O fato se deu há 50 anos.

Raimundo Fagner e Antonio Carlos Belchior desembarcaram na Rodoviária do Rio de Janeiro em meados de 1971 exaustos, após quase 50 horas num ônibus que saíra de Fortaleza dois dias e meio antes. Na rodoviária, entraram no primeiro táxi que encontraram, com destino a Copacabana. Estavam cansados, mas não puderam deixar de notar imediatamente que o motorista do táxi compridão era bem diferente: de chapéu preto, botas e lenço no pescoço, vestia-se como um caubói excêntrico, um Jon Voight com sotaque da Glória.

Entabularam conversa porque os recém-chegados gostaram da originalidade do taxista, Carlinhos, que lhes perguntou dos violões que carregavam, contou que também era músico sindicalizado desde 1967 e que cantava em inglês em uma banda, Os Centauros (a única outra banda da época, além do núcleo da jovem guarda e seu Lafayette, que tinha um organista, o maestro Genzon Martinelli). O taxista-vocalista-baixista Carlinhos conquistou a amizade de Belchior e logo seria incorporado aos convivas que baixavam para as jams musicais no apartamento em Copacabana que abrigava Fagner e Belchior, o pequeno bunker de Jorge e Teca Mello, na esquina das ruas Barata Ribeiro com Santa Clara. Outras figuras que eventualmente aterrisavam ali para os saraus: Ronaldo Bôscoli, Sérgio Ricardo, Manoel Carlos.

“Eu não sabia de quem era o apartamento lá em Copacabana, mas a gente ficava sentado lá no chão, tocando violão. Moravam 11 cearenses num apartamento. Se eu soubesse do futuro, teria gravado aquelas músicas que a gente tocava”, recorda hoje, aos 76 anos, Carlinhos Senra, o taxista que, por um acaso do destino, presenciou o nascimento da lenda de Belchior (e outras tantas).

“Imagine uma quitinete com quatro compositores, quatro colchões no chão, quatro violões e dezenas de apontamentos, poemas e músicas já prontas, e que era visitada por 20 ou mais artistas de outras tribos todos os dias. Não havia moradores ou não moradores, eram 24 horas de som e bagunça. Assim nasceram nossas obras naqueles alegres dias de 1971 a 1973”, relembra o dono daquele apartamento, o piauiense Jorge Mello (maior parceiro do cantor sobralense, com 29 coautorias), hoje vivendo num aprazível sítio em Itapecerica da Serra (SP). “Todos se sentavam nas pontas dos colchões, não havia cadeiras”.

Ao chegar à rodoviária naquele dia, Belchior vinha com a disposição de jogar todas suas fichas na participação no IV Festival Universitário da TV Tupi, concurso que acabaria ganhando com a composição “Na Hora do Almoço” (canção que entraria em seu primeiro disco, Mote & Glosa, pela Chantecler, em 1974). Quando Belchior pisou no palco do festival, em 4 de agosto de 1971, no Teatro João Caetano, quem entrou na sua frente segurando uma faixa com seu nome e o nome da música foram o taxista Carlinhos Senra e Raimundo Fagner, cheerleaders de ocasião.

“Na Hora do Almoço”, hino abre-alas da carreira discográfica do cantor cearense, a sua pièce de résistance, foi apresentada ao público por Belchior e mais os cantores Jorginho Telles e Jorge Neri, e a apresentação lhe valeu o troféu Bandolim de Ouro. A música, que lhe abriria todas as portas dali por diante, chegou ao Rio já pronta. Tinha sido composta em Fortaleza por Belchior e era uma entre dezenas de outras rabiscadas num caderno escolar. Nos dias que antecederam a inscrição, ganhou harmonia pelas mãos de Wilson Cirino, violonista cearense que também se abrigava na “Embaixada do Ceará” de Copacabana. Aquela oficina musical, o Chelsea Hotel do Pessoal do Ceará, chegou a ser carimbada por Jorge Mello numa canção, “Felicidade Geral”:

“No meio do quarto o colchão/ um retrato no meio da parede/ no lugar onde armei minha rede/ meia dúzia de livros no chão”.

As fundações literárias da canção “Na Hora do Almoço” marcaram tanto que, três anos depois, quando finalmente chegou ao LP, já com Belchior vivendo e trabalhando em São Paulo, o jornal Folha de S.Paulo anotou em sua página de lançamentos de discos, em 28 de abril de 1974:

“A Chantecler pôs na praça o primeiro elepê de Belchior, cearense que venceu o IV Festival Universitário com ‘Hora do Almoço’. Influenciado por Guimarães Rosa, Augusto dos Anjos, João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira e pela poesia concreta, Belchior reuniu neste disco dez composições quase desconhecidas para o grande público, mas que merecem a sua curiosidade”.

“Na Hora do Almoço” não tem o componente da poesia concreta, marca forte de várias canções do primeiro disco do artista, mas é possível identificar perfeitamente o peso da leitura de João Cabral e Guimarães Rosa na sua urdidura, as vibrações de Morte e Vida Severina e Grande Sertão: Veredas. Poesia aparentemente descarnada, uma crítica ao automatismo das relações familiares, “Na Hora do Almoço” revela preferir o pré-modernismo niilista de Augusto dos Anjos ao caleidoscópio tropicalista de Caetano e Gil. Isso mais adiante se revelaria uma espécie de contramanifesto militante de Belchior.

Jorge Mello, que trabalhava naquele ano de 1971 como produtor de TV (era assistente da direção musical, feita por Lúcio Alves), lembra como eram as escolhas e a estrutura do festival universitário da Tupi (Belchior já tinha abandonado a faculdade de medicina, mas as notas do semestre anterior eram tão boas que lhe permitiram a inscrição ainda como universitário):

“Havia uma comissão de notáveis que fazia a triagem. Esses notáveis eram escolhidos pelo grupo organizador do festival no ambiente universitário. A lista era enviada à TV Tupi para que esta distribuísse os compositores escolhidos à sua equipe musical; cada número musical era produzido pelos produtores de musicais da TV”, lembra. “Havia oito diretores de programas. As imagens eram transmitidas ao vivo pela TV Tupi. Tudo sob a regência de Manuel Carlos, o diretor-geral escolhido para dirigir o show da final. Após cada um dos diretores escolher seu maestro-arranjador e o intérprete, eles ensaiavam os artistas com a Orquestra da TV Tupi. No dia da apresentação, era tudo produzido como um grande show de TV”.

Este ano de 2021 marca 75 anos do nascimento de Antonio Carlos Belchior e 50 anos daquele início de sua escalada com “Na Hora do Almoço”, daí esta pequena incursão de FAROFAFÁ pelo começo de tudo, com uma ajudinha de testemunhas oculares e auditivas do período.

Mas o leitor vai perguntar: e quanto ao taxista de Belchior, o que aconteceu com ele? Esqueceram de dar-lhe destaque nesses anos todos? Bom, ele conta que aproveitou bem o seu momento e o passaporte musical que carregava e ostenta uma lista de façanhas. Dirigindo seu táxi para aqueles artistas que chegavam, ele conheceu os Mutantes (que tinham ido ao Rio para o casamento do filho do Maestro Cipó, ou Orlando Silva de Oliveira Costa), Roberto Carlos, Jorge Ben, Carlos Imperial, Jô Soares. O ex-taxista também hospedou a festa de despedida de solteiro do goleiro Cantarelli, do Flamengo, com o time todo em seu apartamento, em priscas eras.

Como músico, tentou a sorte com Os Centauros e conta que, além de covers, chegou a gravar uma canção original composta por Antonio Carlos “Carleba” Castro, lendário baterista dos Panteras de Raulzito, que também conheceu por intermédio de uma corrida de táxi. Cantarola a música, que trata da vida trôpega de um delinquente rock’n’roll. Mas, consultado sobre a (provável) parceria remota, Carleba demonstra que decididamente não tem lembrança alguma daquilo. “Rapaz, não é bem meu estilo não… Rs”, respondeu, lá de Salvador. Carlinhos também tocou no grupo Brazilian Rolling Stones. Certa ocasião, Jerry Adriani pediu ao Chacrinha, ao vivo, para ajudá-lo a localizar o táxi roubado de um colega. Acharam em seguida.

Ao final, quem faz o balanço geral da roda viva da sua vida é o próprio Carlinhos Senra, em seu estilo e grafia preservados, pelo WhatsApp:

“nos anos 70 tipo 73 74 75 eu era ator-modelo, estava no jornal nacional, cid moreira é meu amigo, eu que ajeitava o som de gravação dele. fiz publicidade com vários artistas, katia d’angelo, roberto bonfim, mario cardoso, mario gomes, henriqueta brieba no largo da carioca, lancei o PAZ E AMOR na propaganda do ponto frio bonzão, brastel, cigarros LS, guaraná da brahma, e um dia eu na estrada pra recife de puma, parei para almoçar numa estrada de barro, sem ninguém, de repente apareceu um monte de gente, era por causa da propaganda do guaraná, nem quiseram me cobrar pelo almoço, outro (comercial) fiz com a alcione mazzeo, ex-do chico anysio, foi quando fui fazer um curso de inglês em san diego sul da califórnia, ao entrar na sala de aula uma menina disse: ‘vc é brasileiro te conheço da propaganda do curso radier’, e aí foram várias meu amigo, e quando fui entrar na novela das 19h na globo, em 1977 pra 1978, briguei com a namorada fiquei puto, peguei um avião dia 24 de dezembro e fui pra miami e lá fiquei 2 anos”.

 

UM TÁXI PARA AS ESTRELAS

LEGENDAS (NO SENTIDO HORÁRIO):

  1. Carlinhos Senra (camisa listrada) em uma festinha doméstica; atrás dele, segurando um gatinho, a cantora Rita Lee, que o chamava de “George Harrison”;
  2. O guitarrista Sérgio Dias, Liminha e o taxista-músico;
  3. Sérgio Dias Baptista atacando uma feijoada;
  4. Os Centauros em ação, com o vocalista Carlinhos Senra.

 

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome