…amargo…

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na “carta capital” 451, de 4 de julho de 2007, o ocaso do camaleão é o caso do acaso, bem marcado. chico anysio fala, e põe à tona os amargores do velho artista de direita que acredita que é de esquerda que pensa que é de direita que acha que é de esquerda (& vices, & versas) que (não) sabe que está plantado em pleno centro.

o lobão bufão É o porquinho submissinho?, o porquinho É o lobão? chico city somos nós?

O CAMALEÃO FAZ FALTA
Afastado dos humorísticos que o consagraram, Chico Anysio se refugia nas novelas e num livro de caricaturas

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

“Foi uma decisão da casa, que me tirou os programas, até hoje não sei por quê. Não é direito meu ficar perguntando. Meu dever é obedecer, e obedeço.” É assim que o ator Chico Anysio, 76 anos, refere-se à extinção do programa Escolinha do Professor Raimundo, em 2001, e ao afastamento do ofício de fazer humor na tevê, daí por diante. A “casa” é a Rede Globo, onde o cearense de Maranguape radicado aos oito anos no Rio de Janeiro protagonizou, por 30 anos quase ininterruptos, uma longa seqüência de programas humorísticos.

Foi procurar colocação nas novelas globais quando as portas se fecharam para o tipo de humor que formulou, calcado na caracterização camaleônica de mais de 200 tipos, sempre inspirados na mais desbragada brasilidade. “Tenho que apresentar produtividade à casa, para receber adendo de salário. Como não havia mais programa de humor para eu fazer, comecei a procurar lugar nas novelas.”

Até no Sítio do Picapau Amarelo a figura algo deslocada de Chico fez aparição especial, em 2005, lado a lado com Emília, Pedrinho, Narizinho e Dona Benta. Mas ali, ressalva, chegou a convite. Cininha de Paula, filha de sua irmã Lupe Gigliotti, era a diretora do infantil.

Quando o repórter se desculpa por não tê-lo assistido na novela Pé na Jaca, Chico ri, bem-humorado: “Eu também não assisto”. E lembra que o personagem que interpretava era um cigano “sério”, sem comédia. À pergunta sobre se gosta de fazer novelas, responde “gosto”, e se põe a filosofar: “Eu acho que…”. Pausa. “Eu não acho nada.” Silêncio. “Gosto de trabalhar, sabe? O que aparecer eu faço.”

O cuidado com as palavras remete a outubro de 2000, quando a Globo o suspendeu da programação por cinco meses, após críticas que dirigiu à emissora, numa entrevista à revista IstoÉ. Na volta, afirmou que seu salário havia sido reduzido em 42% e se queixou na Folha de S.Paulo da reação contra as críticas que fizera a colegas globais: “Isso eu tenho direito de fazer, estou numa democracia. Isso não é motivo de suspensão, disponho do direito de ir e vir e de pensar e falar”.

O contrato com a Globo, à época, tinha validade até 2004. Foi renovado até 2009, como demarca uma minibiografia inserida no livro recém-lançado É Mentira, Chico? (Di Momento, 192 págs., 79 reais), em que caricaturistas de ponta dedicam-se a desenhar 77 dos personagens mais populares do camaleão: o malandro Azambuja, o coronel Pantaleão (marido de Terta, pai de Pedro Bó), o “preto velho” Véio Zuza, o pai de santo Painho, o galã canastrão Alberto Roberto (inspirado no galã real Carlos Alberto), o locutor Roberval Taylor (que satirizava o radialista Hélio Ribeiro), o falso funcionário da Globo Bozó, o craque Coalhada, o “vampiro brasileiro” Bento Carneiro, o pastor Tim Tones.

Sob supervisão do cartunista Ziraldo, Chico criou para o livro textos biográficos ficcionais sobre cada um dos 77 tipos. Além de ator e humorista, tem sido ao longo de 60 anos de profissão escritor, redator, pintor, compositor, cantor, radialista, comentarista esportivo.

Atritos à parte, diz saber que o afastamento progressivo se deve, também, às leis naturais da vida. “Com 76 anos, eu não teria condição de fazer hoje o programa como fazia. Eram 12 caracterizações diferentes numa sessão, sete horas gravando. Nós somos dependentes da nossa condição física.”

Confere legitimidade à máxima que costuma associar humoristas, palhaços e fazedores de graça públicos a melancólicos privados: “Um humorista não tem que rir, ele tem que fazer rir. Muitos são sérios”. Ele inclusive? “Sou sério, sempre fui.”

Alguns dos melhores amigos que teve nos anos de ascensão, na década de 50, pertenciam à chamada geração da fossa da música brasileira. Foi próximo de Dolores Duran, Maysa e Antonio Maria (também cronista e redator ocasional de programas de risadas). “Fui eu que segurei a barra do Maria quando Danuza Leão se separou dele. Ele morreu de amor, foi a primeira pessoa que vi morrer de amor. A poesia e o humor são irmãos.” Como o humor e a tristeza? “Sim, e como o ódio e o amor.”

Uma faceta de Chico que ficou obscurecida pelo brilho do humorista foi justamente a de compositor, que exerceu desde os anos 50, quando compunha baiões para Dolores Duran. “Ela gravava um samba de Billy Blanco no lado A e um baião meu no lado B. Queria que o samba fizesse sucesso, mas o baião é que fazia, tanto que começou a ficar conhecida como ‘a princesinha do baião’. Aí ficou brava, nunca mais gravou”, ri.

Chico é hoje verbete esquecido por alguns dos dicionários musicais, mas teve músicas gravadas por Dalva de Oliveira, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Linda Batista, Jorge Veiga, Blecaute, Maysa e, “mais para frente”, Angela Maria, Martinho da Vila, Alcione, Wando.

Nos anos 70, em parceria com o ator e compositor pernambucano Arnaud Rodrigues, compôs e cantou música “séria” em sincronia a leveza dos programas de humor, em trilhas sonoras como as de Chico City (1973, reeditado em CD) e Azambuja & Cia (1975).

Foi quando nasceu o conjunto fictício Baiano & Os Novos Caetanos, formado por Chico e Arnaud, nas peles dos hippies “cabeça” Baiano e Paulinho. A sátira a Caetano Veloso e Gilberto Gil era evidente, mas ele rejeita a qualificação: “Não era sátira, era sério”. E Caetano e Gil, como reagiam às elucubrações filosóficas “viajandonas” em que se embrenhavam Baiano e Paulinho? “Reagiam muito a favor, porque nunca debochei deles.”

A mescla com humor encobriu as qualidades musicais “sérias” dos discos daquela fase, em especial os dois de Baiano & Os Novos Caetanos, E? (1974, disponível em CD) e 2 (1975). Por trás do canto irônico, havia uma virtuosa equipe de artistas egressos da ensolarada bossa nova, como o produtor Durval Ferreira, recém-falecido, e os músicos Vitor Assis Brasil, Maurício Einhorn, Orlandivo e o grupo Azimuth, pioneiro na fusão inventiva entre jazz, samba, rock, bossa e baião.

O maior sucesso da dupla real-ficcional foi o samba-rock Vô Batê pa Tu, recentemente redescoberto por DJs e músicos mais jovens. Composto por Arnaud e Orlandivo, tratava de um tema-tabu dos anos de chumbo, a delação: deduração/ um cara louco que dançou com tudo/ entregação do dedo de veludo/ com quem não tenho grandes ligações. Chico se irrita diante da pergunta sobre se cantavam cientes do fundo político: “É claro que sim. Ninguém ali era alienado, nem eu, nem Arnaud, Durval, Orlandivo”. Por que a Censura não se incomodou? “Não sei. Pergunte à Censura.”

Chico Anysio foi dos raros artistas que defenderam publicamente Wilson Simonal, quando o amigo cantor, colado à pecha de informante da ditadura, acabou preso pela polícia do próprio regime. “Aquilo foi um absurdo, um crime perpetrado contra o maior cantor do País. Ele era cheio de marra, e passava por debochado. Quando tiveram a primeira chance, inventaram que era dedo-duro.” Quem inventou? “O Pasquim vendia 300 mil exemplares. Quando o estampou como dedo-duro acabou tudo”, diz, em referência ao tablóide-ícone da resistência à ditadura. “Ele não tinha como se defender, nenhuma tevê podia colocá-lo no ar depois do que aconteceu.”

Fala sobre a eqüidistância que manteve entre os dois pólos, ao permanecer amigo de Simonal, à “direita”, e da “esquerda” representada pela turma engajada do Pasquim, inclusive Ziraldo, futuros roteiristas de seus programas e caricaturistas do livro É Mentira, Chico?. “Eu não podia fazer nada, não tinha domínio sobre O Pasquim. Continuei sempre amigo do Simonal, mas ele sumiu, me perdi dele, fui encontrá-lo num hospital.”

E onde ele se autolocaliza, entre a “esquerda” e a “direita”? “Eu era de esquerda. A esquerda existia. Fui sempre um defensor dos pobres, dos pretos, nordestinos, favelados, retirantes. Sempre fui um defensor das classes C, D e E. Atravessei a ditadura dentro da Globo. Era barra, porque era onde a ditadura mais agia.” Era possível ser de esquerda na Globo? “Era, aqui e ali conseguíamos fazer passar alguma coisinha. Mas era uma gritaria danada.”

Irrita-se de novo, quando o assunto é a identificação de sua imagem mais à direita, em especial após a era Collor. “Nunca ouvi dizer isso, nunca tive nada a ver. Votei no Ulysses Guimarães. Quando me casei com (a ex-ministra da economia) Zélia Cardoso de Mello, o Collor já tinha sido tirado.” O que acha da política atual? “Não acho nada. Política é uma merda.”

Mesmo sob a sombra de personagens como a velhinha Salomé (que conversava ao telefone com o presidente João Figueiredo) e o deputado corrupto Justo Veríssimo, diz que o humor que criou não era “político”, mas sim “social”. “Quem faz crítica política é o Casseta & Planeta. Meu humor é social, você não entende isso?” A seguir, lembra o humorístico politizado Estados Anysios de Chico City, de 1991: “Tive que mudar tudo, porque o povo não estava entendendo. O ibope foi de 44 pontos para 19”.

Isso significaria que o público médio não entendia o humor que não fosse o mais simples possível? “Somos 190 milhões de brasileiros, 100 milhões de analfabetos. Para esses a única diversão possível é a tevê. Quando um programa vai ao ar, as classes C, D e E estão vendo, a classe A está em Angra dos Reis, a classe B está no (restaurante de elite) Antiquarius.”

Afirma que nunca brincou com preconceito, arma prioritária de certo tipo de humor. “Preconceito eu sofri muito antes de ser o Chico Anysio. É algo com que brigo. Fiz cinco veados no programa, sempre com o maior respeito, nunca debochando dos gays, dos negros, dos judeus. Não gosto de preconceito no humor, como não gosto no drama, na poesia, na reportagem.”

Provocado, descreve os preconceitos sofridos “antes de ser o Chico Anysio”. “Chegava numa festa para me apresentar e tinha que entrar pelos fundos, porque era artista. Passei por muitas situações de não me deixarem entrar em restaurante porque era nordestino.” Faz pensar nessa como uma entre muitas possíveis razões para que o humor camufle a melancolia de toda uma galeria de comediantes nascidos no Ceará, como Renato Aragão, Tiririca e Tom Cavalcanti (que ele revelou, com quem depois rompeu e que agora acompanha Brasil afora no espetáculo Chico.Tom).

“Simonal dizia uma frase sobre isso de que gosto muito: o preconceito não é racial, é econômico. Quando parei com uma Mercedes na frente do mesmo restaurante, vieram abrir a porta do carro para mim. Fui embora dizendo que o restaurante era uma merda.”

Entre o riso e o siso, o personagem de si mesmo se revela complexo, contraditório. Ziraldo vem em socorro da nobreza do serviço obediente que o amigo prestou, em palavras escritas em É Mentira, Chico?: “Em que país seu povo conheceu ou conviveu durante anos com cada um desses tipos como se eles fossem pessoas de verdade, reconhecíveis, palpáveis, vizinhos de porta?”. Mesmo no ocaso, Chico Anysio continua morando ao lado.

[p.s.: tal reportagem suscitou a seguinte (e bastante pertinente) carta de um leitor de “carta capital”, publicada na edição 453 da revista: “Cresci assistindo aos programas humorísticos Chico City. Pedro Bó era forma comum de designar quem fazia perguntas idiotas. Vários outros personagens de Chico Anysio fazem parte da minha memória televisiva e afetiva. Um livro que resgata a ‘biografia’ de vários deles é homenagem tanto para o autor quanto para nós. Todavia, faço um ressalva. Chico Anysio coloca-se, na reportagem, contra os preconceitos; cita explicitamente os gays, os negros, os judeus. Parece esquecer, porém, que alguns de seus personagens e de seus bordões sustentavam-se na exploração dos preconceitos contra mulheres, valorizadas apenas quando bonitas e/ou submissas. A própria personagem Terta tinha um pouco disso… O que pode significar, apenas, que Chico Anysio, como bom humorista, revelou nossas mazelas – pelo que quis fazer e pelo que fez se pensar em fazer. James William Goodwin Jr. Belo Horizonte, MG “.]

[o tópico …doce… não tem (quase) nada a ver com este. mas bem poderiam ser lidos como gêmeos bivitelinos…]

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