do túnel do tempo, de volta ao final de 2005, “carta capital” 372, de 14 de dezembro de 2005.

é o samba… e o samba, hein? o samba pertence ao passado? o samba está esperando lá no futuro? ou o samba é hoje? viver é sentir saudades do passado que já foi? seguir projetando um futuro que nunca chegará? e o hoje, onde foi que se escondeu? alguém sabe? alguém viu? alguém procurou?

SEM PRAZO DE VALIDADE
Incansáveis, pioneiros do samba seguem atuantes nos palcos e na estrada

Por Pedro Alexandre Sanches

Lá pelas tantas, num instante à parte dentro de um show de quase três horas de duração, o homem de 92 anos apanha a sacola verde que conservou ali a seu lado o tempo todo. Tenta encontrar, no meio das folhas de papel, a letra copiada do novo samba-enredo da Mangueira, o do carnaval de 2006.

Esse é o único, entre 34 sambas encadeados por um vozeirão que não titubeia jamais, que Jamelão não canta de cor e salteado nessa noite de quarta-feira no Bar Brahma, quase esquina entre as avenidas Ipiranga e São João. Mesmo os versos da paulistaníssima Ronda, de Paulo Vanzolini, ele vai desenrolando um a um, logo depois de constatar o provável esquecimento de quem não a cantava fazia anos e anos.

Estabelecido num hotel de São Paulo enquanto durar a temporada sem dia certo para terminar no Brahma, Jamelão continua sendo a voz do samba, a voz do carnaval, a voz da Mangueira. Mais tarde, ele assim justificará o fato de não ter o novo samba-enredo na ponta da língua: “Às vezes dá um branco. A cabeça está para o outro lado. Estou cantando aqui, mas pensando em coisas lá no fim do mundo”.

Jamelão é, hoje, a face mais notável de um fenômeno persistente e intrigante para quem goste de lamentar a marginalidade a que o Brasil insiste em atirar sua dita “música de raiz”. Ele alegoriza, em pessoa, a perenidade do samba e a longevidade de seus principais expoentes.

Pois o tempo passa depressa e lá se foram 27 anos desde que Nelson Sargento desabafou, em tom de lamento e de resistência, versos entoados por Beth Carvalho, que davam conta de que o samba “agoniza, mas não morre”. O autor da denúncia, hoje com 81 anos, é outro dos que se mantêm em atividade. Acaba de ver lançada, pela gravadora carioca independente Rob Digital, a caixa de quatro CDs Nelson Sargento 80 Anos, e anda nos últimos anos se espalhando pelos ofícios de artista plástico, escritor e ator de cinema e tevê.

Agoniza, mas Não Morre aconteceu na década de 70, quando o samba estava começando a ser invadido por outros ritmos. Foi quando houve a invasão das escolas de samba pela classe média. Impuseram outra cultura. Mas você vê que o samba luta muito para sobreviver, até hoje”, discorre o artista.

O telefonema de CartaCapital também apanha Dona Ivone Lara, 84 anos, com a corda toda, recém-chegada de um show em Curitiba, em comemoração ao Dia do Samba. “Faço um a dois shows por semana. Ainda estou trabalhando, divulgando meu disco Sempre a Cantar (bancado pelo selo francês Lusáfrica). Graças a Deus, nós somos solicitados. Ainda não se esqueceram da gente, não”, diz, afirmando que sua onda agora é compor novos sambas com um jovem parceiro, Bruno Castro.

Jamelão, Dona Ivone e Nelson formam, com Jair do Cavaquinho (de 85 anos), Guilherme de Brito e Casquinha (ambos com 83) e Xangô da Mangueira (com 82), a comissão de frente de uma ala secundada por bambas um pouco mais moços, como Wilson das Neves (79), Walter Alfaiate e Elton Medeiros (os dois com 75), Monarco (72)…

Ainda que constantemente desprezado pelas gravadoras multinacionais, o grande samba se beneficia da resistência dos sobreviventes de uma geração que revelou Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulo da Portela, Carlos Cachaça e tantos outros. Mas também conta com vogas sazonais que, ao menos desde os anos 60, proíbem o samba de morrer, até mesmo de agonizar.

A mais recente delas aconteceu em meados dos anos 90, e a partir de 1997 teve no pequeno palco paulistano do Villagio Café um dos centros irradiadores. Quem lembra é Zé Luiz Soares, um dos donos do Villagio e também da gravadora independente Lua Music (que veiculou nos últimos anos CDs inéditos de Guilherme de Brito e Casquinha): “Eles estavam esquecidos, até no Rio de Janeiro. Monarco não pisava em São Paulo fazia cinco anos e Guilherme, sete. Cláudio Camunguelo não vinha aqui fazia 18 anos. A coisa estava feia para o tal samba de raiz, depois de dez anos de hegemonia do pagode mauriçola. Nem na Lapa carioca se falava nisso”.

Soares admite que a marola dos anos 90 teve a ver com o advento do projeto Buena Vista Social Club, que reagrupara com sucesso mundial os equivalentes cubanos à nossa velha guarda do samba.

“O ostracismo dos cubanos em muito se assemelha ao dos nossos sambistas. A postura dos artistas é praticamente a mesma: talento de sobra e articulação de menos, pois são pessoas muito simples e de origem pobre, que continuaram pobres”, analisa.

E segue pela descrição do lado brasileiro: “É seu Guilherme com 82 anos subindo escadas para chegar em casa, Camunguelo com móveis feitos de caixas de madeira, Walter Alfaiate dormindo há 20 anos num sofá velho. São dramas verdadeiros e inacreditáveis, mais ou menos como a história do Cartola lavando carros”.

O testemunho de Dona Ivone Lara, enfermeira aposentada, vai em direção parecida. Ela conta que arcou com suas passagens e as de três músicos para poder ir a Curitiba. “Mas eles têm despesa grande com a gente, pagaram hotel e alimentação. No final, compensa.”

Mesmo aí, há variações. A empresária de Jamelão em São Paulo, Beth Dutra, conta que o cachê atual do mais importante intérprete de Lupicinio Rodrigues é de cerca de R$ 12 mil por apresentação. “O Brahma paga um pouquinho menos, mas dá passagem, alimentação, estadia, vôo quando ele tem algum compromisso no Rio. Somando tudo, gira em torno de R$ 10 mil por show”, afirma.

Em duas noitadas de Jamelão presenciadas pela reportagem, o Brahma registrava casa lotada (inclusive com caravanas vindas do interior do estado) de clientes jantando, petiscando, bebendo e tendo clássicos amargos como Nervos de Aço, Folha Morta, Cadeira Vazia, Esses Moços, Risque, Brigas, Nunca e Vingança como trilha sonora.

Mesmo garantindo êxito constante de audiência, Jamelão costuma trabalhar por cachê fixo, nunca por participação de bilheteria. É também aí que sua história diverge da dos sambistas que passaram pelo Villagio. Volta Zé Luiz Soares: “O que a gente fez foi trazer essas personalidades, a partir de uma percepção de que havia um tesouro musical e histórico abandonado no Rio de Janeiro. Trazíamos eles de ônibus, pelo couvert, com hospedagens em hotéis simples e almoço no quilo. Mas tivemos o cuidado de dar um caráter de espetáculo aos shows, com luz baixa, som perfeito, nada de pista de dança, todo mundo sentadinho, ouvindo, cultuando a personalidade”.

Por falar em personalidade, a de Jamelão varia entre a extrema paciência de atender toda a fila de pessoas em busca de autógrafos (que, às 2 horas da madrugada do dia 1º, incluía de casais pedindo fotos em sua companhia a um prefeito de cidade do interior) e o humor oscilante, temperamental.

Durante o show, ele diverte o público com jeitão irascível, capaz, por exemplo, de lançar farpas por sobre mitos: “Cartola eu sempre conheci, desde moleque, mas ele nunca foi com a minha cara. Eu também não vou ficar me lamentando. Não gostava muito talvez da minha maneira de cantar, e eu também não fazia muita questão”. Não faz muita questão, e canta feito veludo o samba-símbolo de Cartola, As Rosas Não Falam.

Entrevistado sobre o samba 2006 de sua Mangueira, ele assim oscila: “Já escolheram, vai esse mesmo, não adianta dar palpite. Me interessa gravar porque minha voz fica no ar, vou deixar de colocar a voz? Não. Mas eu não sou obrigado, não sou empregado de escola. Canto o que eu quero, na hora em que eu quero”.

Também se recusa a colocar em termos do prazer de cantar a longa permanência na carreira: “Não é gostar ou não gostar. É o meu trabalho, eu tenho que saber me apresentar. Ninguém me ensinou, eu tenho meu dom. Não tem negócio de como faz para conservar a voz. É Deus que quer, não é ninguém. Se Deus quisesse, eu já queria ir embora. Mas ele quer que eu fique, eu vou ficando”.

Ex-integrante dos históricos conjuntos sessentistas Rosa de Ouro, A Voz do Morro e Cinco Crioulos, Nelson Sargento aborda a resistência dos bambas do samba sob outro ângulo. Evoca a cantora Araci Cortes, que em 1965 protagonizava com Clementina de Jesus o espetáculo Rosa de Ouro: “O caso dela era mais sofrido, teve glória na grande época das vedetes. (O produtor) Hermínio Bello de Carvalho foi buscá-la no retiro dos artistas para o Rosa de Ouro. Emilinha Borba, que foi uma tremenda artista, estava vendendo disco independente na rua antes de morrer. É duro. O Brasil tem a mania de colocar as pessoas no ostracismo. Diz ‘está velho’, pronto”.

E conclui o raciocínio, embutindo na própria receita de longevidade um recado tácito para “esses moços, pobres moços” de hoje em dia: “Se você começa a se projetar muito novo, aos 30 anos você está velho. Foi o que aconteceu com Araci, com Emilinha”.

Nota dissonante ao vigor de Jamelão, Sargento e Dona Ivone é Guilherme de Brito, parceiro de Nelson Cavaquinho em uma galeria de sambas históricos. Cantor extemporâneo dos espetaculares álbuns Samba Guardado (2001) e A Flor e o Espinho (2003), ele demonstra pouca disposição em voltar à arena. “Agora não canto mais, não. A voz está ruim, rouca. Eu estou borocochô. A gente tem que reconhecer o estado real para não passar ridículo.”

Mesmo pensando assim, ele é um dos responsáveis, com versos perenes como “tire seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor“, por fagulhas que ajudam a revelar mistérios do samba e da longa vida de seus bambas. “Não sei explicar o fascínio do público de hoje por essas figuras. Vi gente chorar no Villagio muitas noites”, descreve Zé Luiz Soares, que os trata como “pop stars negros e pobres”, mestres da auto-afirmação em fuga de uma “música enlatada, jabazenta, artificial”.

É mais ou menos o que continua a fazer Jamelão, entre os choros e risadas que provoca nas quartas-feiras do Brahma. Para terminar pelo começo, é assim que ele se apresenta ao público, depois de subir devagarinho ao palco, pendurar a bengala de lado e se aboletar no banquinho de que não sairá dentro de quase três horas:

“Como vocês estão vendo, não é nada demais, é só isso aqui mesmo. É bom a gente dar uma voltinha. Ando por aí, dando umas quebradas. Estou cuidando da máquina. Quem fica em casa é caracol”.

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