Há 26 anos, as redações dos jornais ainda nem tinham computadores, eram apenas umas máquinas bisonhas ocupadas em sistema de rodízio pelos jornalistas. No dia 2 de agosto de 1994, fui incumbido de entrevistar uma das estrelas da Bienal do Livro, que participava também de um congresso de literatura na USP, o poeta português Ernesto Melo e Castro, numa casa na Avenida Sumaré, quase na Henrique Schauman. A filha dele, a cantora Eugénia Melo e Castro, foi quem me recepcionou. O escritor de barbas de amish tinha então apenas um livro lançado pela Francisco Alves e outro em processo de edição pela Edusp. Além de poesia, fazia música sintética e era um artista multimídia, coisa rara na época (também era engenheiro têxtil).

Soube ontem que, aos 88 anos, morreu no dia 29 em São Paulo, cidade que ele adotou, o poeta Ernesto Melo e Castro (muito conhecido como EM Melo e Castro). Recuperei então aquela remota e pequena entrevista de 1994 para lembrar do que conversamos. Eu era meio bobo, mas Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro já sabia de tudo sobre o futuro.

A poesia visual surgiu com um intuito político, o de desconstruir discursos. É isso que ainda o move?

A ideia era recorrer ao conceito de invenção para contrapor ao de repetição. Em Portugal tinha ainda um caráter de oposição ao regime salazarista. Hoje, o grande inimigo da criatividade e da liberdade é, ironicamente, o neoliberalismo capitalista. Essas imposições e controles são exercidos pelos meios de comunicação, como a TV. Por isso digo que o uso do vídeo ou de outros meios tecnológicos, como holografia e gravação digital, são obrigações do poeta criativo. Os meios tecnológicos não servem só para fazer guerras, como a do Golfo, ou para controlar nossas vidas econômicas. Eles contém em si, como todas as invenções do homem, um lado criativo que cabe aos poetas ressaltar.

O avanço da comunicação eletrônica não significa a morte da leitura?

O que está acontecendo é uma transformação na própria noção de leitura. Está-se criando um novo alfabetismo, que os poetas devem explorar inventivamente. Invenção e beleza não são incompatíveis com os computadores e existe hoje toda uma info-arte com imagens sintéticas produzidas em computador e animadas pelo vídeo. Ela ressalta principalmente a enorme importância da cor na formação da percepção e inteligência da natureza. Não creio que exista divórcio algum entre as imagens imensamente coloridas e em rápida transformação produzidas pelo computador e a contemplação de uma paisagem natural.

A maioria dos poetas resiste à tecnologia…

A resistência existe, da parte de escritores e artistas que tiveram a sua formação em épocas anteriores à existência desses meios. Tal resistência é natural e tem a ver com a relação conflituosa que existe entre os homens e as máquinas. Mas, perante as ameaças globais a que o mau uso das tecnologias tem conduzido, é natural que muitos homens inteligentes recusem essas tecnologias, agarrando-se a valores culturais fossilizados. Eu costumo dizer que a cultura é a mais bela e querida coleção de fósseis.

O sr. fala mais como filósofo do que como poeta…

A poesia sempre foi uma expressão do sistema filosófico. Eu recordo um poema do português Carlos Queiróz: “Coisa tonta é poesia/E fria a filosofia/Se uma à outra não estão presas/Como irmãs siamesas”. Toda grande poesia sempre almejou o pensamento filosófico.

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