“O Brasil não conhece o Brasil/ o Brasil nunca foi ao Brasil”, dizia a velha canção interpretada pela gaúcha Elis Regina. Os versos ecoam no seu crânio quando você está em Belém do Pará, assistindo a um festival de música integrado predominantemente por artistas paraenses.
Aconteceu comigo neste último fim de semana, na etapa belenense do festival Conexão Vivo, criado e patrocinado pela operadora de telefonia celular. Fui, como se costuma dizer no jornalismo, a convite da Vivo, recebendo da “patrocinadora” da viagem transporte, hospedagem e alimentação. Tinha estado em Belém algumas vezes nos últimos anos, e a esta altura já posso dizer sem medo que é o lugar mais criativo e inspirador do Brasil atual, em termos musicais. Foram quase 40 atrações, e mais da metade dos artistas escalados nasceram e/ou moram no Pará. Dentre todos, não vi nem ouvi nenhum que fosse desinteressante, no mínimo, ou não fosse sensacional, no máximo.
Nenhum deles é conhecido nacionalmente, com as possíveis e parciais exceções do veterano instrumentista Sebastião Tapajós, do “rei do carimbó” Pinduca e de uma das artistas mais audaciosas a surgir no Brasil recente, a semideusa profana tecnobrega Gaby Amarantos. “Viva a nova música brasileira produzida no Pará!”, bradou Gaby em diversas ocasiões. Mais que uma artista, ela é hoje uma espécie de embaixadora de sua terra natal pelo Brasil afora, incluindo sempre em seus shows e em seu forte discurso de autoafirmação uma bandeira paraense, o orgulho da evidente descendência indígena e o prazer de ser filha do bairro pobre de Jurunas, em Belém.
A embaixadora se mostrou incansável durante todo o festival, apesar das feições nítida e progressivamente cansadas, e agravadas no domingo de manhã pela notícia da morte do DJ de tecnobregas e forrós Beto Brasil, num acidente de carro, aos 28 anos. Cansaços e más notícias à parte, Gaby sorriu e deu entrevistas, participou de vários shows alheios, assistiu no gargarejo a vários outros, trouxe filho e mãe para os bastidores da Conexão Vivo, levou uma tropa de jornalistas (eu incluído) para terminar a madrugada de sábado para domingo numa festa de aparelhagem, no bairro do Guamá, fronteiriço de seu Jurunas.
“Príncipe Negro! Foi aqui que tudo começou!”, celebrou, trepada na nave dos DJs da aparelhagem no baile de tecnobrega, enquanto os jornalistas atrás dela observávamos o galpão apinhado de gente e éramos observados com alguma desconfiança pelo público local. “Choque cultural é normal”, diria a paulistana Rita Lee.
Gaby pode parecer onipresente, mas é apenas a ponta de um iceberg ainda majoritariamente submerso. A música do Pará, assim como as cenas da maioria absoluta das cidades e estados do país, ainda não adquiriu desenvoltura, cara de pau e profissionalismo suficientes para tomar conta do pedaço e/ou sair se autoelogiando do modo como Gaby há tempos ensaia fazer. Comparados, por exemplo, aos artistas baianos, os paraenses parecem tímidos, cuidadosos, ressabiados, seja no palco ou fora dele. Mas, para quem souber ouvi-los com ouvidos não entupidos pelo bombardeio tóxico difundido a partir do eixo Rio-São Paulo, é evidente a força criativa descomunal que acumulam.
“Todo mundo nasce artista/ depois vem a repressão (…)/ todo mundo nasce artista/ depois vem a castração”, expôs-se no palco uma jovem de pouco mais de 20 anos, Aíla, com gestos e textura artística típicos de quem está apenas no início da jornada – de uma jornada rumo à expressão, não à repressão. Nestes tempos em que jornalistas ditos especializados em música e alocados na chamada “grande” mídia apreciam embandeirar o próprio semianalfabetismo cultural, é razoável supor que uma menina como Aíla se desenvolverá conforme mereçam seus críticos, e vice-versa.
O mesmo vale para jovens colegas como Lia Sophia, Felipe Cordeiro, Juliana Sinimbú, Gang do Eletro, Orquestra de Violoncelistas da Amazônia (paraenses), Gloom (goianos), Soatá (belenenses-brasilienses), e assim por diante. Cada país tem os músicos e os críticos que merece. Na opinião colonizada de certos jornalistas paraestatais, somos um lixo. Para artistas como Gaby, o melhor lugar do mundo é aqui e agora. A grande maioria de nós se localiza em algum ponto, muitas vezes apático e emudecido, entre esses dois pólos extremos.
A banda Soatá é um exemplo marcante do que acontece hoje com a música brasileira fora-do-eixo da velha mídia multinacional. É uma banda de rock pesado, tendendo ao heavy metal. Seus integrantes moram em Brasília, um deles nasceu em Belém, um de seus rocks transamazônicos se chama “Conexão Belém-Brasília”. A vocalista é negra e linda, mais para Preta Gil que para Luana Piovani. Chama-se Ellen Oléria, e é provavelmente a voz mais poderosa a ecoar da floresta amazônica para o Brasilzão no final de semana que passou (dizer algo tipo “é a melhor voz surgida no planeta nos últimos anos” soa tão datado, não é mesmo?).
Os rockões compostos e interpretados pelo Soatá estão grávidos de baião, citação explícita a Luiz Gonzaga, carimbó de Pinduca, bateria de escola de samba e brasilidades afins. Se padecem de alguma enfermidade autoimune, lutam bravamente contra ela, porque o orgulho de ser quem são é o que mais transparece em sua música tão parecida na superfície (e apenas nela) com algo branco, masculino e norte-americano. Por sinal, você já viu em algum canto deste planeta uma banda de rock pesado liderada por uma mulher negra?
Algo parecido com o trovão do Soatá acontece com o “Amazônia groove”, o carimbó-beat do paraense Marco André, que tocou com um Pepeu Gomes em estado de graça, conexão Belém-Bahia-Rio embalada pelo coro popular uníssono em “Mil e Uma Noites de Amor” (1985) e “Eu Também Quero Beijar” (1981). Eu que nunca fui metaleiro, voltei de Belém gostando de rock pauleira.
Pela via oposta, dão esse mesmo tipo de nó em neurônios enferrujados os muito jovens instrumentistas da Orquestra de Violoncelistas da Amazônia. “Fiquem atentos para os nossos guitarristas” e “eles sabem ler partitura, sim!”, avisava o amalucado regente antes de pôr os 11 violoncelistas a florestanizar hits pop-rock de Beatles, Led Zeppelin, Metallica, Iron Maiden e Europe, diante dos urros suaves da civilizadissima plateia belenense. Em que outras circunstâncias um festival gratuito ao ar livre poderia abrigar shows de rock metaleiro sem que um espectador sequer tentasse desrespeitar as barreiras colocadas para proteger prédios históricos como os da velha Belém (inclusive o palácio da prefeitura), que os espremiam por todos os lados?
Outro exemplo da mudança de mentalidades é o do rapper Zé Brown, ex-integrante do extraordinário grupo pernambucano de “rap-ente” Faces do Subúrbio e dono de outros dos shows mais impactantes do programa. Entre os pandeiros, emboladas e repentes que aveludam o som rapper norte-americanizado deste afro-pernambucano, emergiu ao final o “forrap” “Eu Valorizo”: “Eu valorizo, sim, os costumes da minha gente/ meu chapéu de couro e meu oxente”. Onde já se ouviu um rap orgulhoso de ser repente, oxente?
Outra metade do orgulho paraense (e brasileiro) exibido na Conexão Vivo-Belém pertence a artistas veteranos como a septuagenária Dona Onete. O ápice de seu show foi “Jamburana”, que a compositora adaptou do bordão “treme!” dos jovens cyber-artesãos do tecnobrega, em homenagem não só a Gaby Amarantos, mas também ao jambu.
Explicação, para quem ainda não teve o prazer de provar (já que, como dizia Elis, o Brasil não conhece o Brasil): jambu é uma planta local, de fibra indígena, que faz formigar a boca quando mastigada em pratos como o tacacá (sumo de mandioca + goma de tapioca + camarões secos + temperos que só as paraenses de tabuleiro sabem misturar). A “Jamburana” de Dona Onete diz assim, sexy como ela só (e onde já se viu uma índia cantora-compositora sexy de 70 e tantos anos de idade?!, é o mundo se acabando…): “O jambu treme (…)/ vai descendo/ (…)/ vem subindo/ chega até o céu da boca/ a boca fica muito louca/ (…) com o tremor do jambu”.
O teor de orgulho culinário-rítmico é altíssimo no Pará, em especial nos chamegados de Dona Onete e nos carimbós do quase octagenário Pinduca. “Estou vivo! Pinduca está vivo!”, exclamou o difusor de hits amazônicos como “Sinhá Pureza”, “Farinhada” (1974) e “Dona Maria” (1973), numa indireta merecida remetida à conexão cultural da Vivo, que não o escalou como atração principal, apenas como breve convidado da jovem Juliana Sinimbú.
Também da velha guarda paraense são outros nomes que brilharam no festival, como os sopristas das Metaleiras da Amazônia e o compositor e instrumentista Manoel Cordeiro, convidado da cantora paraense Iva Rothe. Guarnecidos pelo jovem e endiabrado guitarrista Leo Chermont e pelo baixista também onipresente MG Calibre, os metaleiros Pantoja, Manezinho do Sax e Pipira mandam brasa no carimbó, no merengue e na guitarrada (outro gênero paraense prontíssimo para a exportação). O violão de Manoel Cordeiro, por sua vez, passeia faceiro por choro, samba, carimbó, lambada, guitarrada, brega, tecnobrega… Cercada pela floresta amazônica, a música de Belém desconhece barreiras e fronteiras.
De modo bem paraense, o elenco do festival se mostrou inicialmente tímido em relação ao plebiscito que se aproxima e determinará se o Pará será ou não dividido em três estados. Que eu tenha ouvido, Gaby foi a primeira a gritar do alto do palco, já na segunda noite: “Ninguém vai dividir o meu Pará!”. Depois dela, vários artistas repetiram a frase, portaram camisetas com a bandeira do Pará e demonstraram de algum modo a opção pela não-divisão. Se havia gente pró-divisão, esses não se manifestaram.
Na sexta-feira, duas supostas tietes se esforçavam por fazer chegar ao palco um bilhete dirigido ao cantor Marco André. Ele chegou a ver a mensagem, mas não a repetiu. “Deve ter rabo preso”, fez muxoxo uma das “tietes”. No bilhete estava escrito: “Pare Belo Monte”. Não pude deixar de pensar que até as tietes paraenses são diferentes de tudo que o umbigocentrismo paulista-carioca-brasiliense mais aprecia propagandear.
Voltei a minha São Paulo adotiva (adoraria ser paraense, mas sou paranaense) mais convicto que nunca da pujança da música do Norte, mas me fazendo uma pergunta que transfiro a você que chegou a este último parágrafo de texto. E este país de 511 anos (na verdade muito mais, como sabem de cor e salteado Gaby Amarantos e os povos indígenas da Amazônia), hein? Por que diachos o Brasil ainda não descobriu o Brasil?
* Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil
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