Milton Nascimento terminou “Vera Cruz” (1969), a segunda canção do show Uma Travessia, produzido e exibido pelo Canal Brasil e recém-lançado em CD e DVD, para comemorar os 50 anos de carreira do mais colossal autor-intérprete masculino brasileiro vivo. O principal artífice do clube da esquina mineiro (e carioca) interrompe a música e faz um curto discurso. O objetivo é chamar nossa atenção para a existência das canções de trabalho, de que tomou conhecimento, segundo ele, por intermédio do jazz do Mississippi.
Vem “Canção do Sal” (1966), outra de suas composições inaugurais, lançada com primazia por Elis Regina. Milton conta que esse seu primeiro canto de trabalho foi inspirado por uma visita às salinas de Cabo Frio, no Rio de Janeiro. E descreve a vida e as dores do trabalhador: “Trabalhando o sal, é amor o suor que me sai/ vou viver cantando o dia tão quente que faz”, “trabalho o dia inteiro pra vida de gente levar”, “e ao chegar em casa encontrar a família a sorrir”, mas, sobretudo, “filho vir da escola/ problema maior, estudar/ que é pra não ter meu trabalho e vida de gente levar”.
O cancioneiro das “work songs” é um canteiro florido por algumas das obras mais lindas que o gênio humano tem criado, de Odetta a Bob Dylan, de Nina Simone a Sam Cooke, de Fela Kuti a Michael Jackson, de Luiz Gonzaga aos rappers paulistas. Um número assombroso dessas canções pertence à assinatura e à voz de Milton Nascimento, e não é à toa que ele dá a senha logo no começo do show comemorativo de 50 anos de trabalho: Uma Travessia pode ser ouvido e lido em sua integridade pela ótica das canções de trabalho.
É o caso de “Amor de Índio” (1978), do repertório do colega de clube da esquina Beto Guedes, que no contexto de Uma Travessia tem ressaltados os seguintes versos de tonalidades católicas: “Sim, todo amor é sagrado/ e o fruto do trabalho é mais que sagrado, meu amor/ a massa que faz o pão vale a luz do teu suor”.
“Nos Bailes da Vida” (1981) é uma “work song” à moda e ao gosto dos trabalhadores da música (“foi nos bailes da vida ou num bar em troca de pão/ que muita gente boa pôs o pé na profissão”), que poderia ser igualmente abraçada por outros ciganos (“até a estrada de terra na boleia de caminhão era assim”).
“Maria, Maria” (1978) pode ser ouvido como um canto feminino de labor (“Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor”), tanto quanto “Raça” (1976) é um tema de trabalho nítido e negro: “É um lamento, um canto mais puro/ que me ilumina a casa escura/ é minha força, é nossa energia/ que vem de longe pra nos fazer companhia/ é Clementina cantando bonito/ as aventuras de seu povo aflito/ é seu Francisco, boné e cachimbo/ me ensinando que a luta é mesmo comigo”.
Também inaugural, a cantiga de amigos “Morro Velho” (1967) se desenrola num crescendo até revelar o que verdadeiramente é. O início da cançao apresenta ym garoto negro e um garoto branco, amigos “no sertão da minha terra”, em imagem que ilustraria, cinco anos mais tarde, a capa histórica do histórico álbum coletivo Clube da Esquina. O “tempo” separa os dois meninos: o “filho do senhor” vai para a cidade grande estudar. O menino negro fica.
Quando volta, já é outro o filho do senhor: “Trouxe até sinhá mocinha pra apresentar”, “já tem nome de doutor e agora na fazenda é quem vai mandar”. Só o último verso deixa entender que estamos numa “work song” sob o ponto de vista do (ex-)menino que ficou: “Seu velho camarada já não brinca. Trabalha”.
Em Uma Travessia, a dor em carne viva de “Morro Velho” sucede uma composição posterior, “Promessas do Sol” (1976), canto de trabalho vazado de mágoa e raiva: “Você me quer forte e eu não sou forte mais/ sou o fim da raça, o velho, o que já foi/ chamo pela lua de prata pra me salvar/ rezo pelos deuses da mata pra me matar”, “você me quer belo/ e eu não sou belo mais/ me levaram tudo que um homem precisa ter/ me cortaram o corpo a faca sem terminar/ me deixando vivo, sem sangue, apodrecer”.
Parceria de Milton com o rapaz branco Fernando Brant, “Promessa do Sol” é tão menos popular que “Maria, Maria” ou “Nos Bailes da Vida” quanto é mais crua e lancinante que elas. Não é dificil ver que fala de racismo, de escravagismo, da persistência da escravatura. As canções de trabalho são, em grande medida, gritos soltos no ar contra o aprisionamento e a escravidão, como sabem e souberam mulheres e homens negros como Odetta, Nina Simone, Sam Cooke, Michael Jackson, Fela Kuti, Luiz Gonzaga…
Da mesma família é “Lágrima do Sul” (1985), assim definida por Milton na gravação do show Barca dos Amantes, em 1986: “A gente fez em homenagem a Winnie Mandela, contra todas aquelas atrocidades e barbaridades da África do Sul, contra o racismo lá e em todos os lugares, inclusive aqui – qualquer espécie de racismo”. Assim canta o menino negro Nascimento, falando da mulher negra Winnie e, provavelmente, de si próprio: “Reviver tudo o que sofreu/ porto de desesperança e lágrima, dor de solidão/ reza pra teus orixás, guarda o toque do tambor/ pra saudar tua beleza na volta da razão/ pele negra, quente e meiga, teu corpo e o suor/ para a dança da alegria e mil asas pra voar que haverão de vir um dia/ e que chegue já, não demore, não,/ hora de humanidade, de acordar”.
Opositor quente do racismo – de “qualquer espécie de racismo” -, Milton canta a mãe África, os índios, os ciganos, as mulheres (o violão cigano e o cantarolar errante de “Lília“, gravada em homenagem à mãe em 1972, formam um dos momentos mais sublimes do DVD), o trabalho, o descanso.
O clube da esquina é uma entre tantas diásporas. Antigos parceiros de clube da esquina, Lô Borges (foto à esq.) e Wagner Tiso voltam a estar com ele em Uma Travessia. Ex-meninos-senhores como Brant e Ronaldo Bastos comparecem nas canções históricas, enquanto ocupam cargos de mando no sistema Ecad. O príncipe-pássaro negro paira sobre eles e sobre nós, trazendo tudo de belo que o canto masculino brasileiro pode conter.
Passem-se 50 ou 100 ou 1.000 anos, o canto de Milton Nascimento é profundo como a ferida que ele encerra. E fala sempre do presente, nunca do passado. As canções de trabalho, além de tudo, carregam o sal atemporal da lágrima humana.
(P.S.: Acompanhe aqui um guia e uma compilação de canções brasileiras de trabalho.)
Mano, o seu artigo é muito massa! Mas, só uma parada: não acho q seja tão óbvio que “Promessas do Sol” fale sobre racismo. Na minha opinião ela fala sobre os índios americanos (brasileiros, espanhóis e os lá do norte também) que se fuderam tanto. O Milton tem uma relação muito forte com a música regional latina, e você pega o ritmo da música tem um quê de “tribo indígena”. Aliás, os bolivianos que tocam nas ruas do centro de São Paulo me fazem lembrar dessa música. Mas, é só uma besteira. Parabéns pelo texto!
Lindo texto,dá vontade de ficar lendo até o final dos tempos.
<3
Alô Caio Vinícius, acho que você está certo quanto a levada de Promessas de Sol, que foi regravada pelo grupo Tarancón numa versão que eu considero tão boa quanto a original, com instrumentos andinos como charango e samponha (sei lá como escreve o nome disso, rs). Pedro Sanches, lindo texto, meus parabéns.
Poxa, não conhecia essa versão. Muito bonita mesmo. Mas, a potência da voz do Milton no final da música dá um tom trágico sem igual.
Obrigado, Guilherme! Não conheço essa versão do Tarancón, vou procurar!
De fato, quando “Promessas de Sol” foi gravada Milton tinha um contato muitoestreito com a música andina-latino-americana – no mesmo disco, tem “Volver a los 17”, com Mercedes Sosa. Mas é tudo sobre/contra discriminação/exploração em qualquer lugar.