quando vai alta a madrugada, chico buarque continua sendo (ou não sendo) a mais completa tradução da alma feminina dentro da música (&poesia) popular brasileira. no novo álbum “carioca” (biscoito fino, 2006), ali estão elas outra vez: “dura na queda”, “porque era ela, porque era eu”, “as atrizes”, “ela faz cinema”, “renata maria”, para ficar só nas nominais…

[não sendo menina, eu não sei se essa tal mais completa tradução dessa tal alma feminina existe à vera (eles se amaram de qualquer maneira, à vera?), nem a quantas ela anda. já provoquei as mulheres presentes no recinto a se manifestaram, várias o fizeram, às vezes mui espirituosamente (ouvide “mulheres de antenas”), quase sempre de modo ainda difuso, temeroso. como eu (quase) não sou menina, ainda não sei a quantas anda essa loa – isso é lá com são francisco & suas (não-)representadas.]

[volto então ao papo de menino (menino!, você viu a bunda do ronaldinho, os pés do ronaldo, as carícias trocadas entre lula e ronaldão, as coxas depiladas dos ronald(inh)ões? te contei, não?).]

a sonda à alma feminina ronda suprema em “carioca”, mas um outro aspecto concorre com ela, em ímpeto aparentemente crescente. é o subúrbio, que cresce e aparece e reaparece com obstinação cíclica na lista de canções do disco. ora, direis, o “suburbano coração” sempre esteve morando dentro do (quase) aristocrático chico “pedro pedreiro” buarque de hollanda.

[e “gente humilde”? e “feijoada completa”? e “pivete”? e “o meu guri”? fica o dito e o redito por não dito?]

sim, esteve, mas agora soa diferente, atiçado, incomodado. o novo esforço de aproximação, ainda que tonto-zonzo, belisca outras beiradas – e enternece pelo esforço (quase) sobre-humano com que parece ser executado.

o subúrbio pulsa na constituição oligárquica de “carioca” – oligárquica, ainda e sempre, porque é de chico, porque é da mpb dominante, porque é buarque de hollanda, porque acaricia harmonias & melodias de modo crescentemente elitista, porque é financiada pela biscoito fino da banqueira amorosa kati almeida braga. é oligárquica porque investiga a decadência bonita do rio de janeiro, essa pérola brasileira autocentrada (alô, são paulo!, alô, morro dois irmãos!) incrustrada no umbigo excêntrico de uma infinidade de (quase) lugares-nenhuns brasileiros chamados cabrobó, oiapoque, guarapuava, chuí, campina grande, marabá, maringá, morrinhos, cachoeiro do itapemirim, (……..complete você mesmo/a com o lugarejo-vilarejo que mais lhe aprouver……..).

pois sim, chico segue querendo mirar umbilicalmente o rio de janeiro, mas aí vem o “algo mais”: “carioca” mira dentro do rio de chico a cidade de deus – ou melhor, a maré e vigário geral, que são as favelas citadas na faixa de abertura, “subúrbio”, citada pelo autor no dvd “desconstrução“, que acompanha a versão mais chic(a) do cd, como a última música a ser composta para integrar “carioca”.

pois é, chic(o) pode nunca ter mostrado sua arte numa favela, de acordo com a provocação de seu jorge. mas que vem tateando timidamente uma tentativa de aproximação, ah, isso vem. é lá do jeitinho dele, mas os exemplos são caudalosos.

a
“súburbio”, bastante tristonha, chama à participação não mais a galeria doirada de astros distraídos da mpb, como fazia “paratodos”, no álbum homônimo, de 1993, mas sim outra patota, a patota que não é de ipanema. “fala, penha/ fala, irajá/ fala, olaria/ fala, acari, vigário geral/ fala, piedade/ (…) fala, maré/ fala, madureira/ fala, pavuna/ fala, inhaúma, cordovil, pilares” – fala, periferia!, pede mui generosamente o narrador-autor. um olho segue mirando a praia e o morro dois irmãos, mas o outro já está de olho na rocinha, na cidade de deus, na favela-inferno-céu.

“subúrbio” avança mais na tentativa gentil de aproximação. filho de mama bossa nova e dos papas tom jobim e joão gilberto, chico agora profere em sua música formal, todos de uma vez só, os nomes-rocambole do funk, do rock, do forró, do pagode, do reggae, do hip-hop – “fala na língua do rap”, fala, periferia! [esquecido, ali naquele rol, resta o “brega” de odair josé, mas é sabido que ele & os seus também já vêm vindo – pois chico até não regravou recentemente “minha história” (do álbum “construção”, 1971) em trio com zezé di camargo & luciano?]

conservando em grau elevado o já duradouro desencanto pós-“vai passar” (do álbum “chico buarque”, 1984), “subúrbio” ainda pergunta “que futuro tem/ aquela gente toda” (que futuro tem chico buarque?, que futuro temos você e eu?), enquanto faz ode ao futuro: em meio a tantos chamados à fala (dos outros), “subúrbio” também fala “foda”: “é pau, é pedra/ é fim de linha/ é lenha, é fogo, é foda”. chico é foda, buarque agora é foda.

b
“outros sonhos” recupera a atmosfera de sonhos evanescentes de anos recentes, mas troca a prumada alucinatória-alienista-autista do disco “as cidades” (1998) e da trilogia de romances dos anos 90-2000 por outra menos fugidia, mais realista. o que outro dia era “budapeste” (2003) hoje lembra mais “pois eu sonhei contigo e caí da cama/ ai, amor, não briga/ ai, não me castiga/ ai, diz que me ama/ e eu não sonho mais” (de “não sonho mais”, do álbum “vida”, 1980). o que andava quase só “estorvo” (1991) agora faz contato delicado (e adulto) com o juvenil-sério-divertido rapaz de “agora falando sério” (do álbum “chico buarque de hollanda nº 4”, 1970).

no sonho (quase) real de agora, cabe e se infla o subúrbio, “outros sonhos”: “sonhei que ao meio-dia/ havia intenso luar/ e o povo se embevecia/ se empetecava joão/ se emperiquitava maria” (empetecava?, emperiquitava?, bom-dia, perifeira!).

no sonho (quase) realista de agora, “de mão em mão o ladrão/ relógios distribuía/ e a polícia já não batia” – não é de se ouvir ali atrás desses versos o brado kitsch-chique (alô, caetano-belchior-odair!), ultra-revolucionário de raul seixas, 29 anos atrás, n”o dia em que a terra parou” (“e o guarda não saiu para prender/ pois sabia que o ladrão também não tava lá/ e o ladrão não saiu para roubar/ pois sabia que não ia ter onde gastar”)?

no sonho (quase) hiper-realista de agora, “maconha só se comprava na tabacaria/ drogas na drogaria” – em prol sutil da legalização dos venenos que convertem subúrbio em barbárie, chico agora até fala maconha, é foda ou não é?

c
em “dura na queda”, apresentada com maior gana e espalhafato por elza soares (no álbum “do cóccix até o pescoço”, 2002), eis o subúrbio da caixa craniana se manifestando: mesmo que dura(o) na queda, ela(e) “já apanhou à beça”, “perdeu o emprego“, “custa a cair em si”, “largou família/ bebeu veneno/ e vai morrer de rir”. ainda assim, “a vida é bela”, ah, a vida, como é bela ela, mesmo duma janela numa favela (alô, “carolina”!, alô, 1968!, o tempo passou na janela, e até a carolina-dura-na-queda já viu!).

d
em “as atrizes”, o poeta petisca (de leve e rubro de vergonha) a vulgaridade, o rala-bucho, a boquinha da garrafa, as preparadas, as popozudas: “peitinhos assaz/ bundinhas assim”… não demora muito agora, todas de bundinha de fora…

e
industrial, global, (quase) hollywoodiana, “ela faz cinema” flagra o poeta (sempre) cabreiro, desconfiado, sexista. mas eis que roberto carlos abre o ferrolho do portão da bossa velha (o cachorro lhe sorri latindo) e o romantismo assoma na cândida confissão de que “eu não sei/ se ela sabe o que fez/ quando fez o meu peito/ cantar outra vez”. romântico, escapista, robertocarlista, realista, outros sonhos…

f
um odair josé embebido de seu jorge freqüenta o “olhar mendigo de “bolero blues”, parceria com o reverente e emocionado jorge helder (ou-vide dvd), faixa que condensa em si a discrição, a fragilidade, o minimalismo e a voz baixinha do chico de “carioca”, entristecendo até mesmo o romantismo tristíssimo robertocarlistas, sob carradas da mais sincera & bela poesia: “quando ela já não mais garota/ der a meia-volta/ claro que eu não vou estar mais nem aí”. o homem velho também é um suburbano, e o velho francisco nunca comentou com tamanho desassombro & bom humor (negro) o francisco (quase) velho. o subúrbio é foda, lá não moram meias palavras.

g
e há, por último e mais surpreendente, a nova versão para “ode aos ratos”, já apresentada no musical “cambaio” (2001), de parceria com edu lobo. enriquecida pelas programações eletrônicas (alô, raves da periferia!) de marcos suzano, “ode aos ratos” exala o nacionalismo convicto de chico e dos baby-boomers de sua classe (alô, edu, sérgio ricardo, dori caymmi, joyce, mpb 4, quarteto em cy, outros tantos), zombando indiretamente do fato de que gerúndio em português todo mundo acha cafona e tem ataque de chilique ao ouvir, mas gerúndio em inglês deixa os lobos bobos babando de consumismo obsessivo-compulsivo: “parking”, “living”, “shopping”, a canção vai lançando iscas em formas de miolinhos de pão, e tu respondes: “eu vou estar prestigiando a sua genialidade, ó, nobre senhor buarque da holanda”.

no instante de quebra do chico século xxi, “ode aos ratos” integra e atualiza a presença de “baioque” (interpretada por maria bethânia em 1972, na trilha do filme “quando o carnaval chegar” – já chegou, será?, alô, nara leão?). é que a (des)ode traz o rap popular pós-brasileiro ao convívio da embolada popular nordestina, a bossa nova (im)popular transnacionalista e a aristocracia impopular brasileira. “ra-rato, ra-rato, ra-rato”, repete numa delícia de scratch vocal o timbre de chico, por aqueles breves instantes robotizado pelas engenhocas eletrônicas da transmodernidade. chico agora usa programação eletrônica, pro-tools, é foda. o subúrbio aplaude, comovido.

@

pois então. eis aí, em tese, o sub-subúrbio de chico buarque – “sub” porque não é o subúrbio em si (são suas bordas, suas franjas), “sub” porque um aristocrata não entende à toda o subúrbio-favela em que deu de nascer e viver mergulhado [o brasil (ainda) é uma favela, pois não?], a não ser que penetre com profundidade dentro dele(a) – e de si, favelado (é foda).

[o subúrbio É a mansão blindada?]

enquanto ensaia mergulhar, um aristocrata que ainda segue vivendo e aprendendo a nadar fala baixinho, fala educada e gentilmente – e é bem assim que chico buarque cochicha, o tempo todo, no (samba&)choro assoprado de “carioca”, exatos 2006.

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