O LADRÃO DE FOGO

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Passamos por um lounge estranho, com poltronas de braços enormes que engoliam pessoas – depois de sentadas, delas só dava para ver os extremos, braços e pés e pontas de cigarros em brasa. Mais adiante, paramos numa espécie de compartimento estanque, separando hermeticamente um ambiente do outro. “Gas station”, anunciou o Saturno, com ar triunfal.

Deus do céu, a casa tem uma ‘gas station’ particular! Alguém aqui tinha muita grana – o meu chapa me lembrou que era a casa de um novo rico malucão, um milionário colecionador de arte contemporânea que já foi acusado pela polícia de usar latas de sardinha para traficar cocaína com países da África. Eu demorei a crer, o que me limitou o tempo de decidir se entrava ou não. “Eis a toca do Tigre!”, anunciou Saturno.

As pessoas dançavam numa névoa de gás, combinação química de dois poderosos alucinógenos, myristicina e elemicina. É um material caríssimo, mas seu efeito gerou essas versões modernas dos antigos salões de ópio da aristocracia britânica. Vejo garçons e seguranças com máscaras e tubos de oxigênio e sinto-me num filme de ficção científica. O gás demora uns minutos a agir e tem um efeito excitatório. Eu agora via discos brancos e negros vindo em minha direção e ouvia uma música se deslocando pelo alto e pelo teto, pelos lados e empurrando-me pelas costas. Não conseguia determinar com certeza se Saturno desaparecera havia um minuto ou se fora havia uma hora.

E, quando consegui sair, também não me lembro se foi pelas minhas próprias pernas ou se alguém me carregou. Na outra sala, enfiei-me num dos sofás do gigantesco lounge e demorei para sentir que havia alguém do meu lado. Senti o hálito a centímetros do meu rosto, um cheiro de especiaria japonesa inconfundível. Minha surpresa chapada não escondeu a alegria surda: aquela era a respiração descompassada de Françoise, que achei que nunca mais veria. Françoise, aquela que é bonita por decreto pessoal, cujas alças do soutien parece que foram engendradas somente para seus ombros. Françoise, por quem passei algumas noites agoniado, e acho que ainda passo. Ela me cumprimentou com um entusiasmo burocrático, quase consternado, um tipo de alegria entorpecida – essa reação é admirável, porque eu acho rara, difícil de demonstrar, quase ‘artística’, eu diria, se é que me entendem. Entabulamos uma conversa sem sentido. Ela me perguntou dos livros, das teses. Eu viajei na maionese.

– “Engraçado, há tempos que não tenho boas idéias. Quer dizer, acho até que tenho, mas perco logo em seguida”.

Ela me olhou sonada, sem prestar atenção em palavra. Ou prestando, mas desprezando solenemente. Perguntara só para ganhar tempo, me pareceu. Tempo para quê? Eu insisti.

– “É verdade! Não estou brincando. Todas minhas boas idéias se perdem, como se estivessem sendo roubadas. Não consigo nem chegar a tempo num bloco de notas para registrá-las.”

Ela riu, aquela risadona gostosa, farta, que não tem medo de mostrar as obturações velhas. E entrou na minha viagem.

– “Quer dizer então que você está vivendo numa grande conspiração? Uh, imagino a cena: uma gangue de ladrões do futuro, viajando pelo tempo incógnitos, infiltrando-se na nossa mente e roubando a idéia instantes depois de ela ter surgido, fugindo com uma revolução em processo.”

– “Não ria, é uma coisa provável! Sabe essa sensação que dá na gente às vezes, quando a gente entra no elevador do prédio e parece ter esquecido de fazer algo em casa, tipo desligar o fogão e tirar o leite quente? Tenho sentido isso com frequência. Uma sensação que prossegue me torturando muito tempo depois, com o carro já enfiado no trânsito”.

Ela riu mais alto e levantou, sumindo na cortina de bibelôs em tiras. Não a segui, embora quisesse. Outra pessoa sentou do meu lado e eu continuei formulando a tese conspiracionista na minha cabeça, criando tribunais gigantescos de júri para julgar os casos de roubos de idéias. Um tribunal do tempo cujo trabalho hercúleo seria mapear, no futuro, o que haveria de originalidade nas criações do passado, o quanto haveria de copyright a ser defendido no futuro – e todo o resto teria sido pilhagem do passado, e gênios criadores seriam desmascarados porque apenas plagiários habilidosos.

Não sei quanto tempo depois, ela voltou. Me içou com delicadeza do sofá e me deu um beijo. Depois me arrastou para fora do Paraíso Artificial.

mais um trecho aleatório do eterno inédito “a morte engarrafada”

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