Grupo de folia de reis de Valinhos, no IX Festival da Cultura Tradicional Paulista - Fotos: Jotabê Medeiros
Grupo de folia de reis de Valinhos, no IX Festival da Cultura Tradicional Paulista – Fotos: Jotabê Medeiros

Maior evento da cultura tradicional do Estado, o festival Revelando São Paulo mostra-se uma ponte entre o estômago e a fé, entre a memória e a esperança

Revelar São Paulo é uma tarefa tão hercúlea que pode parecer pedantismo anunciar que se vai encará-la. Mas a maior feira de gastronomia e cultura do estado tem feito boa figura: quilombos e tribos, benzedeiras e ciganos, geleias e licores, tropeiros e galinhadas, congos e moçambiques, cortejos e caiçaras, rasqueados, ponteios, cachaças de alambique, moda de viola e folia de reis. O que São Paulo busca esquecer (ou que as modernidades soterram), o Revelando São Paulo refresca na memória e no espírito do cidadão.

Pirapora do Bom Jesus se junta a Jarinu, Joanópolis visita Mairiporã, Valinhos vai a Iguape, Itararé baixa em Campinas. Tradicionalmente abrigado no Parque do Trote, na Zona Norte de São Paulo, o IX Festival da Cultura Paulista Tradicional (conhecido como Revelando São Paulo, que já é uma tradição de duas décadas) pulverizou-se pelo interior desde o ano passado, e atualmente está em quatro cidades. Este ano foi aberto em Atibaia, no parque Edmundo Zanoni, no último final de semana (e ainda vai a Iguape, São José dos Campos e Valinhos até dezembro).

Comidas típicas são preparadas em fogão de barro e fogo a lenha
Comidas típicas são preparadas em fogão de barro e fogo a lenha

Cerca de 80 balcões de culinária de 20 municípios surpreendem a cada dez passos. São mais de 450 grupos tradicionais de folias de reis em todo o estado, e aqui estão os de Artur Nogueira, Paraibuna e Cajamar. São mais de 30 grupos tradicionais de congadas, mais outro tanto de marujadas, moçambiques, orquestras de viola, uma babel cultural. Até um grupo chileno, o Conjunto Folklorico Miancapué de la Isla de Quehui, participou.

Um suco de tangerina com mentruz, vendido pela moça das congadas, rebate o calor e ajuda a renovar as forças. No Pavilhão Étnico, o cantinho mágico das pedras da Cigana Natasha restaura as esperanças no futuro. “Sou cigana e faço a alma brilhar com a dança do fogo”, diz o slogan de Esmeralda Kivieke, que sacode a saia com orgulho gitano enquanto o karaokê come solto ao som de “Corazón Espinado” no pavilhão. O Suco do Zé Taiada dança com o Doce da Maria Rapadura, sob a proteção de Santa Sara.

Bernardo Neves, 80 anos, o mais antigo expositor dos 20 anos do festival
Bernardo Neves, 80 anos, o mais antigo expositor dos 20 anos do festival

Tem 18 anos que Bernardo Antunes das Neves, de 80 anos, chega de Paraibuna ao Revelando São Paulo dirigindo o próprio caminhão. Ele traz pouca coisa: um fogão de barro, saquinhos de café moído, sequilhos de polvilho, torradinha, paçocas. Às vezes, traz até a tetraneta, Yasmin, de 5 anos. No fogão, ele e a mulher, dona Irene, fazem muitos bules de café fumegante (têm sua própria marca, Café Chão Caipira) e uma cumbuca de bolinhos de chuva. Sua barraca é a mais tradicional da feira, já serviu governadores e folcloristas, carroceiros e tropeiros.

Mas como afirmar que o bolinho de chuva do sr. Bernardo é tipicamente paulista? O que o credencia? “É receita da família, então é paulista. O que marca é o tipo de pó, o jeito de passar o café”, diz ele, que produz seu café com os grãos que colhe no próprio quintal. Quem vai discordar dessa ciência que tem firma reconhecida no fundo dos olhos azuis do velho Bernardo? Quem duvidaria da excelência da palha de Ribeirão Branco e da pimenta artesanal de Cubatão?

Dividindo a barraca com o veterano Bernardo está o Jotinha, também de Paraibuna, que produz, entre outras coisas, uma rapadura famosa e a inevitável cachaça Marvada Neide. Detalhe: Neide é sua mulher e está sempre ao lado, a postos. Foi ali na barraca do Jotinha que um dos maiores culinaristas e pesquisadores da cultura caipira de São Paulo, João Evangelista de Faria, o João Rural (mais de 20 livros publicados), fez um dos seus últimos passeios. “Ele esteve aqui, sentou ali. Estava um pouco melancólico, calado. Dias depois, descobriu uma leucemia e, uma semana depois, morria”, disse o Jotinha. É como se Sergio Buarque de Hollanda tivesse ido na sua padaria uma semana antes de morrer.

Instrumentos fabricados por luthier de Atibaia
Instrumentos fabricados por luthier de Atibaia

As dezenas de orquestras de moda de viola que se revezam no palco principal do festival parecem exercitar aquela modéstia invisível de tempos perdidos. Muitos instrumentistas e acordes gêmeos soterram o individualismo e abraçam a coletividade. Das violas dos conjuntos de Cosmópolis ou Taboão, com média de 30 instrumentistas cada, sai de repente um tema fundamental do Sudeste recolhido por Paulo Vanzolini, “Cuitelinho”, uma carícia para os ouvidos. Os solistas são delicados e não rola espaço para exibicionismos.

O sertanejo não é execrado em nome de uma presumível pureza; canções dos ídolos como Leonardo, Bruno & Marrone, Victor & Léo e outros estão presentes, mas embaladas pela tradição, por um ritmo lânguido, sem pressa.

Grupos folclóricos trazem celebração e familiaridade. Ali, o que poderia causar estranhamento, vozes agudíssimas de coros açorianos, são sons de infância que passam a fazer sentido de uma hora para outra.

Tem muita gente que vive somente para o Revelando São Paulo. Vive é maneira de dizer: produz seu artesanato apenas para participar. É o caso de Benedito Faria, de Jaboticabal, que inventa brinquedos fabulosos com latas de sardinha e material reciclado. Ele tem comércio na cidade, mas os brinquedos são feitos especialmente para o Revelando São Paulo.

Em Jaboticabal, Benedito Faria  fabrica brinquedos de lata e madeira especialmente para o evento
Em Jaboticabal, Benedito Faria fabrica brinquedos de lata e madeira especialmente para o evento

“Trabalhei numa fábrica de brinquedos que havia em Jaboticabal, Alegria das Crianças, que fechou em 1970. De lá para cá, eu faço por minha conta. É criatividade minha mesmo, não tem modelo”, ele diz. Quando se aproxima a data da feira, ele capricha nos brinquedos, um Geppeto de alta precisão, com seus caminhõezinhos de carroceria de óleo de oliva.

As cenas que emboscam o visitante do Revelando São Paulo parecem ensaios de quadros de Almeida Jr. Tropeiros de Guaratinguetá tiram os chapéus com santinhos dentro, ajoelham e rezam o Padre Nosso quando a Folia de Reis entra na sua barraca. Os índios de Bertioga, que tiveram como hóspede o alemão Hans Staden, são os que ostentam os mais modernos smartphones. As roupas da festa do Império do Divino de Bom Jesus dos Perdões, com seu vermelho berrante e seus bordados ingênuos, trazem a chave da tarde para o visitante.

Os personagens são saídos de um mundo de gentileza e solicitude. Dona Ana Gonçalves, 79 anos, vem com suas bonecas de pano direto de Avaré. Começou a fazê-las após uma enchente levar tudo que tinha. Tina Lemos vem de São José dos Campos com suas figuras de argila, que aprendeu a fazer enquanto o pai pescava, às margens do rio Paraíba do Sul.

Já o luthier Mauricio Zanoni está em casa no parque Edmundo Zanoni. Os sobrenomes comuns não são mera coincidência. “Edmundo era meu avô. Ele cuidava muito disto aqui, vinha plantar, arrancar mato. Gostava tanto que acabaram dando o nome dele ao parque”, diz o fabricante de instrumentos musicais, dedilhando uma cigar box feita de caixa de charutos e cabo de machado, orgulhoso da viola que fez e que, testada em show por Fernando & Sorocaba, acabou autografada pelos ídolos.

Dança cigana no pavilhão étnico foi uma das atrações artísticas
Dança cigana no pavilhão étnico foi uma das atrações artísticas

A inclusão das benzedeiras na festa, como a dona Dirce dos Remedinhos, amplia esse espectro de saberes e afetos que margeia o Revelando São Paulo. Segundo explicou Carina Bentlin, de Cosmópolis, ao Jornal dos Romeiros, a mágica do acolhimento é que realiza o milagre da cura. “É sabido que, em muitas comunidades carentes e distantes, a benzedeira do bairro tinha, além da função da reza e da fé, também a função social; era onde se concentravam as pessoas para buscar soluções para suas angústias físicas, mentais e espirituais; enfim, era o médico da comunidade”.

Arroz vermelho cultivado em casa, doce de abóbora feito no tacho, geleia de pinga, o virado de ervilha de Atibaia: o que se come aqui ou se leva daqui para casa é raro, não tem nos supermercados. Há algo de contraditório nesse mundo antiindustrial, com trilha sonora de moda de viola, catiras e congos, que sobrevive dentro de um estado de ambição locomotiva? Provavelmente, mas são faces da mesma moeda, um mantém o outro vivo. “Não se trata de negar o progresso pura e simplesmente, mas de repensarmos o ritmo e a direção do que estamos fazendo e alimentando”, diz Toninho Macedo, diretor da organização social Abaçaí Cultura e Arte.

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