A música popular brasileira vive dia histórico em Brasília: nomes como Emicida, Roberto Carlos, Gaby Amarantos e Carinhos Brown concordam que o Ecad deve ser regulado e fiscalizado.
A incerteza e a surpresa norteiam este texto, mas FAROFAFÁ se arrisca a comemorar: ao que tudo indica, a cultura brasileira vive um dia histórico que se irradia a partir do Senado, em Brasília, e trará – bons – desdobramentos para toda a sociedade brasileira.
É bela e loquaz a foto do rapper paulistano Emicida ao lado do ídolo romântico capixaba Roberto Carlos, divulgada pelo primeiro em sua conta de Twitter (@emicida). De modo provavelmente inédito, o “despolitizado” Roberto, um dos líderes isolados e quase perenes de recolhimento de direitos autorais no país, apresenta-se à luta do mesmo lado que a voz que vem das ruas e das periferias, simbolizada à perfeição no terno-e-gravata do ascendente e militante Emicida.
OK, a esta altura talvez o rapper já pertença à elite MPB, à elite brasileira. Mas é inegável que a foto retrata um deslocamento. Roberto e Emicida estão juntos no Senado, em companhia de um elenco formidável e heterogêneo, que vai de Caetano Veloso a Péricles, do sempre militante Leoni a Lenine, de Fafá de Belém a Gaby Amarantos, de Carlinhos Brown a Roberta Miranda, de Nando Reis a Erasmo Carlos.
Juntos, esses e outros nomes protagonizam neste momento passeata simbólica em prol do Projeto de Lei do Senado (PLS) 129, que institui, após décadas de vácuo, a regulação e a fiscalização externa do no Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), o órgão que monopoliza de modo sepulcral a circulação de dinheiros correspondentes aos direitos autorais brasileiros (e braZileiros).
Não só FAROFAFÁ e a mídia em geral nos encontramos desnorteados: o próprio Ecad parece ter sido pego de surpresa, no contrapé. A desorientação exala, por exemplo, de uma uma nota oficial e de uma propaganda improvisada emitidas pelo órgão centralizador-monopolizador. “O PLS 129/12 não pode ser aprovado sem debate!”, resume a pecinha de propaganda.
Ora, quem hoje pede debate é o mesmo órgão que se recusa há décadas a ser aberto, investigado, arejado, problematizado, debatido. Os autores que se colocam ao lado do Ecad no folheto que pede mais debate contam com porta-vozes como Michael Sullivan, midas arrecadador dos anos 1980 via multinacionais e trilhas sonoras de novelas da Globo, ou o ex-rebelde anti-qualquer coisa Lobão. Este último, em fase de delírios lacerdistas por minuto, se volta contra o próprio discurso de anos a fio, apoiado numa suposta ameaça “estatizante” do PLS 129.
Alguma coisa está fora da ordem, diria aquele outro compositor: Sullivan e Lobão se posicionam, de modo reativo e reacionário, como vozes mantenedoras de um status quo que nem eles duvidam ser velho e corrupto.
A nota do Ecad causa espanto ao afirmar que o PLS 129 é “um projeto feito para beneficiar os usuários de música”. Admite, nesse ato falho, que o ponto de vista dos arrecadadores é oposto ao dos consumidores de música e inimigo deles. “Depois de tantos investimentos feitos para promover a evolução da estrutura de cobrança e distribuição desenvolvida pelas associações e pelo Ecad, é inadmissível que os interesses dos usuários estejam sendo colocados em primeiro lugar, e não os dos artistas”, afirma o birô, deixando de barato que pouco lhe importam as necessidades e os anseios dos cidadãos que pagam por direitos autorais e os que contestam os excessos e abusos em sua cobrança. A mensagem é transparente: este é um tema para ser resolvido em gabinete, que os meros mortais não ousem se intrometer em assuntos de deuses e semideuses.
O escritório sem rosto não fundamenta tal afirmação em fatos, mas sim na desconfiança ideológica em relação ao governo federal. “É curiosa a intenção desse projeto de lei de ter legitimada a intervenção estatal na esfera privada no exato momento em que o governo vem sendo amplamente criticado nas ruas”, afirma, misturando diversos alhos com diversos bugalhos.
No açodamento, o Ecad se indispõe simultaneamente com consumidores e com criadores de música. Se a pauta em questão é de interesse deste ou daquele governo, o que explicaria a presença maciça de artistas, sejam eles petistas, tucanos, marineiros, “apolíticos”, “apartidários” ou “anonymous”, todos juntos em favor de uma só lei reguladora e fiscalizadora? E o que dizer do inédito confronto direto, e INÉDITO, entre o olimpo da música brasileira e a entidade que lhe repassa os pagamentos? Se o Ecad está contra produtores e consumidores, a favor de quem o Ecad está?
De modo análogo ao que aconteceu há poucos dias quando a presidenta Dilma Rousseff (PT) respondeu ao grito das ruas propondo um plebiscito, o conjunto de forças a que chamamos MPB parece ter jogado uma inevitabilidade no colo do Congresso Nacional: é preciso debater o Ecad. Ausente das manifestações populares, a nata emepebista optou pela luta institucional, mas não fez feio. Já no lado oposto, e de modo análogo ao que vem acontecendo nas discussões midiáticas em relação a plebiscito e reforma política, o Ecad correu em direção ao público que tanto rejeita para insinuar que a abertura dos debates seja golpista, antidemocrática ou contrária ao diálogo.
Para lograr êxito em benefício do status quo, o Ecad teve apoio de um solitário senador do PSDB de São Paulo, Aloysio Nunes Ferreira – que, a propósito, foi eleito a bordo da rejeição e do boicote ao músico popular Netinho de Paula (PCdoB). O tucano se mostrou disposto a interditar a passagem do PLS 129 pela Comissão de Constituição e Justiça, rumo a votação futura no plenário.
A ministra da Cultura petista (e também paulista), Marta Suplicy, acompanha a elite da MPB no passeio pelo Congresso. Ela afirmou que a presidente Dilma é a favor da transparência e deve concordar com o projeto de lei.
O movimento Fora do Eixo, que até hoje jamais se mostrou atrelado a nenhuma espécie de status quo, se incorporou à luta defendendo o PLS 129 e promovendo um “twitaço” sob a hashtag #AloysioNunesContraOsArtistas, cerrando posições ao lado de Roberto Carlos e Emicida, Marta Suplicy e Paula Lavigne, os Racionais MC’s e o Exaltasamba.
É cedo para afobar conclusões, mas parece haver um clima de consenso no ar. Até algumas posições do Ecad foram contempladas no substitutivo proposto pelo senador Humberto Costa (PT-PE). A proposição, essencialmente, muda as regras de arrecadação dos direitos autorais, reduzindo a atual taxa administrativa cobrada pelo Ecad de 25% para 15% e garantindo que os autores recebam 85% do total arrecadado, além de conceder ao Ministério da Cultura (MinC) o poder de fiscalização sobre o escritório, com participação ativa dos compositores.
A TV Senado transmite ao vivo imagens de parlamentares misturados com artistas, inclusive em cenas de tietagem explícita e desavergonhada, num enredo que ainda não possui desenlace. Há quem suspeite que a Rede Globo esteja por trás de toda a articulação (o que a presença de Roberto Carlos atestaria) – FAROFAFÁ não acredita em explicações tão fáceis e retas. Infiltrada em cada fímbria da sociedade brasileira, a Rede Globo defende interesses anti-Ecad ao mesmo tempo que defende interesses pró-Ecad. É fato que o dia de brilho da MPB no Senado coincide com uma manifestação marcada por militantes anti-Globo em frente à sede da emissora no Rio de Janeiro, mas isso não pode sobrepor o caráter democratizador do PLS 129 sobre a caixa-preta ecadiana (ou pode?).
Mesmo ainda tão cedo, dá para ver pontas de céu azul atrás do nevoeiro. O direito autoral “brasileiro” é regido há décadas pelos interesses de multinacionais chamadas Universal, Sony, Warner, EMI – e Globo. A nata MPB, não sabemos ainda com que grau de apoio das camadas menos favorecidas dessa elite cultural, ensaia uma tomada de posição e de poder, uma reconquista de autonomia e soberania. Há muitas décadas remetemos bovinamente grande parte dos direitos autorais da música BRASILEIRA de Caymmis e Jobins para o exterior, como se isso fosse coisa natural. Não é.
A batalha está só começando, a ágora está recém-aberta. Vai ser bonita a festa, pá.