até pouco tempo atrás, cleyde yáconis, que tem 84 anos, vinha de jordanésia para fazer teatro na capital dirigindo, ela mesma, seu fusquinha. como não tenho fotos do fusca da cleyde, seguem aí umas outras imagens, em caráter extraordinários, registradas pela sensacional olga vlahou durante a entrevista.


é da “carta capital” 493, de 30 de abril de 2008. ah, e para quem é cá de são paulo e não adere àquela generalização estúpida do “eu odeio teatro”, mas se assustou com o jabaquara, diz que a peça já reestreou, agora bem no centro-umbigo dos jardins-redomas paulistanos, no teatro renaissance. aaah, agora sim, né?

CONECTADA AO TABLADO
Aos 84 anos, a atriz Cleyde Yáconis mantém relação vital com o teatro

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Cleyde Yáconis entra no palco pela coxia. Destoante do cenário solene que a rodeia, está de jeans, camiseta e tamanquinho de salto. Diferente do teatro vazio na tarde de ensaio, está plenamente vivaz, participativa, atenta a tudo. “Quem é?”, pergunta, enquanto mira com a mão em concha acima dos olhos o repórter que tenta se fazer invisível numa cadeira lateral.

Yáconis tem hoje 84 anos, e é atriz desde 1950, quando estreou quase sem querer no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em que brilhava sua irmã mais velha, Cacilda Becker (1921-1969). Acaba de estrear a quarta peça seguida desde 2003, num movimento de entrega quase ininterrupta ao teatro.

Como tem sido regra nesses anos, vocaliza assuntos profundos e delicados em O Caminho para Meca, do sul-africano Athol Fugard. Desta vez, interpreta uma personagem real, a escultora sul-africana Helen Elizabeth Martins, no momento da decisão crucial de partir ou não para um asilo, após um incidente em que uma vela derrubada quase ateou fogo à casa onde vive solitária e cria suas peças de arte.

Ela desaparece pela coxia. Poucos minutos depois, volta, já com o figurino da personagem, ao palco onde se movimentam equipe técnica, a diretora Yara de Novaes e os outros dois atores, Lúcia Romano e Cacá Amaral. Senta-se numa cadeira ao fundo da cena, cruza as mãos no colo, abaixa a cabeça, fecha os olhos. Uma semana mais tarde, ela chegará elogiando a pontualidade do repórter e explicará o ritual, em entrevista naquele mesmo palco, naquela mesma cadeira: “Eu me concentro e rezo. Rezo muito, sou rezadeira”.

Ela sublinha que nos trabalhos recentes tem encarnado mulheres intensas (toxicômanas, “loucas”, suicidas), todas acima dos 70 anos. “Nesta de agora, há a discussão da idade, da morte, do fim da vida, num momento terrível que o teatro sofre, de grandes perdas. Faço a Helen, mas penso no Paulo”, afirma, os olhos úmidos de quase-lágrimas. Refere-se a Paulo Autran (1922-2007), colega desde o TBC.

Helen, a personagem, titubeia entre o movimento e a paralisia, entre manter as velas acesas e deixá-las se apagarem pouco a pouco. Mas o que há de Autran em Helen? “Ele partiu de uma forma maravilhosa. Helen diz que, se conseguisse superar as dificuldades, ela seria um mestre. Paulo foi um mestre, ele atingiu sua Meca. É invejável a partida dele.”

Na tarde de ensaio, Cleyde Yáconis repete uma das cenas finais até perto das cinco horas da tarde, diz que não se sente muito bem e pede uma pausa para o lanche, uma salada de frutas. Todos ao redor tratam-na com reverência e cuidados mil, mas sem hierarquias ou submissões.

Recém-inagurado, o Teatro Cosipa Cultura fica fora do circuito central paulistano, no bairro do Jabaquara, e às sextas-feiras inicia sessão no horário pouco usual das sete e meia da noite. Poucos ousariam tais excentricidades num ambiente algo estrangulado (“espetáculo só de sexta e sábado é preocupante, quando comecei fazíamos dez sessões por semana”). Cleyde Yáconis é dos que ousam. Mais de uma vez, manifesta preocupação com os dados da bilheteria da noite que chega. “Morro de pavor, tenho pânico. Dez minutos antes de começar o espetáculo é uma coisa inexplicável, um pânico.”

A diretora confirma a fala da atriz, ao descrevê-la: “Ela tem uma relação vital, passional, com o teatro. É a primeira a decorar o texto, põe os outros no chinelo. Chega a ser engraçado como fica aflita, tensa e nervosa na hora de entrar em cena. É até juvenil, nesse sentido”.

Autoproclamada “operária”, ela também parece viver à procura incansável de sua Meca pessoal. Se mantiver a rotina que cultiva hoje, deverá permanecer sempre no palco, como fizeram Autran e, de outra maneira, Cacilda. A irmã morreu aos 48 anos, em decorrência de um derrame sofrido no palco, enquanto encenava Esperando Godot. E ainda vive, na saudade (“até hoje sonho com Cacilda”) e em fotos que ocupam várias paredes na casa da Cleyde Yáconis, com outras da mãe e da irmã Dirce, família que ela define como um autêntico e amoroso matriarcado.

Mas não promete fidelidade eterna ao teatro. “Na hora em que parar de fazer, o que vou ter é um asilo de cachorros”, promete, entre um e outro elogio aos bichos e às plantas de que cuida com paixão.

Tem três poodles, Bel, Morena e Pipoca, filhas de Felipe, que morreu em janeiro, aos 13 anos. “Eu tinha perdido minha cadelinha, que se chamava Flor, Dona Flor. Não queria macho, mas ele me conquistou.” Amorosa, mostra a foto do Felipe, faz gracejos, beija-a repetidas vezes.

“Fico abalada quando maltratam bicho, criança e velho. É uma coisa que me faz um mal, essa dependência de criança, velho e bicho”, afirma, como a explicar a própria auto-suficiência que porta como “um defeito”, uma “autodefesa”. “É que a levo um pouco ao extremo. Recuso ajuda para carregar sacola.” Hoje conta com um motorista, mas até há pouco viajava de carro desde Jordanésia (a 40 quilômetros de São Paulo) para cada sessão, e vencia a Dutra ao volante quando de temporadas cariocas.

Em defesa da auto-suficiência, formula um discurso contumaz contra cigarros, drogas, álcool. “Não sei que vantagem tem cheirar para produzir. Você tem que criar com seu sangue, seus nervos. ‘Ah, dá uma fumadinha de maconha que você viaja’, e eu lá quero? Quero eu mesma voar, mas com a minha asa, a minha, a minha.”

Cultiva com voracidade a magreza e o peso mantido nos últimos 60 anos. “Gente com apetite e um bom prato do meu lado me deixa irritada”, diz, às gargalhadas. “Comer gordura, carne, sangue (faz careta de nojo)? Gosto de massa, fruta.”


Faz auto-ironia ao afirmar que é por ser econômica em tudo que se conserva com tamanha vivacidade. Faz ginástica, alongamento, musculação. “A energia diminui, sim, com a idade. Você se cansa mais rapidamente. Ganha dores misteriosas, no joelho, nas costas. Mas, se souber superar… As coisas que você perde são materiais, e ganha muitas outras, espirituais.” Quais? “Perseverança. Complacência. Paciência. Hoje, se você chegasse atrasado, eu não o receberia mal-humorada. Há 30 anos, sim. Ou nem o receberia”, explica, entre ameaçadora e brincalhona.

Ao se transportar ao dilema da personagem, de abandonar ou não a própria casa, constrói um elogio apaixonado à rotina, a mesma que a incita a voltar noite após noite ao teatro. “Para mim seria a morte, eu preciso da minha casa. Acho a rotina maravilhosa. Gente que muda, muda, muda tem a rotina de mudar, mudar, mudar. O problema não é da rotina. É seu, da sua falta de capacidade de saborear as mesmas coisas.”

Não é que ela não saiba apreciar os sobressaltos incrustados dentro da rotina. “No teatro, a platéia é diferente a cada dia. O público não faz idéia o quanto a gente precisa dele. Uma pessoa azeda pode azedar tudo. O azedo estraga a platéia, contamina. Se vem aquele público quente, amoroso, de coração aberto, você reconhece na hora, joga com ele. Quando coincide um público sensível e um espetáculo sensível, acontece o fenômeno.”

Não acontece todo dia, admite. Mas a procura de mais essa Meca a mantém de barriga gelada e de olhos brilhantes pelo teatro. Ao encerrar a entrevista em cravada meia hora, desce do palco pela frente, pela escadinha que vai dar na platéia. E seduz a atenção do repórter mais uma vez: “Antigamente eu desceria com facilidade, agora tenho de me apoiar na parede. Algum drama nisso?” Nenhum, pensa o repórter, grato por aprender com ela como pode ser bom ter 84 anos. O público e a crítica têm aplaudido com gosto O Caminho para Meca. Mas o que a platéia reserva a ela nessa noite permanecerá, até a hora H, um completo mistério.

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