“Avenida Paulista dança aos 100 anos.” Tava no pé da primeira página da Folha. Foi uma semana de festa para comemorar o aniversário da avenida que, segundo Arnaldo Jabor, ainda um embrião do reacionário que virou, era o “arrimo do país” (isso foi no dia seguinte, no dia do aniversário em si, página dois do caderno Cotidiano). Havia outra manchete muito forte no dia 7 de dezembro de 1991. Alceni Guerra, ministro da Saúde de Fernando Collor de Mello, então presidente da República, desistia de comprar bicicletas para os agentes que atuavam no interior do Brasil. Paranaense de Pato Branco, Alceni havia sido acusado de superfaturamento.
(Menos de um ano depois, eu reportaria para o Jornal do Campus, da ECA, que o ex-ministro fora vítima de uma saraivada de denúncias armadas para tirá-lo do ministério, coisa de fogo amigo, vinda da disputa dos grupos de Paulo César Farias, tesoureiro da campanha eleitoral do presidente eleito em 1989, e de Leopoldo Collor, irmão do presidente, que disputavam o butim. Era coisa simples: fui cobrir um debate organizado pelo Centro Acadêmico 11 de Agosto com Lindbergh Farias – hoje senador pelo PT-RJ e com um agá a menos no nome, conselho da numerologia, na época presidente da UNE pelo PCdoB-PE – e Takeshi Imai, um empresário falido que fabricara patinetes motorizados também para o ministério da Saúde. Desse dia, lembro que Lindbergh estava com um bafo de cachorro molhado, foi difícil entrevistar o galã do Fora Collor)
No dia 8 de dezembro de 1991, era a primeira fase da Fuvest, a temida seleção para a Universidade de São Paulo. A Paulista ficou fechada para festas que não sei se começaram neste dia ou se terminaram nele. Na minha memória, foi uma semana de comemorações na região do Masp. Tudo ainda de acordo com o que lembro, ou seja, pode estar bem errado, minha turma de colegial se encontrou pela última vez enquanto tal, comeu uns hambúrgueres na Avenida Angélica e subiu para um fim de festa da Paulista. Não sei se por ironia ou por amor, depois de uma chuva forte, ganhei um beijo rápido de uma menina da zona norte que nunca mais vi.
No domingo seguinte, dia 15 de dezembro, o caderno Cotidiano da mesma Folha informava: “Cansados de se lamuriar, os paulistanos resolveram ‘soltar a franga’ e esquecer a crise. Uma onda de festas assolou os Jardins na semana passada.” Era uma matéria sobre os ricos da cidade, mas não pense que estava fácil mesmo para eles: a manchete do caderno informava que o horror ao medo de contágio fazia médicos abandonarem os pacientes com Aids à própria sorte e, na página seis, Dráuzio Varella previa um futuro sinistro, em que o sistema de saúde do país, público e privado, entraria em colapso devido ao crescimento descontrolado e avassalador da doença. Também naquele mês, síndico mal-sucedido, Collor mandou avisar: crescimento econômico só em 1994.
Tudo ia pelo ralo, mas havia música. Eu não entendo nada disso, mas acho que o ano rebelde de 1992 começou assim: cantando e seguindo a canção, para só depois caminhar.
Havia um novo fenômeno no Nordeste, a música baiana, que atendia pelo sucesso de Olodum e Daniela Mercury e pelo nascimento do axé. Mas havia um outro fenômeno em São Paulo: a gestão de Luiza Erundina (PT) na Prefeitura desde o começo de 1989. Na pasta da Cultura, conduzida por Marilena Chauí, ela deu uma sacudida no barraco e passou a promover shows gratuitos em São Paulo. Shows que, de uma certa forma, são o começo da agitação que daria no Fora Collor.
Na primeira passeata de 1992, eu já era aluno de duas faculdades: uma pública, a USP, onde fiz jornalismo e assisti na semana dos calouros a uma apresentação de Jorge Mautner e seu violino, e outra privada, a PUC, onde fazia direito. Tinha os dois cenários: a falta de verbas para o ensino público e a inflação que tornava quase impossível aos alunos pagarem a universidade privada.
Na PUC, um dia à noite, ainda no primeiro semestre, fomos convocados pelo centro acadêmico para uma passeata contra o aumento das mensalidades. Houve um impasse e uma discussão com o professor(a) daquele dia sobre se ele(a) daria ou não falta a quem fosse à passeata. Não lembro que era o professor daquele dia, mas sei que já não era o de sociologia, o tucano José Gregori, que foi convidado e aceitou participar de um ministério de salvação do governo Collor depois da primeira semana de aula.
Saímos da PUC conduzidos por um carro de som e, ainda na Rua João Ramalho, fui apresentado à marchinha de protesto da ocasião, inspirada em Raul Seixas. Do alto do caminhão, Patrícia de Angelis, então presidente da UNE, comandava o coro: “Ê Goldemberg [ministro da Educação de Collor, ex-reitor da USP], vê se te orienta/ Assim dessa maneira/ Estudante não aguenta”. De Angelis foi a primeira pessoa que ouvi gritar “Fora Collor” na rua, uma “politização” que achei inconveniente naquele momento, mas que se revelaria perfeita. Lindbergh sucederia Patrícia na UNE, mas não com as mesmas batatas da perna que eu via olhando para o alto do carro de som e que se dirigiram em direção ao Masp.
Com os colegas da USP, havia, inicialmente, menos palavras de ordem, e mais música. Na casa de Bia Brisola, hoje atriz e produtora teatral, retomando o apelido de infância Ziza, fizemos a nossa primeira festa. Lembro que neste dia, para horror de Hélio Gurovitz, hoje diretor de redação da Época, comi uma abelha sem ferrão que caiu na minha cerveja. Neste dia, um domingo qualquer, brincávamos de ser DJ da recém-instalada no Brasil MTV, vizinha da Bia. Pra mim era esse o verdadeiro horror, porque meu inglês era péssimo e não se era DJ da MTV sem falar inglês.
Também com Pedro Alexandre Sanches, Eduardo Nunomura, Ana Paula Alfano, Malu Gaspar e Vanessa Adachi, fui em alguns shows na avenida Paulista. Lembro especialmente da voz de Elza Soares no vão livre do MASP. Incrível e assustador, não só pelo que ela cantou, mas pela presença marcante, entre os ouvintes, de uma triste figura, um travesti que circulava na época pelas ruas de São Paulo com o rosto desfigurado por aplicações de silicone líquido.
Naquele vão do Masp, toda sexta-feira, havia shows promovidos pela prefeitura, no projeto chamado “Som ao Meio-Dia”. A turma, junta ou separada, foi a vários. Salvo engano, Renata Andrez foi às apresentações do Olodum, em 29 de maio, e de Daniella Mercury, em 5 de junho. Na primeira, o grupo baiano teria reunido 20 mil pessoas, segundo a Secretaria de Cultura (a PM falou em 5 mil). Os dois shows fizeram tanto sucesso que começaram a correr histórias de que a estrutura do vão livre do museu poderia ser abalada pelo excesso de pessoas, mas parece que o eterno chororô paulistano em torno do trânsito foi o argumento definitivo para que, no fim de julho, a apresentação de Alceu Valença fosse transferida para a Praça Alexandre Gusmão, ao lado do Parque Trianon.
Fora do circuito da Paulista, porém, houve um outro comício, na Praça da Sé, que ainda guardava a aura de ponto de encontro político conquistada durante as jornadas das diretas já de 1984. Já havia CPI, já havia o Fora Collor, mas a coisa andava meio desanimada. Um monte de gente falou, e ninguém se empolgava. Parecia que um acordo por cima havia dado alguma estabilidade a Collor, e a ideia de tirá-lo do poder perdia força.
Então, Plínio de Arruda Sampaio, que havia sido candidato do PT a governador em 1990, começou a falar. Também não empolgava muita gente. Era mais um, garoava. Aí, não sei de onde, ele veio com esta: “Estão dizendo que o Collor não cai. Mas se chacoalhar, ele cai.” Marcelo Starobinas emendou: “Ai, ai, ai, ai, ai/ Ai, ai, ai, ai, ai/ Se chacoalhar/ o Collor cai”, repetindo os gestos que costumavam acompanhar uma rima de duplo sentido da época: “Ai, ai, ai, ai, ai/ Ai, ai, ai, ai, ai/ em cima embaixo/ puxa e vai.”
A pitada sexual do coro que nossa turma puxou se espalhou, pondo um pouco de pulsão de vida naquele dia que se mostrava disposto a matar um projeto de mudança. A garoa passou. E a gente foi pra casa achando que, talvez, o Collor bem que podia cair.
Sem música, não teria havido o impeachment. E Itamar Franco não seria ninguém.
(Haroldo Ceravolo Sereza é jornalista e crítico literário. Dirige os sites independentes Opera Mundi e Última Instância.)
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