“Nessas tardes molhadas de agosto/ sinto a chuva lavando minha alma/ sinto o frio entrando pelos ossos/ como uma coisa, um troço, não sei explicar”, cantava Alceu Valença em “Lava Mágoas” (1982), uma das raras parcerias pernambucanas entre ele e Dominguinhos. Não houve agosto de 2013 para o parceiro ocasional de Alceu, que morreu em 23 de julho, aos 72 anos, após longa agonia hospitalar.
O obituário do sanfoneiro destacou, com justiça, a centralidade do também pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989) em sua história. O padrinho o conheceu quando Dominguinhos tocava nas ruas com os irmãos, ainda menino. Deu-lhe apelido artístico (até então ele era Neném do Acordeon) e promoveu o fértil encontro musical (e amoroso) entre o pupilo e a conterrânea Anastácia, que renderia clássicos do cancioneiro nordestino e nacional como “Só Quero um Xodó” (1973), “Lamento Sertanejo” (1973) e “Tenho Sede” (1975).
São exatamente essas três canções que fazem a ponte entre o Dominguinhos-discípulo (de Gonzagão) e o Dominguinhos-professor (de toda uma linhagem emepebista que se desenrolaria décadas afora). O jovem aprendiz lançava discos instrumentais próprios desde 1968, com repercussão limitada e circulação menos brasileira que regional.
Dominguinhos despontou para o mundo do disco num selo local, Cantagalo, e em meio a uma grande seca na canção popular: a bossa nova expulsara para bem longe a sanfona (instrumento original de bossa-novistas como o acreano João Donato) e fez o próprio Gonzagão amargar uma década de ostracismo polvilhada por muitas tentativas de se fazer notar.
O jovem sanfoneiro se apresentava como integrante da banda do pai veterano da invenção no show Luiz Gonzaga Volta pra Curtir (1972) quando Gilberto Gil e Caetano Veloso voltaram do exílio londrino em que haviam vivido desde 1969. O vínculo entre o velho pernambucano e os novos baianos se estreitou ainda no período de desterro – Caetano gravou em 1971, em Londres, sua versão transtornada para o tema de migração (e exílio) “Asa Branca” (1947). Num disco de bolso do tabloide O Pasquim, dividido com o estreante cearense Fagner, Caetano releu “A Volta da Asa Branca”, contando via Gonzagão o que acontecia com os rebeldes emepebistas que voltavam para casa.
Na faixa “You Don’t Know Me”, do disco bilíngue e binacional Transa (1972), Caetano misturava Beatles com afro-samba e citava “A Hora do Adeus”, gravada por Gonzagão em 1967: “Eu agradeço ao povo brasileiro/ norte, centro, sul, inteiro/ onde reinou o baião”. A letra inteira de “A Hora do Adeus” era bem mais pessimista do que aquele trecho deixava ver: “Se eu mereci minha coroa de rei, esta sempre eu honrei/ foi a minha obrigação/ minha sanfona, minha voz, o meu baião/ este meu chapéu de couro e também o meu gibão/ vou juntar tudo, dar de presente ao museu, é a hora do adeus/ de Luiz, rei do baião”.
A aposentadoria precoce não aconteceu. O show Luiz Gonzaga Volta pra Curtir manteve a chama acesa e acalentada pelo entusiasmo incondicional dos baianos recém-retornados. Da banda de Gonzagão, a porta-voz tropicalista Gal Costa pescou Dominguinhos para seu disco e show Índia (1973), cujo diretor musical e violonista se chamava Gilberto Gil. A sanfona domingueira povoa canções lancinantes como “Índia” (regravação de um tema sertanejo lançado em 1952 pela dupla caipira paulista Cascatinha & Inhana), “Presente Cotidiano” (do carioca Luiz Melodia), a pós-tropicalista “Relance” (de Caetano) e “Passarinho” (do baiano Tuzé de Abreu). “Cantar como um passarinho/ de manhã cedinho/ lá na galha do arvoredo/ na beira do rio/ bate as asas, passarinho/ que eu quero voar”, cantava essa última, revigorando uma tradição agreste de asas brancas, acauãs, sabiás e assuns pretos.
Gil não publicou LP novo naquele 1973, mas lançou um único compacto com duas músicas: um tema de futebol (“Meio de Campo”) no lado A e um forrozinho (“Só Quero um Xodó”) no lado B. O lado B alçou-se aos céus para se tornar um dos maiores hinos gilbertianos da MPB. Também num compacto, Gal gravou a lindíssima e tristíssima “De Amor Eu Morrerei”, a menos conhecida das parcerias arrasa-quarteirão de Dominguinhos e Anastácia. (Ouça na janela acima e leia aqui um mostruário musical da obra e do legado de Dominguinhos.)
Em seu próximo disco de estúdio, Refazenda (1975), Gil gravaria mais uma flor nordestina da dupla Anastácia-Dominguinhos, “Tenho Sede”: “Traga-me um copo d’água, tenho sede/ e essa sede pode me matar/ minha garganta pede um pouco d’água/ e os meus olhos pedem teu olhar/ A planta pede chuva quando quer brotar/ o céu logo escurece quando vai chover/ meu coração só pede teu amor/ se não me deres, posso até morrer”.
O tropicalista também colocaria poesia na antes só instrumental “Lamento Sertanejo” (ou “Forró do Dominguinhos”): “Por ser de lá do sertão, lá do cerrado/ lá do interior do mato, da caatinga, do roçado/ (…) na certa por isso mesmo/ não gosto de cama mole, não sei comer sem torresmo/ eu quase não falo/ eu quase não sei de nada/ sou como rés desgarrada nessa multidão-boiada/ caminhando a esmo”. Alguns anos atrasado, “Lamento Sertanejo” virou uma espécia de “A Volta da Asa Branca” (ou negra) de Gil. Água e seca se alternavam no ritual pungente de lava-mágoas que Alceu cantaria anos mais tarde.
Foi graças ao holofote lançado por Gil que Dominguinhos criou asas ele mesmo e fez escola, indo aonde o mestre Gonzaga não havia chegado. Por um lado, o sanfoneiro pop restaurou na companhia dosm tropicalistas a presença da sanfona que a bossa nova roubara. Por outro, modernizou o forró gonzaguiano, tropicalizando-o de certa forma. “Abri a Porta” (1979), uma parceira Gil-Dominguinhos gravada pelo grupo A Cor do Som (que nascera no início da década dentro dos Novos Baianos), condensava a mistura, fazendo-se ouvir ao mesmo tempo como forró, tropicália, funk black Rio, samba-rock etc.
No auge do sucesso com Gil, Dominguinhos foi contratado pela multinacional Philips (e mais adiante pela RCA) e lançou uma série histórica de discos em que tocava sanfona e cantava com uma voz cortante de tão melancólica. São álbuns pouco conhecidos, mas repletos de temas plangentes como “Veja” (1976) ou quase-alegres como “O Babulina” (idem), uma homenagem forrozeira a Jorge Ben (Jor).
Quando Dominguinhos já estava hospitalizado, saiu pela Universal (herdeira do acervo Philips) uma coletânea dupla, Dominguinhos É de Todos – Uma Antologia, compreendendo gravações do artista entre 1976 e 1979 e leituras por outros cantores do catálogo da gravadora. Os mais de 20 álbuns originais lançados entre os anos 1960 e 1980 nunca foram reeditados (mas circulam com desenvoltura em downloads piratas). Exceções são Quem Me Levará Sou Eu (1980), disponível em versão virtual na filial brasileira da loja iTunes, e o menor Seu Domingos (1987), reeditado pelo selo independente carioca Discobertas.
A atenção seletiva a Dominguinhos (por parte da gravadora, minha, sua, nossa) depois de sua morte não aplaca os vários esquecimentos, e faz latejarem nos ouvidos os versos da parceria com Alceu em “Lava Mágoas”: “Lavei as mágoas nos pingos da chuva/ e aquela dúvida de te encontrar/ tô molhado como um passarinho/ perdi o ninho, já nem sei voar/ Eu tô molhado, pingando, chovendo, chovendo, pingando, pingando, tão só/ tô molhado, chovendo, doendo, doendo, sangrando, sangrando de fazer dó/ tô chuviscando, estou chovendo, estou sofrendo de fazer dó/ chuviscando, estou chovendo, estou sofrendo, tô causando dó”.
No campo musical, a caravana seguiu avançando. A pop-tropicalização da sanfona gonzaguiana, por intermédio de figuras como Dominguinhos, é o que permitiria, décadas avante, existências díspares como a do indie-emepebista paulista Marcelo Jeneci (cujo pai pernambucano montava instrumentos para o ex-Neném do Acordeon) e a do pós-sertanejo paranaense Michel Teló, cujas saborosas sanfonas pós-domingueiras correram mundo em 2011 com “Ai Se Eu Te Pego”.
Neste agosto de 2013, não temos mais Dominguinhos – mas temos Alceu, Jeneci, Teló… “Mês de agosto é mês de chuva, mês de agosto lava a alma, mês de agosto é mês de chuva/ mês de agosto lava a alma, a mágoa, a mágoa.”