Acho que nunca fiquei tão feia na vida como no dia em que decidi me vestir de drag king para ir numa festa a caráter, com a Vange e a Cilmara, em São Paulo, lá pelos idos de 2008. Vocês imaginem, gosto (muito) de fantasia e de dress code. Eu gosto de codes. Porque muito pequena entendi intuitivamente (e com a ajuda de uma mãe nascida dentro de um filme de Almodóvar) que boa parte da vida se resume a isso: fantasia e dress code. Atenção, menina: muito respeito e muito amor pela fantasia e pelo dress code, quando ele denota escolha e diversidade.
Então, quando veio o convite das minas para ir nessa parada drag king, não pensei duas vezes: sequestrei umas roupas velhas do meu cunhado e me joguei no bar, afobadíssima. Em alguma parte, estava também muito curiosa de entender que tipo de homem eu poderia ser. Fiquei, literalmente, a mais perfeita tradução do bofe de rodoviária que baba na camisa azul depois de perder o último comercial para Itu.
Decepcionada com essa pressa que me faz derrapar no bermudão cáqui e abotoar errado a camisa xadrez, não cabendo onde eu deveria caber, vi duas deusas do estilo me acenando divertidas do balcão. Era mais ou menos como se o tio-do-celular-na-cintura encontrasse os astros de Velozes e Furiosos. Mas nada que pudesse abalar minimamente a imensa e poderosa alegria que eu sempre senti de passar uma noite com essas duas, uma espécie de alegria saltitante do tipo que me faz falar rápido e ter vontade de abraçar as pessoas.
Nossa amizade nasceu aos poucos, em algum lugar entre 2003 e 2004. Começou no grupo de amigas gays (tão queridas!) que eu frequentava na época (e que, oxalá beleza, frequento ainda, mesmo virtualmente) como boa lesbiquinha cult (haha), numa São Paulo já urbana e moderna, mas ainda tão carente de encontros como esse. E de lugares para encontros como esse. Eu olhava de canto de olho para essas duas, Cilmara e Vange, Vange e Cilmara, numa época em que era um luxo e uma alegria pra gente poder encontrar a cantora bonita que escrevia tão bem sobre nossos encontros – e desencontros. Sempre me senti meio caipira nesse tipo de situação. Porque as outras minas já estavam ligadas em todos os “codes” mundiais, tinham um pioneiríssimo blog supermaneiro de – pasme! – humor lésbico, e eu – dispersa e misturada – tinha dificuldade de me apropriar daquilo tudo e oferecer uma resposta coerente, mesmo sendo muito bem acolhida. Um bocado hipster demais para mim, mineira da gema.
Caipira, mas bem da safada, eu ficava fazendo performance e soltando umas ideias para ver se eu fisgava essa dupla do barulho, linda de morrer. Em algum lugar essa estratégia piolhenta deu certo, nunca pelos motivos que eu imaginava, mas sobretudo pela imensa generosidade dessas duas e pela vontade de aproximar pessoas que elas sempre tiveram. E também pela sorte inenarrável que eu tenho ao fazer amigos, como se o computador central D.E.U.S.A. 17X228 tivesse mandado uns e-mails para meus queridos que já estavam no planeta antes de eu descer, dizendo algo como “olha, ela é uma figurinha desajeitada, precisa tomar conta”. E meus amigos tomam. Excepcionalmente bem. Entre eles, Vange e Cilmara.
Mas a sereia Vange Leonel eu fisguei mesmo no dia em que, em 2004, tive a ideia feliz de fundar uma comunidade no Orkut que nos deixasse contar histórias livremente, inspiradas em mitos, reais ou inventados. Que nos deixasse ser o que quiséssemos ser. (Fantasia e dress code, tá entendendo? Laerte, tá entendendo? Vange Leonel, tá entendendo?)
Como mulher adulta que cresceu lendo as aventuras de Monteiro Lobato, eu queria recriar uma espécie de Sítio do Picapau, livre, solto, hippie, egípcio, cigano, interestelar. Então criei Mitorama. E então se estabeleceu entre Vange, eu, e várias pessoas que foram chegando, o Pedro entre elas, uma espécie de mágica.
Fundamos civilizações. Ressuscitamos anti-heróis. Aprendemos lendas amazônicas e reinventamos tragédias gregas. Mas, acima de tudo, acima de tudo, o Mitorama nos deu acesso, de uma maneira tão estranha quanto verdadeira, a uma intimidade de pé de ouvido, de pé de alma, num mundo absolutamente neófito nesta arte-provocação que é trocar impressões em público.
Quando soube do inevitável sobre a Vange, nesse horroroso 14 de julho último, eu estava sozinha no meu pequeníssimo apartamento em Paris, onde moro agora. Uma das minhas primeiras reações, depois de tentar avisar amigos comuns que, como eu, também moram fora do Brasil, foi mergulhar na imensidão do Mitorama. Era onde eu poderia ainda conversar com ela.
Quem conheceu a Vange de outras esferas não pode imaginar a imensa delicadeza e entrega dela ao escrever sobre seus medos, num tópico em que falávamos sobre isso. Como aquela pessoa reservadíssima poderia ser ao mesmo tempo tão entregue, e tão generosa? Tem uma harmonia no texto dela, em todos os textos dela, um negócio esquisito de lindo. É claramente pensado, mas é intensamente sentido. Não deborda, transborda. Irradia. Comunica. Vai lá, encosta o indicador no ombro da humanidade e dá liberdade para voar. Acho que nunca conheci ninguém mais elegante. Bastilha pura.
E o Mitorama não foi o único voo que demos juntas (e que alegria poder lembrar disso, que alegria). Ainda em 2004, inventei um outro negócio chamado “Música Afetiva N. 1”. Conversei com o dono de um bar, arrumei uma mesa de som, a Cristina (Naumovs) fez um lindo flyer e eu convidei a Vange, o Pedro, e a Fafi (minha companheira de palco na Cia Cachorra) para discotecar, mas discotecar contando, no microfone, por que aquelas músicas foram importantes pra gente.
Vange começou com Dolores Duran, você lembra, Pedro, em homenagem à mãe dela. Mãe elegantérrima, como a filha, que eu conheci numa noite gostosa na praça Roosevelt, depois de assistirmos a uma apresentação de Joana Evangelista.
(Nota do editor PAS: lembro anuviadamente, Marcia, como lembro anuviadamente que coloquei músicas sobre passarinhos presos, e sobre olhos, e sobre ver e não ver – tipo “Assum Preto”, não sei se na versão do Luiz Gonzaga ou na da Gal Costa. Fecha parênteses-intromissão.)
Essas coisas todas são todas tão importantes pra mim. Tão importantes. Gosto sim de conhecer pai, mãe, irmão, amigo, namorada dos meus amigos. Gosto de conhecer quem meus amigos amam. Talvez por isso, comecei a levar nas nossas festinhas, na casa da Vange e da Cilmara, toda namorada nova que eu conhecia. Era meio o abracadabra da Porta da Esperança do Silvio Santos misturado com o Show do Gongo. Todas sempre foram magnificamente bem recebidas na casa dessas duas, uma elegância só. E quando um cara ou outro frequentava desprevenido a minha cama, Vange me reservava a mesma generosidade e o mesmo humor de pé de ouvido, ela que nunca teve medo de animais híbridos multiformes, muito pelo contrário, ela que adorava a diversidade.
Eu poderia ficar aqui centenas de horas escrevendo sobre a maneira perspicaz que Vange teve de invadir tranquilamente minha arrogante e destrambelhada carapaça pseudo-performática e de encostar seu ombro na minha humanidade, morrendo de rir do meu susto. Sobre como ela fazia a minha sereia borbulhar de alegria e de festa e de orgulho. Sobre como eu aprendi sobre música popular brasileira (e pós-punk, e música em geral) com ela, privilegiada que sou de tê-la tido como interlocutora. De como ela me ensinou sobre hormônios, quando descobri que tinha Hashimoto. De como foi sempre bom falar política com ela. O olhar verde cintilante dela quando ria de uma boa piada. E sobre como foi bom temos rido tantas vezes juntas.
Pensei muitas vezes se deveria escrever alguma coisa sobre ela, aqui, para o FAROFAFÁ do Pedro, quando ele me convidou. Porque escrever sobre a Vange significa escrever sobre mim mesma. E os pseudo-performáticos, como eu, morremos é de medo de mostrar lá no fundo os quinhões da nossa alma. Então decidi que eu deveria escrever, escrever sim, escrever sobre como me deixa desarvorada o fato de ela ter partido tão rápido, como não consigo imaginar chegar a São Paulo e não poder aprender mais sobre tudo com ela, me impressionar com suas novas botas elegantes, admirar as novas aventuras de Vange e Cilmara, Velozes e Furiosas.
Hoje já faz quase quatro meses que a Vange pegou carona na cauda do cometa flamejante. Curiosamente, ao contrário dos meus amigos brasileiros, que andam vivendo verdadeiras aventuras de Saramandaia, este foi um período de enorme introspecção para mim, depois de um mestrado tardio conquistado ex nihilo no melhor estilo sangue suor & lagrimas, o estilo jezebel. Depois de uma longa recuperação de um tornozelo estilhaçado em pedacinhos, e duas cirurgias reconstitutivas, gesso & parafusos, o preço de ser uma sereia de Oxum da Rive Gauche, nos anos da Odisseia no Espaço.
Este ano de 2014 certamente ficará incrustado na minha pele da alma, aquela derme onde a gente deixa as impressões pousarem e criarem raízes. Hoje, 5 de novembro de 2014, Cilmara recebe, em Brasilia, das mãos da presidenta que eu ajudei a eleger, a medalha de cavaleiro da Ordem do Mérito, que homenageia finalmente Vange Leonel. A gente nunca se cansa de acreditar que, petit à petit, é possível sermos mais justos, mais solidários, mais alegres, menos burros.
Paris em novembro deveria ser mais cinza. Não está. Este início de inverno verdejante me desconcerta. Parece um pouco de Brasil neste bairro (20ème) onde nasceu Edith Piaf, sinalizando nossa desti-nação ao mundo, hoje e para sempre estrangeiros. A lembrança dela passou algumas vezes pela minha janela, feito um beija-flor do parque de Belleville, se no parque de Belleville (do lado de casa) existissem beija-flores. Nao tem beija-flor, Vange. Mas tem coelho e galinha na horta comunitária do bairro. Tem velhos senhores franceses com bengalas de cartão postal sentados nos bancos. Moças de véu vindas do Margreb islâmico. Turistas ingleses adolescentes e suas cervejas e bermudas sobre bicicletas. Essa diversidade que você gosta. De qualquer forma, plantei um abacateiro aqui na minha janela. Ele cresce impávido colosso. Venha pousar de quando em vez.
Nas vésperas de vir embora para Paris, em 2009, recebi um convite de Vange e Cilmara para tomarmos uma cerveja juntas. Fui, sem imaginar o quanto aquele encontro-despedida seria importante para mim. Despedir é importante. É como reencontrar. Precisa fazer, gente. Precisa. Despedir-se dos amigos é uma deferência com quem a gente gosta. É sinal de respeito, e de amor. Como a Cilmara disse para o Pedro, no velório de Vange, na festa da Vange: “Quem não sabe morrer não sabe viver”. Bingo.
Eu me despeço dela, então, com esse texto despretensioso, e cheio de vontade. Esperando poder polinizar (expressão do Pedro) pessoas mais jovens do que eu com a mesma fúria elegante. Esperando me tornar elegante. Vange, você vai ver só meu superdisfarce de drag king quando eu for finalmente te encontrar, você vai ver. Dress code na veia, nega. Você vai ver só. Eu te amo.
(Márcia Bechara é jornalista, escritora de Casa das Feras e Métodos Extremos de Sobrevivência, atriz etc. e tal. Sob o dress code de Jezebel, compôs e interpretou o clássico da bossa supernova “Meu Cu Vinicius”, #ProcureSaber).
Não é “drag king” e sim “drag queen”
Não, Denise, drag queen é homem vestido de mulher…
Belas memorias e justa homenagem no dia de hoje. MGM
Obrigada. Bom compartilhar lembranças da Vange.
Que coisa mais linda, verdadeira, emocionante, doída, completa. Li. Reli. Fiquei órfã de palavras.
Obrigada. Beijo, Cecília.
Chorei, copiosamente… Neste mundo cheio de sentimentos diversos, experiências únicas, as pessoas não se permitem voar. Teria o universo nos feito para sermos castrados como muitos o querem? Não acredito que viemos com tantas possibilidades dentro de nós para desempenharmos um papel monocromático. Sinto muito não tê-la conhecido e vou sentir muito não ter conhecido a dona desse texto q vai me fazer ficar com os olhos inchados pelo resto do dia.
Emoção compartilhada. Fico alegre. Beijos, Carolina.
Que lindo. =^*
Obrigada, Jean. Houve uma super musa inspiradora…
Não conhecia nada sobre Vange até este texto. Pense num arrependimento.
Arrependimento que tem cura, Pedro. Porque a danada deixou musicas e livros lindos… Beijos e obrigada pela visita.
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