“carta capital” nº 384, 15 de março de 2006. alô, chico buarque, dori caymmi, gal costa, jorge ben, odair josé, ana carolina, mano brown, negra li, rappin’ hood, marcelo d2, deize tigrona e mv bill. alô, seu jorge!

O MENDIGO É O REI
Dos 20 aos 30 anos, Seu Jorge fez a louca travessia da vida de morador de rua para a condição de ator de Hollywood

Por Pedro Alexandre Sanches

“Nego não sabe o que é ter que fazer cocô e xixi na rua. Não sabe o que é dormir num papelão, dois ou três garotos cheios de cola puxarem seu cobertor no meio da noite”, diz o primo pobre, que virou morador de rua aos 20 e poucos anos.

“Em Hollywood, cada um tem o seu trailer. Eu tinha o meu. Você não está entendendo, é coisa legal mesmo, com cama, tevê, vídeo, geladeira, fogão, uma pessoa para fazer rango, outra para fazer massagem”, retruca o primo rico, fidalgo que com 30 e poucos anos se tornou ator conhecido mundialmente.

Parece roteiro cinematográfico, mas é a “vida real”: no berço esplêndido de contrastes que é o Brasil de 2006, o primo rico e o primo pobre são a mesma pessoa. Seu Jorge, hoje com 35 anos, fez em poucos anos a louca travessia das ruas cariocas da Vila Isabel para os tapetes vermelhos de Hollywood. Foi o que aconteceu na estréia de A Vida Marinha com Steve Zissou, do cultuado Wes Anderson, em que ele secundou atores como Bill Murray e Anjelica Huston.

“Meu primeiro tapete vermelho foi engraçado, foi um susto. Horrível, cara, horrível. Passei batido, não falei nada, fiquei sem graça. Parece que é um desfile de moda, passa um, passa outro, passa outro… Aquele montão de câmeras disparando. Eu tentando rir, sem graça, estou rindo de quê?, qual motivo para rir?”, conta o primo rico. Entre gargalhadas, reproduz, no estúdio de sua casa/produtora na Vila Madalena, em São Paulo, o desfile e os sorrisos forçados daquela noite de 2004 em Nova York.

Esse improvável personagem tem compromissos de sobra agendados para 2006. Fará turnês nos Estados Unidos, inclusive alguns shows acompanhando a cantora cabo-verdense Cesaria Evora. Em São Paulo, deve protagonizar com os Racionais MC’s uma “noite de música negra brasileira”. Na indústria de Hollywood, fará papéis em duas novas produções, uma filmada na Irlanda, outra, na Venezuela.

E assiste, neste exato momento, ao lançamento brasileiro do CD The Life Aquatic – Studio Sessions Featuring Seu Jorge, editado lá fora no ano passado, pelo selo Hollywood Records. Em geral arredios às versões amalucadas em português que ele compôs para clássicos pop art de David Bowie, críticos conterrâneos já hostilizam o disco. Ignoram ou fazem assim vista grossa para o fato de que versos como eu já quase morri de fome,/ mas eu hoje estou bem (em Ziggy Stardust) expressam a própria história real do versionista aloprado.

Embora já tenha filmado com a Disney na Cinecittà italiana, a única empresa de que Seu Jorge é efetivamente contratado chama-se Cafuné – é sua produtora independente, instalada displicentemente no coração da Vila Madalena. “Eu sou Cafuné. O cara liga aqui e contrata, ‘alô, Cafuné, aqui é a Disney’.”

O riso forçado dos tapetes vermelhos se alterna com lágrimas represadas dentro dos olhos, quando o primo pobre pula na frente do outro e conta como é que foi parar na rua, quando tinha 20 anos.

“Tiraram a metade do rosto do meu irmão, quer que eu diga a verdade? Meu irmão Vitório tomou três tiros de escopeta, ficou sem a metade do rosto, ficou no chão, um garoto de 16 anos, que era um grande relojoeiro. Foi chacina, tem todo dia, umas são divulgadas e as outras, não. Não dava mais para ficar no Gogó da Ema (local onde nasceu, na Baixada Fluminense).”

A vivência das ruas é ponto comum entre artistas tão díspares como, por exemplo, Belchior, Odair José e o co-autor do clássico Chão de Estrelas, Orestes Barbosa. A novidade no caso de Seu Jorge é que, se você perguntar, ele não teme contar a história passada, em detalhes e sem censuras.

É assim que revela, por exemplo, que o episódio desagregou a família: “A minha mãe, cara, era triste. Ela também, nesse período, morou oito meses no banheiro da Central do Brasil. Meu irmão menor, com 14 anos, foi trabalhar de Globinho, entregando jornal”.

Filho mais velho, ele acabou se acercando de um grupo de artistas da Uerj, onde passou a “morar”. “O anfiteatro era uma ruína. Cheguei para o (ator e diretor) Antônio Pedro e falei ‘sou morador de rua, não tenho onde morar’, ele me deu uma carteirinha para eu poder freqüentar como se fosse segurança de lá. Eu estava lá todo maltrapilho, sujo, fazendo montagem de luz, meu pai apareceu para conversar. Nossa, sofri com a chamada dele: ‘Sua mãe está morando na rua, rapá, está abandonada e você aí fazendo nada, teu irmão pequeno, de 14 anos, é que vai dar dinheiro para alugar uma casa’. E eu, ‘paciência, vou me ajeitar’. Eu não tinha casa, não tinha nem documento.”

Foi encontrando na música uma primeira âncora: “Eu me destacava porque me enxergavam não como um problema, um mendigo, mas como o maluco do violão”. Em 1998, havia se tornado cantor do grupo Farofa Carioca, que teve trajetória efêmera no pop nacional. Em 2001, estreou como cantor e compositor-solo, com o CD independente Samba Esporte Fino.

Mas foi na favela de Cidade de Deus que encontrou a ponte de travessia definitiva para o admirável mundo novo. O diretor Fernando Meirelles escalou-o para um dos papéis centrais do filme Cidade de Deus (2002), com o qual a imagem de Seu Jorge atraiu os olhares de gente de Hollywood.

“O dia em que Bill Murray ganhou o Globo de Ouro por Lost in Translation foi justamente o mesmo em que Cidade de Deus foi indicado a quatro Oscars. Cheguei 5h30 da manhã para filmar, vi o trailer do Bill todo decorado com balões dourados, parabéns e o caramba. Fomos almoçar, voltei para meu trailer, estava lá todo cheio de balão também. Neguinho ficou fazendo festa, ‘ê, seu filme, quatro Oscars!'”, lembra.

A montanha de documentos e seguros de vida que ele precisa apresentar a cada vez que integra um elenco em Hollywood contrasta com o passado recente: “Eu não tinha documento, era indigente, se tivesse morrido em alguma situação não iam achar meu corpo. Dos 20 aos 27 anos, eu nunca votei. Ignorância mesmo da minha parte”.

Radicado grande parte do tempo em São Paulo, diz desconhecer a política de rampinhas antimendigos estabelecida pela gestão José Serra. Informado, posiciona-se. “Não sei o que vai acontecer, não posso dizer o que essa gente tem em mente. Mas eles correm o risco de, por exemplo, essa gente ir invadir a Oscar Freire”, ri, pronunciando como “Óscar” o nome da rua quase hollywoodiana da região paulistana chique dos Jardins.

Pai de três filhas (uma delas ainda na barriga da esposa), ele não perde da memória aquela que acha a pior de todas as cenas da vida anterior. “O que mais mexe comigo é o nascimento de pessoas na rua. No Rio nasce muita, vi muita criança pequena morrendo. Isso é de cortar”, lamenta, suprimindo da frase o termo “coração”.

Cidadão do mundo, costuma jantar com o amigo Bill Murray no restaurante nova-iorquino Nobu, de Robert De Niro. “É um japonês caríssimo, muito caro aquele rango lá. A Mariana (sua mulher) é quem gosta, eu não ligo. Eu gosto de arroz e feijão, em qualquer churrascaria eu entro. Aí é o Bill que segura aquela onda no cartão.”

Mas, Seu Jorge, você se sente bem lá dentro? Na resposta, o deslumbre vem apimentado com um senso de realidade social que talvez seja um dos diferenciais do tipo novo de personagem que Seu Jorge representa: “Me sinto bem, acabei com esses complexos. Eu tinha muito, né? Na favela o complexo de inferioridade é muito forte, porque você cresce aprendendo que é feio, preto, sem educação. Depois, para se livrar disso… Muita coisa tem que acontecer de bom para você conseguir falar ‘ah, não é nada disso que eles falavam'”.

É daí também que nasce uma de suas frases-mote, de que trabalha “para não ter patrão, não ser patrão e não ter que andar de ônibus”. O preconceito, e não o deslumbre, é a razão que leva o primo pobre a querer distância do ponto de ônibus: “Tem que ser preto para saber. Ou nordestino, homossexual, mãe solteira… Tem que fazer parte de alguma minoria para entender como essa minoria se transforma em maioria sofrendo. O que me chateia é ainda continuar esse discurso de que o preconceito é paranóia que está na cabeça do negro. Como, se fomos nós que fomos para o tronco?”.

Ironicamente, situações constrangedoras também o aguardam no ambiente bem mais sofisticado dos aeroportos, outro de seus atuais “instrumentos de trabalho”. “Somos cinco na banda, todos brasileiros. O cara nos EUA vê aquele montão de crioulo, de bagagem… O polícia encosta, acha esquisito, pára para dar dura, chama o cachorro. O sargento chama o Rintintim, o Rintintim cheira a coisa toda. É um desgaste.”

Ele explicita o problema: “É preconceito contra pobre, contra o Terceiro Mundo. Se você tem uma cara de quem não comeu bem, você é problema, independente de ter superado o problema”.

Mas mostra conhecer soluções, também: “Quando fizeram estupidez comigo na Inglaterra, falei que só voltava à la João Gilberto. Vocês não são Primeiro Mundo, o que é isso? Só volto na condição de João Gilberto, o mito, o mitão. Aí eles se desculparam, armaram tudo, e eu voltei”.

Os mitos não parecem intimidar Seu Jorge. Ele diz amar e colecionar Chico Buarque, mas não economiza crítica e ironia: “Nunca ouvi dizer que Chico já tenha botado o pé numa favela para fazer concerto nem filantropia. A única vez que ouvi falar que ele foi nalguma comunidade foi na Mangueira, que é o palácio do samba, ar condicionado, manobrista na porta, assessoria de um rei. Está certo, tem que tirar onda, ocupar ali a cadeira da MPB, que, dentro da sua equivalência, parece ser maior que o samba”.

Seu Jorge é primo do sambista Dudu Nobre e diz que sofre para explicar no exterior que música brasileira não é só bossa nova e que sua raiz vem de Roberto Ribeiro e Jovelina Pérola Negra, não de Tom Jobim e Caetano Veloso.

De Chico, pula para outro extremo: “É como diz o Mano Brown, a gente pode sair da favela, mas a favela não sai da gente. Não sai. Eu vim da outra divisão, não rebolei a bunda no Faustão. Não vou conseguir fazer papel de bom moço na Globo. Não sou católico, sou da macumba. Não vou conseguir fazer o Marcelo Anthony. Tenho olheira mesmo, não vou disfarçar. Não dá para ficar na Hebe, (imita) ‘gracinha’. Eu não vou”.

Não vai, mas e os papéis de bandido que o esperam em Hollywood, não são ainda estereotipados? “Acho que não. Não são todos os atores de lá que poderiam fazer o mesmo que vou fazer. Eles poderiam colocar o Denzel Washington, mas ia repetir, né?”

“Não quero ser aquele cara do símbolo, da camisa do Ronaldinho, do pandeiro que roda, da mulher que tem um cavadão, da banana. Tem banana em todo lugar, espera aí. Eu quero muito, muito participar. Não corro da minha responsabilidade. Sociedade participativa. Não vou desistir do sonho de ver meu país integrado”, discursa.

Entusiasta das analogias desde que, morador de rua, ouvia papos filosóficos nos botecos da Vila Isabel e se pegava pensando “mas isso é meio parecido na favela também!”, ele enfrenta uma última analogia proposta por CartaCapital. Após longo silêncio, responde que paralelos traçaria entre a vida nas ruas e em Hollywood:

“Em Hollywood, você espera que vá ser assistido, por todo mundo. Na rua você não é assistido por ninguém. Não tem assistência. Ao mesmo tempo, na rua, está todo mundo assistindo aquilo que se passa. E no cinema as pessoas não têm olhos para o que é feito por dentro. Fica muito raso”.

Seria automático concluir que é melhor e mais fácil estar em Hollywood do que na rua? “Olha, é muito melhor, com certeza, estar em Hollywood. Mas muito fácil não é, não. Principalmente se você veio da rua, né? Aí é que não é fácil mesmo”, responde o primo pobre-e-rico que oscila entre várias montanhas-russas, mas se destaca na multidão por levar consigo a consciência antiga e o país natal, onde quer que vá.

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