para tentar não deixar a peteca cair, num momento colossal de tristeza e desconsolo (alô, mefistofélico dr. jefferson)…

música & literatura fizeram par de vasos em dois textos publicados na “carta capital” 343, de 25 de maio de 2005. reúno os dois vasos neste mesmo tópico em branco-e-preto – o primeiro fala de livros de/sobre bob dylan e torquato neto, e o segundo sobre “cabeça de porco”, já pregado & martelado incansavelmente neste blog (e mais atual que nunca, na leitura de que, não, não é nas favelas que nascem os maiores transtornos do brasil e em confronto com o estridente “não à invisibilidade” agora protagonizado pelos excelentíssimos deputados brasileiros, essas versões “robustas” de nós mesmos).

[ocorre-me que, diante de tanta exibição de sinceridade e de tantos gritos histéricos de “não à invisibilidade” por parte dos nossos parlamentares, não há mais o que lastimar ou lamuriar – nós vínhamos pedindo isso deles (e de nós mesmos), seja por meio de passeata, protesto, fórum, denúncia, jornalismo, ficção ou realidade. esta é a nossa própria carne, sendo cortada em público. parafraseando a sara de “terra em transe”, estamos lançados no coração do nosso tempo – viva o nosso tempo.]

samba & leitura pras branquinhas & pros negões.

AS VOZES DOS ANJOS TORTOS
Livros abordam detalhes “secretos” das personalidades de Dylan e Torquato

Por Pedro Alexandre Sanches

Dois livros recém-lançados no Brasil, e muito diferentes entre si, ajudam a compor a idéia de que a canção popular é construída por cima de pequenos mistérios e segredos que, a priori e a rigor, não são feitos para chegar ao conhecimento consciente de seus ouvintes.

Coincidentemente, tanto Crônicas, sobre o norte-americano Bob Dylan, como Pra Mim Chega, sobre o brasileiro Torquato Neto, existem para colocar em xeque e tentar desmontar, ao menos em parte, o pacto ilusionista que comumente se firma entre os amantes da música popular e seus heróis (ou anti-heróis), muitas vezes tidos como perfeitos, sobre-humanos.

São, os dois, personagens tão dessemelhantes na essência quanto parecidos nas entrelinhas. Dylan ajudou a reinventar a música norte-americana a partir de 1961, protagonizando a reentrada do protesto político-social e do folk tradicionalista nas modernidades do pop e do rock’n’roll.

Como um Dylan maldito, às avessas, Torquato ajudou a reinventar a MPB entre 1967 e 1968, atuando como o principal ideólogo de bastidor da tropicália, que vinha coalhar de rock, iê-iê-iê, carnaval e música cafona a rigidez então vigente nas frentes da bossa nova, do samba e da canção de protesto.

Dylan fundou uma nova tradição, explodiu, virou pop star e garantiu uma permanência que se estende até estes anos 2000, quando escreve, em primeira pessoa, os poéticos textos autobiográficos que compõem suas Crônicas – Volume Um (Planeta, 326 págs., R$ 44,90).

Torquato ajudou a desarticular antigas tradições, forneceu substrato intelectual (era poeta, compositor, jornalista e crítico musical) à tropicália, permaneceu à sombra (não era cantor nem tinha vocação para astro pop), implodiu e se suicidou antes dos 30 anos. Há pouco, teve seus poemas, manifestos, cartas, críticas e crônicas de jornal agrupados nos dois volumes de Torquatália (Rocco, 2004), sob organização de Paulo Roberto Pires. Aos dois volumes, soma-se agora Pra Mim Chega – A Biografia de Torquato Neto (Casa Amarela, 236 págs., R$ 36), do jornalista e escritor Toninho Vaz, que também já biografou Paulo Leminski.

Um encorpado pela permanência, outro pela volatilidade, ambos com o tempo se tornaram mais mitos do que homens – mas é a humanidade deles que os dois livros querem principalmente ressaltar.

Dylan, em pessoa, borda um painel surpreendente em sua autobiografia parcial, que começou a ser publicada lá fora no ano passado e deve render uma trilogia. Impregnam suas páginas temas que fãs e críticos costumam desassociar dos mitos: fragilidade, fracasso, falibilidade, insegurança, incerteza, isolamento, loucura, solidão. O ponto culminante é a crônica Oh Mercy, em que ele descreve a encruzilhada criativa em que se encontrava por volta de 1987 (“a intimidade, entre muitas outras coisas, tinha ido embora”).

Eis os sentimentos internos (que o álbum Oh Mercy, de 1989, viria em parte contornar) revelados ali: “Eu me sentia acabado, um traste vazio completamente consumido. (…) Onde quer que eu vá, sou um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk-rock, um artesão da palavra de tempos passados, um chefe de Estado fictício de um lugar que ninguém conhece. Estou no inferno do esquecimento cultural”.

Não bastasse isso, o cronista cruel também brilha ao desmistificar a ligação espiritual que supostamente existiria entre um ídolo e seus admiradores. Falando sobre os fãs hippies que na virada dos anos 60 para os 70 invadiam sua propriedade rural em Woodstock à cata do “Príncipe do Protesto” (que, ele insiste em afirmar, nunca existiu), assim os qualifica: “gangues de periféricos e drogados”, “parasitas em peregrinação”, “mulheres com aspecto de gárgula”, “espantalhos”, “vadios à procura de festa”. E confessa, bombástico: “Eu queria mandar bala naquela gente”.

Outra rota tortuosa é seguida por Toninho Vaz, na reavaliação do mito subterrâneo de Torquato Neto, que se destituiu do isolamento e da loucura ao ligar o gás de seu apartamento em 1972, no auge do terror implantado pela ditadura militar brasileira.

O livro de Vaz ficou engavetado um ano entre a conclusão e a publicação – nesse intervalo, a viúva de Torquato, Ana Duarte, desaprovou os originais e um contrato já firmado com a editora Record foi desfeito. Pra Mim Chega vem à luz, finalmente, pela editora Casa Amarela, da revista independente Caros Amigos.

Os percalços poderiam ser justificados em parte por certa falta de rigor do livro em si (Vaz erra informações e insiste, por exemplo, em tratar como Verdades Tropicais o livro autobiográfico Verdade Tropical, de Caetano Veloso). Mas o autor atribui a recusa de Ana Duarte e a desistência da Record à presença de dados biográficos de Torquato que pela primeira vez são publicados. “A verdade não é para ser contada”, lamenta ele em entrevista à CartaCapital.

A bissexualidade do artista seria o principal deles, e o biógrafo defende a necessidade de trazer esse dado à tona porque, em sua interpretação, ele teria sido crucial para os desdobramentos que traria à história da MPB a grande cisão tropicalista de 1968, a bordo do AI-5 e da prisão e exílio de Caetano e Gilberto Gil.

Segundo Vaz defende (apoiando-se em depoimentos como o da cantora Nana Caymmi, então casada com Gil), uma ruptura amorosa entre Torquato e Caetano teria sido um dos motores da desarticulação do movimento tropicalista – a partir dali, Torquato se afastaria de todo o grupo e mergulharia em progressivo isolamento artístico.

Ao que indica Vaz, as feridas não se curaram até a escrita de seu livro – ele afirma que, procurados, o parceiro Gilberto Gil e as intérpretes Gal Costa e Maria Bethânia se recusaram a prestar depoimentos para a biografia.

Caetano está lá, no entanto, e confirma em entrevista à reportagem o depoimento concedido na biografia (contra a qual afirma nutrir reservas): “Não gosto muito de livros que tentam reproduzir sutilezas íntimas de pessoas conhecidas publicamente pelo seu trabalho. Só posso assegurar que nunca houve uma ligação amorosa entre mim e Torquato. E que apenas a prisão e o exílio interromperam as ações (mas não o ideário) tropicalistas”.

Caetano volta agora a falar sobre Torquato e dá pistas indiretas sobre o que, a seu ver, teria separado o poeta piauiense dos colegas: “Ele reagiu mal, num primeiro momento, às inspirações tropicalistas. Mas, desde que sacou o lance, se tornou um criador fértil e intenso no jeito do movimento. Tornou-se também um tanto sectário, se comparado a Gil ou a mim próprio”.

Relembra, enfim, as circunstâncias em que compôs Cajuína, que lançou em 1979 como uma homenagem póstuma ao ex-parceiro: “Passando por Teresina no meio de uma excursão, o pai de Torquato veio me ver no hotel e me chamou para ir com ele até sua casa. Eu chorei o dia todo. Ao chegar na casa, ficamos os dois sozinhos. Ele foi ao jardim da casa e me trouxe uma rosa-menina. Serviu cajuína para nós dois bebermos. Ele me consolava com pouquíssimas palavras. A música é sobre isso”.

Paulo Roberto Pires apoiou o resumo biográfico de seu Torquatália em informações obtidas com Ana Duarte (que não respondeu aos apelos da reportagem por uma entrevista), e assim se refere ao novo livro: “A pimenta é que ele se arrisca a uma interpretação sobre o rompimento, mas a mim ela não convence”.

Ele, no entanto, concorda com a idéia de que, juntos, Pra Mim Chega e Torquatália compõem um panorama até aqui inédito sobre a presença e a importância de Torquato na cultura brasileira. Menciona, em especial, a inédita e desalentada correspondência entre o poeta e seu cunhado Helinho.

Não é só isso. Sempre se arriscando na corda bamba entre a vida íntima do biografado e suas significações culturais, Vaz define um retrato algo confuso, mas menos incompleto que o que havia até aqui. Ali cabe a atividade criativa abundante de seu personagem, mas se encaixam também as crises de isolamento, os conflitos de sexualidade, as passagens turbulentas por hospitais psiquiátricos, o pano de fundo sangrento do Brasil do início dos anos 70.

Parece defender que o homem não teria existência plena sem o artista que era, mas também que o artista não existiria sem os profundos conflitos do homem que se escondia por trás dele – e isso é o que Bob Dylan afirma o tempo todo, em todas as mais de 300 páginas iniciais de suas memórias íntimas e discretas.

&

NÃO À INVISIBILIDADE
Um antropólogo, um rapper e um militante da favela unem-se para questionar a violência

Cabeça de Porco vem compor o quadro literário atual como uma contribuição inusitada, até difícil de compreender num primeiro momento. O estranhamento inicial é causado por seu trio de autores, em que cabem um antropólogo e cientista político de renome (Luiz Eduardo Soares), um cantor e compositor de rap (MV Bill) e um empresário de rap e articulador militante da Central Única das Favelas (Celso Athayde).

As primeiras 67 páginas do livro manterão o leitor desorientado: Bill e Athayde assumem a narrativa, relatando experiências pessoais em situações extremas do cotidiano de violência e tráfico em favelas de nove diferentes capitais, do Norte ao Sul do Brasil. Às vezes espetaculares, os relatos vão formulando um ponto de interrogação na mente do leitor: qual é seu sentido, quais são suas intenções?

Na segunda parte, Soares entra em ação, procurando conferir com prosa clara, objetiva e coloquial um fio condutor teórico e ideológico para o que se está tentando dizer. Pouco a pouco, o antropólogo que conhece as entranhas da polícia e dos departamentos de segurança pública (dos quais foi expelido em meio a denúncias de parte a parte e a mágoas não curadas) põe-se a refletir sobre as causas da violência e da desigualdade social no país, sobre a inadequação de políticas públicas quase sempre adotadas, sobre possíveis soluções.

Também vagarosamente, o leitor vai descobrindo que a estranha presença de Bill e Athayde é justamente a grande razão de existir do livro: a teoria de Soares prega que, na prática, o único caminho a seguir é o da incorporação de personagens quase sempre marginalizados à sociedade produtiva. Ele vai edificando um ideário que tenta reaproximar os estigmatizados (sejam soldados do tráfico, trabalhadores da favela, rappers ou o lumpesinato policial que atua dentro das favelas) de seus duplos espalhados pelo resto da sociedade: a polícia como instituição, os políticos, os cidadãos das classes média e alta que se encastelam no pânico de se ver cara a cara com um assaltante ou seqüestrador potencial.

Fartos exemplos recolhidos em pesquisa de campo procuram ir transformando em realidade prática a teoria esboçada. Embora nessa parte Soares seja o protagonista, os relatos de Bill e de Athayde voltam em capítulos esporádicos, e se tornam cada vez mais pessoais e contundentes.

Uma palavra vira termo-chave: invisibilidade. Soares teoriza e Bill e Athayde traduzem em primeira pessoa a relação de espelho quebrado entre o cidadão incluído e o garoto invisível do semáforo que um dia pega numa arma num esforço simbólico desesperado de se tornar socialmente visível – para esse menino, dali em diante, a trajetória será de tragédia anunciada.

O livro de teoria social torna-se eletrizante, quase romance ou cinema, quando os dois co-autores contam suas próprias histórias. MV Bill narra uma de suas primeiras experiências mistas de invisibilidade e discriminação racial: o trabalho adolescente como carregador de compras num supermercado. Parte dos princípios éticos que povoavam seus pensamentos ao acompanhar uma madame até seu apartamento e chega à humilhação perante patrões e colegas, após uma suposta tentativa de flerte entre o carregador e a filha da madame.

Athayde conta em tom quase corriqueiro uma experiência de crueldade inaceitável: narra que quando menino participava, como “ator” e para ganhar uns trocados, de lutas em rinhas que não eram de galos, mas sim de meninos.

A teoria de Soares encontra o espelho chocante da brutalidade de uma sociedade que admite transformar crianças em galos de briga, enquanto dissimula uma falsa ignorância sobre o que acontece ali do outro lado do espelho. Reconhecendo-se na corda bamba da incerteza sobre como tapar um poço social que parece sem fundo, Soares demonstra em pequenos atos práticos o que há de viável por se fazer: subtrai do estigma e da marginalidade dois moradores da Cidade de Deus, que contam histórias terríveis e profundas num substrato (o livro) que antes nem sequer sonhavam ter direito de ocupar. – POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

A obra: Cabeça de Porco (296 págs., R$ 33,90), de Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde. Editora Objetiva.

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