Músico baiano se defende das críticas que vem recebendo por ter participado de uma propaganda comercial da Coca-Cola. Se fosse outro artista, essa polêmica toda faria algum sentido?

Tom Zé é de uma simplicidade ímpar. Se um dia qualquer um de nós cruzarmos com ele no Cambuci, nos Jardins, no centro de São Paulo ou em qualquer lugar desse país, e falar “qualquer bobagem”, tenha certeza de que vai ser retribuído com uma generosa atenção. Então é absoluta verdade que o cantor e compositor baiano de Irará está realmente preocupado com a repercussão que as pessoas estão dando à sua participação no comercial da multinacional Coca-Cola, numa propaganda sobre a Copa de 2014 no Brasil. Na madrugada de sexta, 8 de março, às 6h22, Tom Zé escreveu em seu Facebook:

SOBRE O ANÚNCIO DA COCA-COLA

Pois é, pessoal, estou preocupado.
Eu dou importância à opinião de vocês. Essa alegria sempre me acompanhou.
Quando o anúncio saiu na tv, imaginei que até as opiniões contrárias eram uma espécie de comemoração por eu aparecer com status de locutor de uma propaganda grande. Mas agora, quando perco o sono por causa do assunto… não, agora eu estou preocupado!
O apoio de vocês sempre foi uma base de sustento. Será que uma alegria nascida do privilégio de até hoje, aos 76, ter vivido dessa profissão de músico e cantor, me fez pensar que eu poderia afrontar essa sustentação?
É curioso que quando fui consultado sobre o anúncio nem pensei nessa probabilidade. No ano passado meu disco fora patrocinado pela Natura e como eu nunca tinha recebido patrocínio desse tipo – nem de nenhum outro – , cara, eu me senti como um artista levado em conta!
Para profissionais de meu tipo as gravadoras são agora inalcançáveis. A Trama, de João Marcello Bôscoli, me deu grande apoio nos anos 90 e até Estudando o Pagode, em 2004. Mas em Danç-Êh-Sá”, já dividimos as responsabilidades. Em 2008 Estudando a bossa foi muito ajudado pela Biscoito Fino; Agradeço, mas ficou difícil continuar lá. No ano passado o apoio da Natura me deu tanta confianca pessoal que ousei fazer o Tropicália Lixo Lógico.
No lançamento de Danç-Êh-Sá, em 2005, o resultado foi de extremos. A gravadora francesa teve um ódio tão grande do disco que quase perco até a amizade de Henri Laurence, que lá me lançava pela Sony. Nos E.U.A. houve comentários apaixonados na crítica, mas Yale Evelev recusou o disco na Luaka Bop. Logo a seguir a mesma Luaka Bop me respondeu com entusiasmo ao Estudando a bossa de 2008 e depois lançou o super set box de vinis com os 3 Estudando…
E o … Lixo Lógico recuperou também a amizade de Henri Laurence.
Toda essa dança de lançamentos e esse céu-e-inferno com os editores-lançadores é própria desse setor onde não devo nem quero relaxar o arco-tenso-da-ousadia. Mas nos dias atuais vivemos a era da internet e a venda de disco passou a ter um peso insignificante. Já o papel desses lançamentos, em termos de divulgação, é muito eficiente.
* * *
Voltemos ao presente. Atualmente sinto paixão pela retomada do projeto dos instrumentos experimentais de 1972. Com a eficiente colaboração do engenheiro Marcelo Blanck, começamos a desenvolver alguma tecnologia, mas com recursos parcos, insuficientes. Os resultados estão nos animando muito. Aí entrou o anúncio da Coca-Cola que, mesmo sem ela saber, patrocinaria boa parte da pesquisa.
Será que o uso dos recurss obtidos com o anúncio muda a avaliação de vocês?

O desabafo foi o suficiente para que jornalistas, produtores culturais e músicos viessem ao socorro de um dos ícones da Tropicália. Tom Zé (pediu e) começou a receber os afagos de seu público. A maioria dos quase 800 comentários do post acima misturava compreensão, solidariedade e até contraataque à patrulha ideológica que teria sofrido o cantor e compositor baiano. Apenas para citar um, Makely Ka, músico, compositor e membro da Cooperativa de Música (Comum) de Belo Horizonte e da executiva do Fórum Nacional de Música, escreveu na segunda-feira, dia 11:

Acho louvável o Tom Zé abrir essa discussão de forma tão transparente e generosa. É questionável um artista emprestar sua imagem e sua música para algumas marcas. Principalmente fabricantes de bebidas alcóolicas e cigarros. Acho desleal porque é uma publicidade voltada para adolescentes que ainda não formaram opinião, estão suscetíveis ao impacto publicitário e podem definir ali, diante de uma campanha de marketing, um hábito que vai ter consequências desastrosas pelo resto de suas vidas. Eu não gostaria de contribuir para isso. Mas cada um sabe da sua consciência. 

Mais do que os prejuízos que causa à saúde (eu particularmente prefiro suco de fruta), pois salvo engano a água negra não provoca dependência química e não oferece risco às pessoas no trânsito, a resistência estaria no que ela representa, mais do que no seu misterioso conteúdo à base de xarope e coca.

Pois bem, apesar de símbolo máximo do imperialismo norte-americano, não acho que a Coca-cola seja diferente de outras multinacionais como a Sony, a Warner, a Universal ou a EMI, que representam em escala global esses mesmos valores. Essas multinacionais do entretenimento praticam crimes em todos os países que atuam, interferem no mercado através de pagamento de propina aos meios de comunicação (jabá), limitam a diversidade da música divulgada nesses meios e ferem constituições federais.

De outro lado ainda temos um sistema perverso de financiamento público, calcado no incentivo fiscal, que delega aos departamentos de marketing das empresas a decisão sobre o que deve ser ou não patrocinado com dinheiro público. Tudo isso gera uma situação muito instável. Basta dizer que todo artistas independente em atividade hoje depende das leis de incentivo e estão, portanto, ligados a um patrocinador, a uma empresa, com o aval do estado. Isso inclui a música, o cinema, o teatro, a dança e praticamente todas as demais manifestações artísticas. Em alguns casos a situação é ainda mais crônica. O cinema nacional por exemplo, que não possui uma estrutura industrial autônoma, depende quase que exclusivamente das leis de incentivo fiscal.

Então o dilema na música é basicamente esse, ou você está no esquema das grandes gravadoras com seus contratos leoninos e suas práticas criminosas, ou você está sujeito aos mecanismos da dedução fiscal.

Acho portanto que a opção do Tom Zé é uma escolha consciente da sua condição, do lugar que ocupa. Seria interessante inclusive se ele fizesse agora uma música sobre isso, uma espécie de contra-jingle. Acho interessante a possibilidade de usar o dinheiro da Coca-Cola para questionar o sistema que ela representa. Qual outro artista, além desse baiano de Irará, teria condições de fazer isso hoje?

Salve Tom Zé por nos fazer pensar!

Difícil dizer “desta água não beberei”, quando, no final das contas, há contas para pagar, todos estamos procurando meios de sobreviver num mundo onde os recursos são cada vez mais escassos e o Sol não está mais nascendo para todos. É certo que Tom Zé usa um truque de comparar o patrocínio que recebeu da companhia de cosméticos Natura, na qual se inscreveu num edital para promover um projeto musical que previa a isenção fiscal da Lei Rouanet, com um cachê publicitário da fabricante de refrigerantes Coca-Cola. Ambas as empresas estão, essencialmente, querendo formar uma imagem positiva para gerar uma simpatia ou empatia de seu público, e não há nada de mal nisso. Se o fazem isso por meio da arte, mas não só, faz parte das regras do jogo. Há grupos musicais que seguramente teriam dito um sonoro NÃO tanto à Natura quanto à Coca-Cola, mas tal atitude não os fazem melhores, nem piores que Tom Zé. Apenas são diferentes.

Pode-se cobrar do músico Tom Zé coerência com a arte, com sua história e com tudo o que pode representar esse patrocínio. Pode-se ainda por em dúvida se ele tinha (ou tem) dimensão do que representa a Copa do Mundo no Brasil, e de como ela tem sido implementada – nunca é demais lembrar que já vinha sendo criticada mesmo antes de saberem que o país um dia viria a sediá-la. Pode-se até perguntar por que o rebelde tropicalista não procurou outras formas de subsidiar suas criações, como por exemplo por meio do crowdfunding. Pode-se indagar se tal participação midiática não afronta parte de sua obra artística, na qual nunca faltaram críticas à “globarbarização”, ao FMI, miséria, às tragédias nacionais. Perguntar não ofende, dizem.

Em tempos de culto ao deus “mercado”, que nesse episódio em particular parece ter se convertido em demônio “mercado”, Tom Zé pecou por ser o que ele sempre foi, um artista que venceu às muitas adversidades da vida artística, como muitos de seus conterrâneos sertanejos que sobrevivem às secas mais terríveis do Nordeste. Não fosse a providencial ajuda do músico inglês David Byrne, que um dia lhe deu o merecido destaque mundial, que nessas bandas de cá já não davam tanta importância, o baiano de Irará nem estaria fazendo ponta num comercial da Coca-Cola. Como ele mesmo diz em seu desabafo: “Para profissionais de meu tipo as gravadoras são agora inalcançáveis.” Não só as gravadoras…

Uma última questão, que talvez ajude a refletir mais ponderamente sobre esse quiproquó: se fosse um Caetano Veloso ou Gilberto Gil, apenas para citar outros dois baianos tropicalistas, essa grita toda estaria ocorrendo?

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2 COMENTÁRIOS

  1. Diferente do que foi polemizado, não acho que a questão seja o Tom fazer ou não propaganda para a Coca-cola, o complicado é a mensagem que o video traz. na voz do tom zé, ouvimos sempre um canto de resistencia e lucidez, e, desta vez, na mensagem da propaganda, ha um “cala a boca” para pessimistas de plantao, no caso, le-se, pra quem esta resistindo aos processos de higienizacao da cidade do rio, de alta especulacao imobiliaria, de desmandos dos governos municipal e estadual em prol de todos (que se sentam nas mesas regadas a uisque com eles).
    quero destacar, que eh sempre bom saber que tom zé quer ainda nos ouvir. Nós sempre estivemos ouvindo ele…

  2. Marina, concordo com suas ponderações, e sabemos que há pessoas muito sérias resistindo a esse processo “em nome” da Copa ou das Olimpíadas, como se não pudéssemos, no mínimo, protestar com a forma autoritária com que esse processo está sendo conduzido. Mas, ao meu ver, Tom Zé entrou de ingênuo nessa História, acreditou que os tempos fossem outros – já passou a época em que Coca-Cola representava o imperialismo ianque a ser combatido, não acha?. E ao procurar seu público para desabafar e pedir a opinião dele, está querendo, minimamente, dizer isso.

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