ao contrário do que diz clóvis rossi em seu artigo “severino, o novo herói” (“folha”, 18 de junho de 2005), o brasil não é um charco que queria ser lagoa. proponho que viremos ao avesso o espelho: o brasil é uma lagoa que quer continuar sendo charco “para todo o sempre”, como concluiriam os contos de fadas em que o articulista se apóia para construir sua fábula. é uma lagoa com complexo de charco.

[é engraçado esse folguedo, gostoso de testar de brincadeira quando não há nada mais a fazer: pegue um argumento que lhe pareça óbvio e vire-o no espelho. entenda-o do modo como já o entendia, adotando só a premissa oposta à que você está acostumado. a dor de barriga pode ser pior que a de despencar numa montanha-russa, mas há de ser bem divertida, se é que estamos mesmo no campo das fábulas rasas.]

o brasil não é um charco que queria ser lagoa (estados unidos, england, escócia, china, japão). é uma lagoa com profundo complexo de charco, medrosíssima do monstro do lago ness que supostamente habita suas próprias profundezas.

o charco, nas palavras de clóvis, é imagem-metáfora para alegorizar o brasil de 2005, governado por, segundo ele, um sapo barbudo que um dia sonhou ser príncipe. afora o infantilismo das imagens de fábula (que fazem par de vasos “à esquerda” com as “mesadas” que andam recebendo os parlamentares do tal charco), é preciso dar um basta no raciocínio classista enviesado e transtornado que, sempre e sempre e sempre, entala na garganta do brasil esse figura-travo perniciosa do “sapo barbudo”.

[leonel brizola está morto.]

o que é um sapo? um batráquio “asqueroso” (aos sentidos humanos), feio, mole, pegajoso (contagioso?), de pele cheia de perebas, desprezível, que chafurda num melancólico lodaçal e nunca haverá de ter acesso aos palácios de cristal, sob a pena de cobri-los de lama também (e que lástima haveria de ser a daslu coberta de lama, ó, horror supremo?). se o sapo sonha em ser príncipe, trata-se única e exclusivamente de sonho, desejo, delírio – aos sapos não é dado ser príncipe.

pois eu peço um basta, um basta à lógica alinhavada que racha os viventes entre sapos e príncipes, entre feios e bonitos, entre leprosos e saudáveis. peço um basta ao argumento míope que nega e entope de poeira a origem plebéia de todos nós – somos todos plebeus filhos de mítica mãe lavadeira, de atávico pai pedreiro, e essa é nossa maior grandeza. nutramos respeito por nós mesmos, por favor.

o brasil, já que as metáforas convocam o naturalismo do positivismo, é um país cheio de charcos, pântanos, planícies, vales, veredas, florestas, planaltos, serras, chapadas, pampas, portos, praias, sertões, cidades, favelas. o brasil é feito de charcos e lagoas – e de muito mais. e o raciocínio que escolhe o charco como imagem-símbolo de um brasil inteiro é tão fantasioso quanto o “…e foram felizes para sempre…” de um conto para ninar neném que ainda não mereceu receber mesada.

sim, nós que acreditávamos na ética petista estamos convocados à realidade, para nós nada mais será como antes. aos que nunca acreditaram em nós, vocês têm agora em punho o chicote para o açoite em lombo ferido de carne negra. chicoteiem, se assim pensam se purificar. a crueza colonial escravagista nubla menos nossos olhos baços que a fábula do patinho feio, ou a da princesa que beijou o sapo, o do joãozinho que sonhou alcançar o céu pelo pé de feijão, o da cigarra que azucrinava a formiga, o da formiguinha assassinada pelas mãos de deus com os pés atolados na neve – pois neve branca, plim plim!, também pode ser charco, se assim quisermos.

acontece que o brasil não é um charco. o raciocínio que elege o charco como valor presidente da nação está cego para o fato de que esse próprio raciocínio está, ali, desmpenhando o papel do sapo, do bobo da corte, do complexado, do ministro avançado para a acelaração das crises. a manutenção do raciocínio fabular nos condena ao círculo vicioso que nos impede a chegada à lagoa do círculo virtuoso. o sapo que o articulista não ousa denominar “lula” poderia também ser apelidado, mais simpoloriamente, de “brasileiro”. ainda que tudo dê errado no final, num desfecho do tipo “…e foram infelizes para sempre…”, o sapo-lula é presidente do brasil porque o brasil decidiu bancar a experiência mais radical de sua história: eleger um sapo, eleger a si mesmo, autodeclarar-se gestor de seu destino. mais que levar um partidinho feio ao poder, naquele gesto o brasil assumia a feiúra do sapo (que é nossa feiúra), a emotividade do sapo (que é nossa emotividade, alô, roberto carlos), a falibilidade do sapo (que é nossa falibilidade), a coragem pantaneira do sapo (que é nossa coragem).

o artifício de dinamitar o sapo é autodestrutivo, infantil-suicida. é o raciocínio de que nós, brasileiros, saídos do analfabetismo funcional da ditadura sem eleições, elegemos collor para derrubar collor, elegemos fhc para derrotar fhc, testamos a suprema ousadia de eleger lula (ou seja, eleger-nos a nós mesmos) para espatifar lula-nós da festa no céu cá para baixo, para lancetar a medula espinhal de lula-nós numa mesa fria de dissecação. é penitência, auto-flagelação.

basta.

o brasil não é um charco. charco é a nuvem simbólica em que nos sufocamos paralisados por nossa crença cega de sermos impotentes, incapazes, imprestáveis, corruptos por natureza. não somos, não somos, não somos. nossa boçalidade convive dentro de nossa grandeza como o charco faz parte de nosso sistema hídrico-ecológico de grandes lagos. sabemos bem do charco (afinal, já escravizamos negros, índios e brancos há 505 anos), mas já é mais que hora de a gente-sapo acordar, abrir os olhos redondos, desinfetar a cegueira e enxergar por fim, num final feliz transitório até a próxima depressão, que também somos montanha, caatinga, praia, mangue, cachoeira, primavera, verão.

se o espelho da madrasta de branca de neve, em reflexo, só sabe receber o comando malogrado de que “não, rainha, não existe no mundo mulher mais bela que a senhora”, que tal engolirmos a maçã de eva e nos mirarmos no reverso do reverso do espelho? que tal uma visita não mais ao charco, mas ao morro, à margem, à favela?

sonhando o passeio, eis a lembrança dos sapos mangueirenses padeirinho e jorginho, que, “era uma vez”, há muitos e muitos anos, compuseram um sambinha que cantarolava assim: “numa vasta extensão/ onde não há plantação/ nem ninguém morando lá/ cada um pobre que passa por ali/ só pensa em construir seu lar/ e quando o primeiro começa/ os outros, depressa, procuram marcar/ seu pedacinho de terra pra morar/ e assim a região sofre modificação/ fica sendo chamada de nova aquarela/ é aí que o lugar então passa a se chamar/ favela“. “favela”, era esse o nome do samba.

você pode, a seu bel-prazer, chamar a “vasta extensão” de charco, favela, jornal, lagoa, brasília ou brasil – a vasta extensão continuará sendo o que é, um terreno livre e fértil por sobre onde os homens plantam suas sementes e projetam suas índoles. suas índoles, se pudermos dar um basta no raciocínio binário que nos comanda em pique de “big brother”, são feitas de charco e de lagoa – e de muito mais. são complexos, complicados, ricos, vigorosos, cheios de vida como o ecossistema diversificado de um pantanal.

[brincando de virar o raciocínio do avesso, vamos? segura nas travas que o comboio de vagões da montanha-russa vai despencar de novo. uuuuuuuuuuuuuupaaaaaaaa.]

se no espelho de nossos deputados e governantes continuarmos a nos acomodar no raciocínio que extirpa um pretenso tumor (nós mesmos) de um todo que nós ajudamos a construir, continuaremos a, infantilmente, nos acreditar batráquios malévolos, corruptos, imprestáveis – o sapo-lula que queria ser príncipe-mulatinho-com-um-pé-na-cozinha somos nós. continuaremos, feito facas, fazendo o triste papel de sangrar uma ferida que nunca cicatriza – chega desse nhenhenhém.

se nos vemos de modo tão desprezível assim, melhor não será acabarmos logo com isso tudo, apontarmos uma arma de fogo em nossas próprias têmporas, rumo a um suicídio coletivo que extirpará do mundo essa charneca, essa excrescência chamada brasil? não, basta. basta. basta. mais que nunca, após a eleição do “sapo” que queria ser “príncipe” (ou seja, a nossa eleição, de nós que nos considerávamos tão ínfimos), precisamos demolir esse hábito autista de desqualificr todo e qualquer governo eleito (por nós mesmos, há já quase duas décadas) – esse hábito de auto-sabotagem em moto contínio de círculo vicioso é, ele sim, o gesto suicida que aperta o gatilho apontado em nossa têmpora. escolha agora, queira morrer ou prefira viver.

[elementar, meu caro watson, o brasil não é uma charneca!!! aqui não há monstro do lago ness nem abominável homem das neves – no máximo, aqui há saci pererê, cuca, boitatá, curupira, bicho papão e roberto jefferson.]

o que fazer, para dar um basta? a resposta não está nos livros nem nas bancas de jornal (alô, raul seixas). está naquela favela a que agora há pouco nos convidamos hesitantemente visitar. está nas palavras da revista “trip” (alô, henrique, obrigado) deste mesmo junho, que dá conta do que andam fazendo, “por debaixo do mundo”, “sapos” pretos como mv bill, nega gizza, negra li, rappin’ hood, ferréz, dexter etc. etc. etc. dá conta, sobretudo, do que anda fazendo e pensando o novo antonio carlos jobim, o novo glauber rocha, o novo caetano veloso, o novo chico buarque, o novo gilberto gil – o nome dele é mano brown.

ouve só, de olhos bem arregalados, as palavras dos dois seguintes parágrafos da “trip”, substitutas astutas da varinha de condão que transformava a gata borralheira em cinderela e depois devolvia o sapatinho de cristal em forma de abóbora. enxerga aqui, de ouvidos bem abertos, a receita simples feito arroz-com-feijão de um solo-país todo coberto por lavouras, além de charcos e limbos:

“algumas das principais lideranças do rap brasileiro se reuniram recentemente a portas fechadas em são paulo. na pauta, ordem e progresso para o povo pobre das periferias. durante dois meses, ‘trip’ apurou os bastidores das reuniões fechadas que pretendem mudar para sempre o hip hop no brasil e, mais que isso, mudar o brasil. iniciativa com poder para iluminar outros setores da sociedade ao dar exemplo de responsabilidade numa época de isenção coletiva. e tudo começou quando um corpo bateu no palco.

quem tem notícia de um meeting de profissionais de marketing para falar das conseqüências da cultura do consumo desenfreado sobre as camadas mais pobres da população? ou levante a mão quem viu os donos das grandes organizações de mídia esquecerem por um instante os ibopes da vida para discutir como levar cultura e educação aos menos favorecidos. e os políticos? pelas imagens recentes dos parlamentares negociando comissões, não se deve esperar muito deles.”

[abrace os rappers, funkeiras e meninos do sinal, mano. dispa-se de preconceitos, fobias, complexos de charco. no avesso do avesso do avesso do espelho, eles são o sapo-príncipe-lula que é você mesmo. alô, de novo, raul “caymmi” seixas: “você já foi ao espelho, nego? não? então vá”.]

se o brasil não for um charco, nobre clóvis, então até conseguirei concordar com a lógica cartesiana de seus excelentes argumentos. então concordarei, sobretudo, com o deslocado título de seu artigo, “severino, o novo herói”. porque só então consigo compreender que você não está falando do saco-de-pancada severino cavalcanti, mas sim daquele sapo feio que se locomove brasil afora em epopéia de morte e vida severina. esse severino(a) – biu, em idioma pernambucano -, que pode-se chamar mano brown ou deize tigrona ou mv bill ou tati quebra-barraco ou lacraia, talvez seja mesmo “o novo herói” a que você se refere. ou melhor, talvez seja o anti-herói de um brasil que, desparafusando o reboque da locomotiva da dependência, não precisará nunca mais de heróis.

os heróis brasileiros estão na rua, as mãos à obra, em plena luta (e, olhe, o conclave dos rappers que a “trip” comenta nem foi assim uma aterrorizante marcha dos sem-terra; não, veja que mimoso, ela aconteceu no green express, um salão de baile de samba-rock plantado em pleno coração de são paulo, em pleno fígado do brasil – já viu os casais negros piruetando um samba-rock? é um dos maiores espetáculos da terra, saído do núcleo do charco). terra em transe, nós estamos lançados no coração do nosso tempo (você também, nobre clóvis), e é por isso que tentaremos, com toda nossa colossal e intocada potência, não precisar mais de heróis (nem de vilões, nem de bodes expiatórios – alô, wilson simonal, alô, escola base).

[talvez você, desavisado, tenha caído aqui por acaso, acreditando com convicção que o brasil (ou o governo, o pt, o psdb, o ptb, o raio que o parta, qualquer coisa) é mesmo um charco… ainda assim, experimente chafurdar no charco um instantinho. pise nele de pés descalços, sinta-se parte da matéria orgânica do charco. e, se um arrepio de autocomplacência percorrer de repente sua medula espinhal lancetada, experimente a suprema transgressão de plantar no charco uma única margaridinha. bom-dia, brasil.]

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