aos quase 37 anos, posso finalmente dizer que eu marchei para jesus. vinha eu para calmamente para o trampo num dia ensolarado de feriado quando me vi forçado a, literalmente, mergulhar para dentro da marcha para jesus, que enchia de cores a avenida paulista (segundo o uol, são “aproximadamente dois milhões” de fiéis na rua nesta quinta-feira de sol).
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para que eu vencesse um mísero quarteirão, foram, sei lá, uns 20 minutos. eu trotava vagarosamente junto à multidão e me sentia mais ou menos numa marcha fúnebre, como se o vagar respeitoso do féretro fosse devido à presençausência morta do defunto. o povo ao meu redor gritava, em coro, que “deus/ é/ fiel”, e eu, zonzo a princípio, entendia “pê/ efe/ ele” e desnorteava. maionese total, porque ninguém nesse mundo grita “pfl”, nem mesmo numa marcha para jesus.
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ok, acabo de transbordar dois preconceitos de uma vez só, atribuindo morbidez intrínseca aos amantes de jesus e considerando que não possa ser legítimo o ato de amar o partido da frente liberal (dos circunspectos antonio carlos magalhães e jorge bornhausen, expoentes da direita brasileira que se espraia da bahia a santa catarina, e até mais longe que isso). é que ninguém é de ferro, né?
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mesmo não sendo de ferro, tento me redimir e admito que gostei. que gostei de estar por minutos dentro da liberdade coletiva de pessoas que marcham para jesus. que fiquei feliz por lembrar que dentro de uma mesma semana e de uma mesma avenida caberão o orgulho por jesus e o orgulho pela diversidade sexual. a avenida paulista, nesta semana de maio de 2005, é o próprio arco-íris, a soma de todas as cores de que tanto gostam os negros gilberto gil e jorge ben (jor).
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e então me escafedi pelo buraco do metrô, rumo ao emprego, para longe daquela idéia que tanto me desgosta, da suposta fidelidade de deus – fiel a quem, caras pálidas?
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mais tarde voltei à rua para almoçar, e dessa vez preferi evitar a multidão – ainda bem que na paralela da marcha (“marcha” puxa para si o termo “fúnebre”, mas puxa também o termo “militar”, não?) que sai da consolação em direção ao paraíso existe a santa alameda santos.
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na alameda de todos os santos, assisti a outra cena inusitada. um homem quase idoso, de vozeirão grave e aspecto de trabalhador informal ambulante ou algo parecido, passava em frente ao chiquitíssimo hotel renaissance, contra o qual erguia altos brados: “olha a polícia federal aí, gente… se fosse o tempo de figueiredo vocês não iam ter essa mamata toda, não… é lavagem de dinheiro… é queima de arquivo… é tráfico de armas… é maconha… cambada de sem-vergonha…”.
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não concordo com a noção do homem, de que a corrupção fosse menor na ditadura militar que hoje em dia – discordo frontalmente, acredito no contrário (entre um escândalo nos correios e 30 mil torturas no porão, sou obrigado a eleger a primeira opção). mas não posso deixar de me encher de júbilo pelo simples fato de aquele homem estar exprimindo em voz altíssima suas OPINIÕES. admiro e felicito sua voz grave e nada temerosa (a alameda dos santos estava cheia de policiais por todos os recantos) contra o modo como ele, por dentro de si, vê os hóspedes do hotel renaissance.
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porque, srs. hóspedes da renascença, vocês podem achar que pobre é tudo ladrão e vagabundo – pois os pobres, srs. hóspedes, pensam o mesmíssimo (e até pior) dos srs. amor com amor se paga, srs. hóspedes e srs. moradores (de rua). abram os olhos e os ouvidos, srs. hóspedes, o brasil não é só para hóspedes.
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[ah, puxa, e hoje é dia do aniversário do meu querido antônio rogério toscano… você (não) sente, (n)e(m) vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu (grande) amigo: feliz aniversário!]
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e olha que engraçado. a passeata para jesus parte da consolação e desliza em direção ao paraíso… bem o inverso da parada gay, que neste domingo fugirá das sombras do paraíso [alô, dr. joão silvério trevisan, lembranças para seu lindo livro “devassos no paraíso”] à procura de alguma consolação, de algum ideal democrático de (praça da) república… mesmo que aqui tudo o que se move ganhe o nome postiço de “parada”, é bonito ver quanto movimento existe ao meu redor (e, quero crer, também dentro de mim).
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ih, peguei o expresso 2222 e viajei na maionese. o que eu queria mesmo era apenas apresentar um pequeno antídoto à suposta fidelidade de deus – contra dogmas em geral, nada como um bom funk carioca.
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e eis que eclode o funk, esse incompreendido. na reportagem da “carta capital” 338, de 20 de abril de 2005, o pancadão foi o maioral. vem, popozudo, sacode o traseirão.

O FUNK SAI DA SOMBRA
Livro e documentário propõem reflexão sobre um gênero marginalizado

Por Pedro Alexandre Sanches

Sim, os bailes de funk têm fascinado novos playboys e patricinhas a cada dia. Mas, não, não é só a nata da sociedade que vem atendendo aos apelos sexuais e sociais explícitos dos funkeiros cariocas. Paralelamente, começam a surgir trabalhos que miram sob vínculos de pesquisa e reflexão o movimento musical que viceja nas favelas cariocas.

É o caso do livro recém-lançado Batidão – Uma História do Funk (Record, 280 págs., R$ 42,90), em que o jornalista Silvio Essinger traça uma biografia do gênero musical, desde seus precursores dos anos 60 e 70. É o caso, também, do filme Sou Feia, mas Tô na Moda, da diretora Denise Garcia, que traduz aquele imaginário para linguagem audiovisual, num documentário de 60 minutos que permanece inédito no Brasil, mas já teve sessão concorrida em março, em Londres, ponto de irradiação da noção de que o funk carioca seria “a nova música eletrônica”, em tradução tipicamente brasileira.

Profissionais europeus também circulam pelo Rio, captando fonogramas, imagens e informações para compilações, documentários e exposições – o alemão Daniel Haaksman, por exemplo, prepara com as fotógrafas brasileiras Adriana Pittigliani e Daniela Dacorso uma mostra sobre o mundo funk local, que deve rodar capitais européias em 2006.

Híbrido controverso de funkeiro e rapper, o músico Mr. Catra (autor dos versos “ô, simpático/ pára de formar caô!“), 36 anos, puxa dessa meada o fio que acredita explicar o surto de interesse: “Como sempre acontece no Brasil, tudo vem de fora para dentro. Precisou o funk tomar conta lá fora para começar a ser respeitado aqui. Na realidade todo mundo já curtia, mas não dizia. Agora ficou fácil”.

Catra é dos personagens mais controvertidos do livro de Silvio Essinger, um carioca branco e louro de 34 anos, que viveu no Irajá até os 13, em meio à profusão das equipes de som que produziam bailes suburbanos de black music. Sem deitar teses, Batidão vai passeando pelo pioneiro Rap da Felicidade (1993), pela repressão policial que confinou o funk nas favelas, pelos “proibidões” (de suposta apologia ao crime), por ondas recentes de dispersão na sociedade (Bonde do Tigrão, MC Serginho e Lacraia etc.).

O autor locomove-se entre questões estéticas e políticas ao justificar o projeto – antes, escrevera um livro sobre o rebelde movimento punk dos anos 70. “Se coloco em ação o crítico, a qualidade é um problema. O funk vai constituir uma obra? Provavelmente não, do modo como entendemos música popular. Mas o que me faz ver qualidade ali é a vontade deles, que não se prende a nenhuma amarra, e o compromisso de fazer música que pegue no baile, mas lide com a realidade.”

Ele localiza na relação com a indústria fonográfica outra subversão do funk: “Muitas músicas estouram antes mesmo de saírem em CD, subvertem toda a lógica da indústria. É uma saudável volta aos tempos em que a música aparecia na tradição oral antes de virar sucesso de rádio”.

A tensão entre estética e ideologia e o trânsito do punk ao funk também são vividos por Denise Garcia, 37 anos, que divide com o cartunista Allan Sieber a direção da produtora Toscographics: “A decisão de fazer o filme foi política e ideológica, não estética, apesar de eu gostar de batida forte, de gostar desde sempre de punk rock. A atitude do funk é a mesma daqueles ingleses dos famosos três acordes. Mas no nosso caso há a voz das mulheres – e, mais, das mulheres brasileiras”.

Carioca branca que viveu em Porto Alegre até 2000, Denise compromete-se com o novo (e explícito) discurso feminista que vem eclodindo do funk, nas vozes de garotas como Tati Quebra Barraco (de Sou Feia, mas Tô na Moda: “Tô podendo pagar hotel pros homem/ e isso é que é mais importante“) e Deize Tigrona (de Injeção: “Tá ardendo, eu tô agüentando“). “As funkeiras falam de sexo, são lúdicas, têm articulação verbal. Que mulher faz isso hoje em dia? Não me ocorre.”

Seu filme transpõe ao vídeo os exemplos da gordinha Tati, que aparece cantando de baile em baile aos oito meses de gravidez (“minhas amigas, àquela altura, não podiam fazer mais nada, e lá está Tati dizendo que grávida não é doente”), e o da Gaiola das Popozudas, que tem entre suas integrantes uma anã. “Isso é o máximo, ela é anã, tem filho e dança, é uma forma de dizer que toda mulher pode ser sensual”, opina Denise. Ironia histórica, a funkeira anã tem o mesmo nome daquela que, segundo os sambistas Ataulfo Alves e Mário Lago, “era mulher de verdade” e “não tinha a menor vaidade”: Amélia.

Denise sonda o significado do que aprendeu filmando as meninas do funk: “É um grito. Elas falam de sexo abertamente, coisas que a gente da classe média fala só com as amigas, cochichando. Ninguém mais fala que aquelas mulheres de silicone são objetos sexuais, mas quando surgem essas meninas, que as pessoas adorariam que fossem invisíveis ou visíveis só lavando seus pratos, aí não pode. Ouvindo elas, passei a me sentir mais à vontade como mulher, menos invisível”.

Deize Tigrona, uma das estrelas de seu filme, é prova viva. Com 24 anos, casada e mãe de uma filha, há poucas semanas Deize voou de avião pela primeira vez, da Cidade de Deus para São Paulo, onde cantaria na boate de classe média alta Lov.e. Ela fala sobre si e sobre o porquê de quase ter perdido o vôo: “Sou empregada doméstica em Jacarepaguá, saí às 17 horas e fui fazer a unha. Perdi o vôo, tive que pagar R$ 100 para pegar outro. No outro dia, a patroa falou: ‘Que cara de cansada’. Contei tudo, a mulher quase deu um treco pra trás, ‘nossa, tenho uma artista em casa’. Agora ela não fala mais mal do funk. Toda semana pergunta se fiz algum show, me aconselha a economizar o que ganhar”.

Deize saca argumento simples e direto para defender sua música: “Para mim, funk tem qualidade, e se não tiver vai passar a ter. Você é da classe média ou alta? Eu sou da baixa, e você está me telefonando…”

Carioca do Borel, Mr. Catra usa seu discurso para puxar orelhas das classes mais altas, carregando tintas na ironia: “Alguém quer acabar com a violência no Brasil? Como todos sabem, vivemos num país idôneo, sem corrupção, colarinho-branco. Na favela não há fábrica de arma, plantio de maconha. As pessoas aqui são impossibilitadas de viajar de avião, têm antecedentes criminais e tal. Então como as drogas e as armas chegam à favela? Se legalizassem as drogas de um jeito decente, dando carteira assinada e apoiando a reabilitação de usuários, o tráfico acabava. Mas não, só se marginaliza ainda mais. Para viver rico nessa sociedade podre, é melhor continuar mendigo”.

Deize Tigrona toca no mesmo conflito, quando reflete sobre ser citada em livros e estrelar filmes que passam na Inglaterra, mas seguir seu dia-a-dia de faxineira: “Para mim é difícil dizer ‘sou artista’. Apesar dessa fama, não tenho nem dinheiro para trocar a laje de casa. Me dizem que tenho que ter mais ambição, e realmente tenho achado que preciso querer mais mesmo”.

A propósito: segundo Denise Garcia, não são raros os funkeiros que se desdobram em nove shows por semana, por R$ 400 a cada baile – mais que R$ 14 mil mensais. “Ou seja, eles ganham mais do que eu!”, espanta-se. “É inclusão social feita por eles mesmos, sem precisar da nossa aprovação. Criaram um meio de ter identidade dentro e fora da favela, é quase um milagre.” O lado de cá ainda não entende bem, mas já começa a se debruçar sobre o fenômeno.

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