Todo mundo sabe que uma pessoa que ama muito os livros um dia será devorada por eles. Essa ideia é o parti pris da fabulosa história Incidentes da Noite, do francês David B. (lançamento Veneta Editora).  É como se David B. tivesse compreendido que o conto “A Biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges, estava a exigir uma visão gráfica e se propôs a desenhá-la e escrevê-la. Mas a tarefa é hercúlea, não há fundo no poço da analogia de Borges (“o universo – que outros chamam A Biblioteca – compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos postos de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas”, escreveu o argentino).

A história começa nos anos 1990 com o protagonista, alter ego do próprio desenhista, procurando por uma série de historietas chamadas de “Incidentes da Noite”, editadas no século 19. Ele encontra três números da série, mas sua origem é um mistério. Vai até o sebo do senhor Lhôm, na Avenida Jean-Jaurés, em Paris. O sebo é a entrada para uma expedição pelo mundo dos livros – e a palavra expedição nunca foi tão bem aplicada como aqui. Entre desertos, vales e desfiladeiros, o aventureiro busca livros (pelas 16 livrarias secretas de Paris, que todo mundo sabe que existem para além da turística Shakespeare & Co), livros que são chaves para outros mundos, e é preciso enfrentar os desafios que essa caçada pede.

Todo o mundo de Incidentes da Noite gira em torno da literatura. Livros existencialistas, apócrifos, de aventura, de mistério, de magia, de detetives, todos eles, juntamente com seus desígnios (como os de Azrael, o anjo da Morte) comparecem nessa aventura pelo mundo dos livros. Para amarrar a todos, nada melhor que uma grande teoria da conspiração: o protagonista vai se defrontar com A Frota, uma organização de rufiões em busca de trazer de volta Napoleão Bonaparte ao centro das decisões mundiais. Exércitos de pedintes, troianos, amaldiçoados e abençoados estão por toda parte. “À noite, os livros percorrem a livraria como anjos, como planetas, e se entregam a conjunções, a saltos de um para outro, a trocas, a penetrações.”

A travessia entre a condição de leitor e de personagem é para sempre, analisa David B. em sua obra magistral. A certa altura, o personagem lamenta que não vai poder viver todo o tempo que necessita para ler todos os livros que quer ler. Entre desenhos que equilibram sonhos e visões, surrealismo e cubismo, loucura e elucidação histórica, seus Incidentes da Noite parecem zombar de nossa presumível erudição – como passamos tanto tempo sem conhecer essa obra-prima, publicada originalmente entre 1992 e 2002?

David B. é o codinome de Pierre-François Beauchard, nascido em Nimes, sul da França, em 1959. Ele foi o professor da iraniana Marjane Satrapi, a autora do premiado Persépolis, e é evidente a influência de sua obra na da talentosa discípula.

Incidentes da Noite. De David. B. Tradução de Maria Clara Carneiro. Veneta Editora, 200 pág., 80 reais.

 

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