferraram: tinha 5 mil índios e agora são 15 mil. Com a gente deu certo, com eles não. Fizeram essa junção com a gente também. Pra gente se comunicar com os outros parentes que tavam com a gente, os Fulni-ô (de Águas Belas, PE), tivemos que falar o português, a língua comum”.

À parte a série sobre os índios do Brasil, Alexandre atribui à mãe a conservação da identidade Pankararu. “Isso eu devo à minha mãe. É uma pessoa fantástica, eu não sei como ela fez. O que ela fez comigo ela fez com os netos dela também. Minha mãe conseguiu criar nós neste mundo, nesta loucura que é, sem perder os nossos costumes. A maneira como minha mãe conseguiu manter nós aqui nesta cidade, com todas as questões midiáticas e europeias de São Paulo, é porque ela é uma grande contadora de histórias, a maior contadora de histórias que eu já vi na vida.”

Egressos das florestas do Acre, Nilson Tuwe Huni Kuin e Txana Isku Nawa são representantes do povo Huni Kuin na Aldeia SP. Isku fala quebrado, a ponto de cunhar a apaixonante expressão “indioma”, capaz de dizer quase tudo aquilo que jamais conseguiremos traduzir. Tuwe, por sua vez, doma e domina o português, viajante que é da terra do pau brasil e também de locais díspares e distantes como Itália, Áustria, Alemanha, Espanha, Guatemala, Peru, Estados Unidos.

Nilson Tuwe Huni Kuin fala à mídia no CCSP
Nilson Tuwe Huni Kuin fala à mídia no CCSP

“Eu sou da terra indígena Kaxinawá do rio Humaitá, aldeia São Vicente, a três dias de barco do município da Tarauacá. Vivemos cinco momentos diferentes, no tempo da maloca, da correria, do cativeiro, do direito e hoje estamos vivendo um momento de transformação, da interculturalidade, do empoderamento, da autonomia e de se auto-representar por nós mesmos, É o momento da transformação, da oportunidade de estar aqui”, Tuwe define o aqui-e-agora que condensa tempos passados e futuros. “O meu pai é uma liderança tradicional espiritual do meu povo, ele foi uma das primeiras pessoas que começaram a lutar pela demarcação da nossa terra, pelos nossos direitos, pelo nosso empoderamento, pra gente se organizar através de associação. O nome dele em português é Vicente Saboia, e na tradição é Nawa Ibã.”

Tuwe é realizador da perturbadora obra-em-progresso Nós e os Brabos. “É o documentário que tô fazendo sobre os parente conhecido como índio brabo, que até é uma palavra muito preconceituosa. Ninguém é bravo. Mas é como é conhecido o índio arredio, sem contato. Os isolado são o único povo que ainda vive livre neste planeta. Por incrível que pareça, mas é uma realidade. Eles não querem contato, a gente respeita isso também, até porque o meu povo viveu nesse momento do isolamento, há muito tempo. Depois que fizemos contato, muitas coisas foram boa, mas muitas coisas foram ruim também”, explica.

A questão linguística e os temas de identidade se interpenetram em Nilson Tuwe, que parece buscar o passado de seu próprio povo quando estuda a vida da etnia vizinha isolada em Nós e os Brabos: “Meu pai chegou a vivenciar o isolamento do avô dele. Ele conta que o avô era bem tradicional, não sabia falar o português. Meu pai também não sabia, aprendeu de um tempo pra cá. Eu já aprendi com meus pais, porque ele decidiu que ia ensinar o português pra gente também. Naquele tempo era tudo muito difícil, ninguém sabia falar o português. A gente tem o português como uma ferramenta de trabalho, uma ferramenta de comunicação com as pessoas. Aprendi o português, falo o português e a minha língua, o hãtxa kuin”. Além das duas, fala também os “indiomas” tecnológicos do cinema e do audiovisual, compreensíveis para nós e para os brabos, para ameríndios e (será?) para eurocêntricos.

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Tuwe expande os significados do cinema feito por ele e por parentes de todos os brasis: “É diferente vir um cara lá de Hollywood ir pra aldeia, pra floresta, e fazer um documentário lá, e um txai da floresta mesmo fazer, com seu olhar. É importante a gente mostrar do nosso jeito“.

Do Rio Grande do Sul e falando quebradinho, está aqui na aldeia de pedra a Guarani Mbya Patricia Ferreira Keretxu, moradora da aldeia Koenju, em São Miguel das Missões, a região missioneira onde jesuítas e bandeirantes europeus brigaram para ver quem amassaria mais os costumes dos povos originários do sul do hoje Brasil. Ela pertence ao Coletivo Guarani Mbya de Cinema, responsável pelo poético No Caminho com Mario, que acompanha o dia a dia de um garoto vendedor de artesanatos Guarani junto ao sítio turístico-arqueológico da redução jesuítica de São Miguel, na zona missioneira mítica por onde já vagaram Sepé Tiaraju Getulio Vargas.

“A gente recebe cada pergunta quando está ali nas ruínas, ‘vocês são de onde?’, ‘vieram de onde?’, ‘falam o quê?’. Essas perguntas nos machucam. É muito triste, sabendo e pensando que todo o Brasil era nosso, mas a gente tem pouco, muito pouco espaço pra gente”, diz Patricia, antes de chamar à fala o jovem Ariel Kuaraê, também integrante do coletivo e seu filho. Dele partirá discurso dos mais contundentes sobre a curva onde se encontram brasileiros de quaisquer etnias:

Patricia Ferreira ouve a voz de Ariel Kuaraê, levado ao palco por sugestão de Ailton Krenak
Patricia Ferreira Keretxu ouve a voz de Ariel Kuaraê, levado ao palco por sugestão de Ailton Krenak

“A sociedade não-indígena tem que tentar respeitar e entender os povos indígenas. O indígena sempre somente é valorizado nos momentos importantes. Quando vai ter evento mundial você fala dos povos indígenas, pra que os estrangeiros vejam que os brasileiros valorizam os povos indígenas, o que não é a realidade. Quando é pra realmente falar de leis e respeito aos povos indígenas, aí ninguém reconhece que existe indígena no Brasil. Por exemplo, a maioria dos brasileiros não sabe da existência dos povos indígenas do Sul. Sempre indígenas estão na Amazônia ou no Xingu, é esse o indígena que todo mundo gosta de ver, o indígena ideal, romântico. Para os brasileiros é difícil aceitar os indígenas que perderam todas as terras, que estão vivendo na periferia, que têm 200 hectares. Hoje em dia precisamos de dinheiro, vender artesanato, comprar celulares, nos comunicar, ter Facebook. Mas esse índio os brasileiros não gostam de ver, porque, ‘ah, deixou de ser índio’. Os padres, os europeus vieram, nos reduziram, nos colocaram num lugar. Existimos aqui porque existiram os nossos ancestrais guerreiros que não aceitaram catequese, o deus estrangeiro. Por isso existem os Guarani até hoje, porque não fomos cristianizados, porque fomos infiéis, como os padres falavam”.

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Sob aplausos multiétnicos, Ariel traduz, para o português que não é a nossa língua original, o que andava perdido nos escaninhos das memórias seletivas: “Infelizmente, todo governo ainda vem com esse pensamento dos primeiros europeus que chegaram aqui. Sempre querem que o indígena seja do modo que eles querem. O indígena tem que se comportar, não pode reclamar os seus direitos. O trabalho dos realizadores indígenas é muito importante por isso, porque leva uma mensagem importante. O brasileiro não sabe quase nada do Brasil. Brasileiro tem interesse em saber mais de Estados Unidos, Europa, e não quer reconhecer que os indígenas existem no Brasil. Esse é o problema da maioria dos brasileiros. Infelizmente não aceitaram ainda.”

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Ariel fala deles, os brasileiros, como um outro povo, um povo que não é o nosso povo, que não somos nós. É outra noção recorrente entre as realizadoras e os realizadores indígenas. Também fala dos brasileiros em terceira pessoa o Guarani Carlos Papá, paulista quase-praieiro da aldeia Ribeirão Silveira, em Bertioga, e protagonista do filme coletivo Ka’a’i – O Ritual da Erva Mate.

“O brasileiro não sabe usar o tabaco”, afirma Papá, filosofando em frases quebradinhas, peculiares, perturbadoras, poéticas. “O tabaco foi feito somente pra ser baforado, não tragado. Vejo por aí as pessoas se acabam tragando lá dentro. Vai lá no pulmão mesmo, e aí, durante dez anos mesmo vai encontrar algo estranho no corpo. Mas o tabaco é algo sagrado, você para um pouco e dá uma pitada. Não fumar, tragar. É uma pitada. O fumo tem que ser forte. Agora, cigarro, eu não sei, é algo diferente, é um cheiro horrorível. Não sei qual que é o prazer de brasileiro em fumar o cigarro. Não sei o que que é isso. Para nós é algo espiritual, sabedoria.”

Carlos Papá vai a Bristol com Larissa Duarte Tukano, do Amazonas
Carlos Papá vai a Bristol com Larissa Duarte Tukano, do Amazonas

Trechos não traduzidos do ritual conduzido por Papá causam espécie à plateia do filme sobre a mui paranaense-paraguaya-gaúcha-argentina-uruguaya-etc. erva mate. Querem saber o que significam as frases que não foram aportuguesadas na tradução. “Se eu tentar traduzir, fazer a legenda, talvez eu posso mentir ou até mesmo inventar. Quero ser mais sincero possível com a expressão”, Carlos tenta se desviar dos pingos da chuva. Depois tateia, poeticamente, uma possível tradução: “Quando o sol brilha no leito da Terra, brilha para todos seres vivos caminhar. Esse brilho que seja eterno pra quem sabe cultivar a importância do passo, o som do passo”.

E usa só sinceridade, ao desistir da tradução: “Fica estranho pra vocês se eu falar ao pé da letra. Pra nós não tem fala, existe expressão amor, orep. É complicado a gente traduzir tudo ao pé da letra. Às vezes a gente tá mentindo, muitas coisas a gente mente. É muito complicado ser fiel à nossa língua“.

O ar já está denso como pó de Yakoana quando da plateia o Guarani Nhandeva sul-matogrossense Alberto Álvares, pede a palavra. Diretor de Tekowe Nhepyrun – A Origem da Alma e de Kara’i Ha’egui Kunha Karai Ete – Os Verdadeiros Líderes Espirituais, ele se põe a conversar com Carlos Papá em idioma Guarani. O ar rarefeito se contrai até quase explodir.

Carlos não se preocupa em nos explicar o que disse Alberto. Carlos e Alberto simplesmente conversaram em sua língua-mãe, em nossa língua-mãe. Por poucos minutos, nós que aqui assistimos filmes feitos por nossos parentes nos sentimos como estrangeiros em nossa própria terra, em nossa própria casa, em nossa própria tela-espelho de cinema. Nos sentimos como se sentem há mais de cinco séculos elas e eles, os que são brasileiros e brasileiras antes de o Brasil se chamar Brasil. Na ausência de tradução, está reencontrada a tradução de que sentíamos falta desde quando o cinema ainda não havia sido inventado e os únicos filmes que existiam e não saíam nunca de cartaz eram a nossa vida humana nas florestas.

Tuwe vê cinema no CEU Meninos
Tuwe vê cinema no CEU Meninos
A nova geração vê cultura indígena no CCSP
A nova geração vê cultura indígena no CCSP

(Este texto integra a cobertura da Aldeia SP, em parceria de FAROFAFÁ com a Bienal de Cinema Indígena.)

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