quarta-feira de cinzas no país, aproveito para tirar da gaveta um assunto que fui deixando à parte ao longo dos últimos meses, enquanto não conseguia terminar de ler “a sociedade pós-moralista” (editora manole), do filósofo francês gilles lipovetsky.

agora terminei, concluí o ciclo, ê.

não sabia muito sobre lipovetsky ao ver o livro na loja. falando sério, continuo não sabendo agora. foi o título (logo, o tema) que me chamou a atenção, meses atrás. pareceu feito sob medida para os carinhos meus, era o auge dos escândalos éticos no partido em que tanto votei e no governo por que tanto esperei – e que, cometendo-os (os “erros” éticos), colaborou para que 2005 me apanhasse numa das minhas maiores crises ideológicas da vida toda.

ler lipovetsky foi um dos inúmeros modos testados por mim para rastrear respostas, investigar soluções simbólicas, cobiçar compreensão e autoconhecimento. sobretudo, foi uma das várias bóias de salvação para tentar fugir do senso comum a que todo o noticiário (e, mais ainda, a interpretação classista esnobe dominante no noticiário) parecia querer me (nos) condenar.

a resposta não estava ali, o assunto do gilles era mais abrangente, menos pontual. mas, sim, havia diretrizes a serem descobertas e contrastadas com a (minha, nossa) experiência brasileira de 2005.

foi irônico perceber, por exemplo, que lipovetsky escrevia sobre a falência do sistema moralista de organização social há já quase 15 anos. de lá para cá, aqui no brasil passamos por collor, itamar, fhc, fhc e lula, sempre sob ideário predominantemente moralista, esse ideário que tem europeu desprestigiando desde 1992 (ano de edição original de “a sociedade pós-moralista”), desde os anos 80, auge de suposta vigência hegemônica do destempero yuppie.

bem, eu não conseguiria resumir aqui o conjunto de idéias que alimenta a retórica pós-moralista de lipovetsky (essa deixo por conta do lipovs mesmo…). vou então naquela metodologia recorte-e-cole, copyleft, de destacar uns trechos, umas passagens que resumam seu pensamento e o aproximem de nós, do ano horribilis de 2005, da sensação nova de aparente superação em 2006, do alinhamento com um mundo que estivesse sobrepujando o moralismo dogmático cristão (ou coisa que o valha) e a ética francamente sem ética que vigora em todos os tipos de cinismo moralista, seja ele catolico, evangélico, islâmico, umbandista ou ateu, seja ele petista, tucano, pefelista, verde, malufista ou (sim, eu acredito em papai noel!) “apolítico”.

mas faço questão de ressaltar, antes de mais nada, que o ataque ao moralisnmo, conforme advogado por lipovetsky, não corresponde de forma alguma ao elogio do “amoralismo”. na minha transposição particular, não deseja conduzir ao elogio da corrupção vulgar (quase) escancarada praticada pelo pt no poder, nem (muito menos, né?, que eu nã sou trouxa) sentir saudade da corrupção vulgar (quase) escamoetada praticada antes pelo psdb, o pfl, o pp, o pds, a arena, a udn, o partido de pedro álvares cabral…

não, é outro o modelo, que talvez eu tente ilustrar copiando o seguinte trecho lipovetskiano: “longe de nós desacreditar o refulgir atual dos valores. contudo, importa não ver nisso a panacéia do momento. na realidade, a política e a economia sem ética são perversas; porém, sem o concurso do conhecimento, da iniciativa política e da justiça social, a ética também é claudicante. querendo fazer um anjo, podemos acabar fazendo uma besta: a verdadeira defesa da ética pressupõe a crítica do eticismo“.

pressupõe a crítica do “eticismo”, da apropriação doentia da ética, veja bem.

eis outro trechinho, que ajuda a elaborar a idéia inteira: “na prática, ao veicularem uma posição cientifista da moral, as comissões nacionais de ética (da forma como existem em nossos dias) desviam os homens do anseio de envolvimento e responsabilização como cidadão, em quase nada ajudam a fazer do cidadão um livre agente da democracia”.

prisão social versus autonomia de vôo individual, percebe? é aquilo que batem na sua cabeça com o martelo da repressão toda vez que você comete o “desatino” de portar a voz das minorias falantes agudas, não das maiorias bojudas silenciosas. toda vez que você “ousa” ser indivíduo, não ameba.

trocando em miúdos, moralismo não é antônimo de amoralidade, ética ruinosa ou vale-tudo. (falso) moralismo é antônimo de liberdade e autonomia individuais (verdadeiras). seu (nosso) padrão moralista de comportamento escamoteia suas (nossas) próprias responsabilidades e direitos de indivíduos, de cidadã(o)s, diante de um exército de duendes imaginários entrincheirados nalgum ermo improvável – o planalto central de um país, uma caverna afegã, um emirado árabe, a brasileiríssima favela, uma casa branca imaculada, a montanha do dar-de-ombros num oeste remoto, um jabaculê, um prostíbulo, o esgoto onde se esconde um morador de rua expulso da vitrine de carne por uma rampinha antimendigo, o refúgio final inalienável de seu (nosso) próprio cérebro-cabeça-consciência-morada-moral-moralista.

tão longe, tão perto, tudo isso.

porque o inferno não são os outros. o inferno é você. o (seu) inferno é você, o (meu) inferno sou eu.

essa é a lógica que regeria (regerá?, rege?, lipovetsky?) uma sociedade não moralista, uma sociedade não julgadora-punitiva, uma sociedade em que a autonomia, a liberdade e a responsabilidade de cada indivíduo SÃO a autonomia, a liberdade e a responsabilidade de sociedades inteiras. onde, como também defendem tom zé e ana carolina, cada indivíduo é em si a morada da humanidade.

imerso em mais dúvidas que respostas, entrego aqui pílulas do pensamento pós-moralista, antimoralista, neo-não-se-sabe-o-quê-ainda, como miraboladas por monsieur lipovetsky. ferramentas de trabalho, espero que sejam de valia na construção de 2006, que, segundo, minha utopia pessoal, será (feliz ano novo!) o ano i de um brasil despido e despojado (pela primeira vez em 506 anos de história!) do crônico, fatídico e autodestrutivo falso moralismo em que se perdeu. feliz século xxi para todos nós, sras. e srs.

[“entre aspas, lipovetsky.” entre colchetes, observações e interpolações de minha própria autoria.]

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“dever era um termo que se escrevia com letras maiúsculas; hoje grafa-se com minúsculas. antes irredutível, tomou agora a forma de show recreativo. antes, submissão incondicional da vontade à lei; hoje, uma sincrética conciliação entre dever e prazer, dever e self-interest. a fórmula ‘é preciso fazer…’ cedeu lugar ao fascínio da felicidade; a obrigação peremptória, à excitação dos sentidos; a proibição irretorquível, à liberdade de escolha. (…) ficou extinta a cultura do sacrifício do dever; entramos no período pós-moralista das democracias. (…)

o que se difunde é a ética, mas nunca e em nenhum lugar a idéia do dever irredutível. assim, somos ávidos por regras justas e equilibradas, mas não exigimos uma inteira imolação ao próximo, à família ou à nação. para além da suposta retomada dos padrões éticos, a erosão da cultura do dever absoluto equivale a uma irresistível marcha em prol dos valores individualistas e eudemonistas. é a moral que se converte em espetáculo e em sistema de comunicação empresarial. é o caráter militante do dever que se metamorfoseia em permuta recíproca e prazenteira de bons sentimentos. são os direitos subjetivos, a qualidade de vida e a realização individual que impulsionam em larga escala nossa cultura, e não mais o imperativo hiperbólico da virtude. (…)

o neo-individualista é simultaneamente hedonista e regulamentado, sedento de autonomia e avesso aos excessos, hostil aos mandamentos sublimes e também ao caos ou às transgressões da libertinagem pura e simples. representar a cultura individualista atual como catastrófica constitui uma caricatura. ao mesmo tempo desestruturada e auto-reguladora, a dinâmica coletiva da autonomia subjetiva é capaz de recompor por si mesma uma nova ordem social cuja força propulsora já não está no constrangimento moral, muito menos no conformismo. partindo daí, a regulamentação dos prazeres é feita sem constrangimentos nem imposições, em meio ao caos aparente dos átomos sociais livres e diversificados. eis porque o neo-individualismo é uma ‘desordem organizadora’.”

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[ou você acha que era à toa que chico science, faro finíssimo, já em 1994 afirmava empolgadamente “que eu desorganizando posso me organizar”, “que eu me organizando posso desorganizar”? o legado de chico existe, e é vivido com dor e alegria no brasil 2000 pós-mangue bit, pós-pernambucano, pós-lula. não foi em vão, dotô chico science.]

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“independentemente da importância que se atribua ao tema do renascer da ética, aos olhos da opinião pública o que caracteriza o momento atual é, propriamente e acima de tudo, o esgotamento dos ideais e o declínio da moral. em carto sentido, nada há de novo sob o sol. há pelo menos dois séculos, com maior ou menor virulência, cada geração proclama estar em face da dissolução dos valores e da deterioração dos costumes. hoje, como antes, a mesma queixa é formulada a propósito de nosso mundo moderno, entregue à violência, ao egoísmo, às disputas de interesse. os termos são praticamente os mesmos. (…) no período entre a primeira e a segunda guerra mundiais, thierry maulnier estigmatizava a frança, tida como nação ‘corrompida até a medula dos ossos’, constituída por ‘trapaceiros, eunucos e crápulas’. hoje, invectiva-se o ocidente superdesenvolvido, contaminado pelo ‘espírito de munique’, ao passo que, para uma grande maioria dos franceses, os políticos não passam de gente corrupta. é como se, em relação a si próprias e em meio à sucessão dos acontecimentos, as sociedades modernas só fossem capazes de explicar esse eterno retorno da ideologia democrática por meio da trágica representação simbólica da decrepitude moral.

contudo, uma tal impressão de decadência, que secularmente se renova, não deve apagar de nossa memória a realidade das mudanças que ocorrem. até aqui, a angústia gerada pela crise de valores não impedia a presença de concepções muito exatas, isso no que dizia respeito à recomposição moral dos indivíduos, à exaltação da prática e do dever, bem como à importância dos princípios pedagógicos que idealizavam a observância das virtudes morais. virou-se uma página da história. (…)

ao mesmo tempo em que, de todos os lados, se ergue o clamor de angústia pela degenerescência moral, a época atual renegou a fé no imperativo de viver para o próximo, no ideal preponderante de lhe prestar serviço. o indivíduo contemporâneo não é mais egoísta que em outras eras, mas o homem hodierno – despudoradamente agora – não mais titubeia em pôr a nu o caráter individualista de suas preferências. a novidade está precisamente nisto: pensar só em si não é mais tido como algo imoral. em outros termos, o referencial do eu conquistou direito de cidadania, não obstante os grandes arroubos exibidos em shows que exalam eflúvios de bondade. (…) na sociedade atual, o altruísmo apresentado como princípio permanente de vida é um valor depreciado, equiparando-se a uma vã mutilação da própria pessoa. (…) aos olhos do ideal moral, o indivíduo não goza de direitos, mas lhe compete tão-só o exercício de deveres. ora, a cultura pós-moralista exerce sua influência manifestamente em sentido oposto: supervaloriza a legitimidade dos direitos subjetivos e, correlatamente, solapa a noção do postulado da abnegação total. o espírito de sacrifício, o ideal de dar precedência aos outros, são valores que ficaram desacreditados. hipertrofia do direito de cada qual viver só para si, nenhuma obrigação de se dedicar aos outros… francamente falando, é esta a fórmula do individualismo consumado.”

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[decadência bonita, a do samba… bonita, mas… a decadência do samba é do samba? a decadência do mundo é do mundo? ou é sua também? era de aquário, ou mera ilusão?]

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“é grande a tentação de assimilar a cultura do pós-dever com o grau zero de valores, isto é, com a apoteose do niilismo moderno. (…) há bem pouco tempo, allan bloom afirmava que ‘já não se pode falar com alguma segurança sobre bem e mal’, porque hoje, a bem dizer, ninguém crê em mais nada diante de ‘uma crise de valores, crise de proporções inauditas’. os meios intelectuais deixaram-se cativar em larga medida pelo roteiro niilista: é sempre a sensação de naufrágio e catástrofe do ‘deixa tudo para lá’ que predomina na concepção das novas democracias.

entretanto, a realidade só muito remotamente nos reporta a esse cenário apocalíptico. é um equívoco equiparar o crepúsculo do dever ao cinismo e ao vazio dos valores. para além da saturação ou desestabilização inconsteável de um certo número de referências, a sociedade atual vai reconstruindo um núcleo sólido de valores compartilhados, os quais se apóiam num consenso de valores éticos de base. (…) em cada quatro europeus, apenas um julga ser capaz de distinguir com clareza entre o bem e o mal. nada disso, contudo, permite quem se tire alguma conclusão definitiva sobre uma eventual depreciação de valores em todas as escalas sociais. diversas pesquisas realizadas sucessivamente mostram que os direitos humanos, a honestidade, a tolerância, a recusa da violência são geralmente bem acolhidos. nenhuma delas conduz à idéia de um suposto questionamento geral dos valores. costuma-se dizer que ‘deus está morto’, mas nem por isso os critérios de avaliação entre o bem e o mal foram cancelados da alma humana individualista.”

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[o niilismo, repare bem, grassa e viceja nos meios ditos “intelectuais”. portadores de profunda ignorância enrustida, esses meios propagam a negação oca de tudo na mesma velocidade com que os meios ditos “não intelectuais” procriam otimismos bobos e largamente enjeitados pela sociedade “inteligente”. ninguém entende ninguém, mas quem será mesmo o mais “bobo” e quem será mesmo o “sabido” dessa cadeia predatória? o povo-massa-rebanho sempre insatrumentalizada para executar os interesses e prazeres das “elites” pequerruchas? ou o “intelectual” confinado num rebanho grupal de niilismo pateta e cheio de não-me-toques? o “intelectual” É a massa instrumentalizada? e vice-versa, porventura?]

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“o processo pós-moralista subestimou o imperativo do devotamento pessoal; ao mesmo tempo, porém, elevou a tolerância à condição de valor central. (…) a tolerância adquire uma maior fundamentação social não tanto pelo fortalecimento da compreensão dos deveres de cada um perante o próximo, mas em razão de uma nova dimensão cultural que rejeita os grandes projetos coletivos, exaurindo de sentido o moralismo autoritário, diluindo o conteúdo das discussões ideológicas, políticas e religiosas de toda conotação de valor absoluto, orientando cada vez mais os indivíduos rumo à sua própriua meta de realização pessoal. (…) num ambiente social em que a prioridade de cada um está voltada para si mesmo, todo indivíduo pode pensar e agir livremente, desde que não cause dano a terceiros. nossa moralidade é pós-moralista: exprime mais uma indiferença pelo outro do que um preceito da razão; mais um ímpeto de introversão individualista do que um ideal que se dirige ao outro; mais um direito subjetivo do que um dever categórico. fixemos mais uma vez o paradoxo na memória: no momento em que impera o culto do ego é que os valores de tolerância triunfam; no momento em que perece a escola do dever, o ideal do respeito aos outros atinge sua consagração suprema. a marcha da moral tem razões que a razão moral desconhece.”
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[o moralismo É o amoralismo? você É o governo? a sua intolerância se volta sempre contra você? o meu governo SOU eu?, você se autogoverna?, nós nos governamos?, o governo somos nós?]

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