O homem está sentado em uma mesa de latão toda oxidada, na qual já não se identifica o antigo merchandising, e bebe o que parece ser uma pinga em um copo americano. A dedução é pelo jeito de segurar o copo e de beber – fosse outra coisa que não pinga, dificilmente beberia assim. O corpo arqueado, o peso jogado sobre o braço apoiado na mesa, e lá atrás se vê uma parede na qual é visível (embora seja um detalhe embaçado da imagem) a infiltração agindo na argamassa. A infiltração assumida, a natureza rebelde chamando o tijolo de volta para o solo, uma marca das periferias brasileiras. O cabelo forte e desgrenhado do homem, sua musculatura e sua cor, denota que é jovem, embora fotografado na contraluz. Tem uma faca na mesa, a chamada peixeira. Mas o que se impõe no quadro todo são seus olhos. Os olhos brilhantes do rapaz, carregados de autoconfiança e até de desejo, miram um ponto no infinito que não pode ser focalizado nem pela fotografia e nem pelo fotógrafo, somente pela tentativa vã do espectador em mergulhar na alma daquele homem da foto.
A foto acima descrita, tirada em 1986, é uma das 258 fotografias do paraense Luiz Braga expostas no Instituto Moreira Salles (Avenida Paulista, 2424), uma experiência visual que encontra raros paralelos no mundo da fotografia do mundo na atualidade (e da posteridade, muito provavelmente). A fotografia, como praticamente todas as outras, foi tirada durante passeios de Braga pelas cidades ribeirinhas do Pará ou nas periferias de Belém a Santarém.
O que chama a atenção nas fotografias de Luiz Braga, mais do que sua exuberância visual, é o protagonismo daquilo que chamamos genericamente de “povo”. Luiz Braga se importa de verdade com seu fotogrado. O artista captura emoções: afeto, paixão, lealdade, desejo, erotismo, sonhos, fé, cumplicidade, maternalidade, orgulho. E um elemento que perpassa tudo isso, de forma quase natural, é o trabalho. Sacos de cereais, cestos de palha, troncos semisubmersos, hélices abandonadas, paredes, pneus velhos, casas com iluminação deficiente, os efeitos dessa iluminação precária nos personagens: os mundos de Luiz Braga parecem depósitos de tempos perdidos, mas em verdade são radiografias de almas. Um pescador puxa uma âncora de barco na água, e sua imagem parece a de um Deus mitológico com seu tridente no mar. Tudo é mitologia: o ambulante, o concièrge do hotel de pernoite, a lavadeira, a família do circo. Nas fotos de Braga, o trabalho é parte do corpo, da existência, e não só da rotina.
Durante mais de 40 anos, a partir dos anos 1970, fotografando em preto e branco inicialmente, Luiz Braga inventariou rostos e personagens das periferias de Belém, num trabalho de técnica esplendorosa. O mais interessante é que muitos dos personagens anônimos de Braga têm se reencontrado em seus registros, alguns pela primeira vez. Uma senhora que ele fotografou com as filhas na manhã do Natal de 1985 visitou uma exposição dele em Belém (que teve curadoria de Diógenes Moura) e, emocionada, reatou com a família. A filha, que na fotografia antiga era uma menina com uma boneca, agora era professora. Houve também o caso da neta de um barqueiro que Braga fotografara em Manaus em 1992. Viajando, ela abriu a revista de bordo e reencontrou seu avô que havia morrido havia 2 anos. Foi bater lá na exposição de Belém. O açougueiro Alazir, 33 anos após ser fotografo encharcado de sangue de boi, reviu sua juventude na mostra.
Beirando os 70 anos, fotógrafo profissional desde os 17 anos, vivendo a vida toda em Belém, Luiz Braga é hoje um artista cuja singularidade é reverenciada em qualquer canto do mundo. Em 1991, venceu o prêmio Color Photography, promovido pela Universidade de Boston em homenagem ao inventor do Kodachrome, Leopold Godowsky Jr.
No final das contas, suas fotos compõem um inventário cada vez mais raro de se ver, um mergulho no puro humanismo. Mas, para enxergar pelos olhos de Luiz Braga, é preciso compreender antes o que se vê. É como se fosse um desmascaramento em série daquilo que alguém chamou de “antropologia da miséria”, aquela glamurização proposital, para efeitos de despolitização, dos estratos mais pobres da sociedade. Luiz Braga vê adiante da condição social, ele vê a pessoa, vê o gigantismo de seus afetos, a resistência intrínseca do sertanejo à brutalização do poder, do dinheiro, da expropriação.
O crítico Paulo Herkenhoff anotou que Braga revela uma Amazônia “além dos estereótipos”. O fotógrafo rechaça, no entanto, a pecha de “antropologia visual” para sua exposição. “Não fiz essa fotos com intenção de fazer mapeamento ou radiografia humana do Norte. Fui guiado pelo afeto e pela magia que vejo nas pessoas e coisas simples. Não saía com um roteiro ou lista de personagens. Eu me encantava e até hoje me encanto pela maneira como constróem a paisagem, com gestos, cores e sabedoria”.
Trata-se de um recorte de um imenso acervo de um dos gigantes da fotografia brasileira. Mais próximo de Mario Cravo Neto do que de Robert Mapplethorpe ou outros estrangeiros, Braga vive próximo dos personagens que sua mostra revela, com os quais considera que uma conversa pode ser ainda mais proveitosa do que uma foto. “Sou autodidata de um tempo em que não havia internet para dar um Google ou ver um tutorial no Youtube. Desde o Oscar, fotógrafo da nossa família, passando pelo Meca Assunção até o generoso David Zingg, foram muitos os fotógrafos a quem recorri garimpando informações. Eu admirava o Tripoli nos anos 70, Maureen Bisilliat na revista Realidade, Eugene Smith e Richard Avedon“, contou ele.
Braga só lamenta que, nos dias atuais, tenha ficado cada vez mais difícil sair pelas periferias das cidades do Norte do País fazendo o trabalho que fazia no passado. “Infelizmente, eu gostaria de estar exagerando, mas já senti na pele, eu e outros fotógrafos, o peso da violência e da desconfiança que quebraram a cumplicidade que, para mim, é fundamental para realizar uma obra dessa natureza”. Nesse momento ele está, segundo o Instituto Moreira Salles, trabalhando em um ensaio na Ilha do Marajó.
A fotografia talvez seja uma das expressões artísticas mais atingidas pela mudança tecnológica. Smartphones e as redes, Instagram, Tik Tok, Facebook: diversos equipamentos e redes sociais surgidos nos últimos anos massificaram a fotografia e também, ao mesmo tempo que democratizaram seus artifícios, esvaziaram um pouco sua característica de artesanato, de linguagem. Ou, ao menos, diluíram tudo na quantidade. Seu trabalho é daquele tipo que jamais poderá ser igualado pela máquina. No máximo, será mimetizado, como tudo o mais.

Luiz Braga – Arquipélago imaginário
Até 7 de setembro de 2025. IMS Paulista (Avenida Paulista, 2424, São Paulo/SP). Entrada gratuita. Terça a domingo e feriados das 10h às 20h (fechado às segundas). Última admissão: 30 minutos antes do encerramento. Classificação indicativa: Livre