quem passa por aqui já me ouviu tocar repetidamente no nome de joão bosco, e nem eu mesmo estava entendendo muito bem o porquê dessa insistência. após uma semana em que reouvi, emocionado, discos dele dos anos 70 e dos anos 80, acho que começo a perceber por que é que tenho pensado tanto em joão bosco (e, por conseqüência, em seu parceiro mais contumaz, aldir blanc).
reouvindo o que esses caras diziam nas décadas de 70 e 80, me ocorre que um brasil de que bosco & blanc falavam cotidianamente está acontecendo, tantos anos depois, finalmente. melhor falando, esse brasil já acontecia (tanto é que b&b o transformavam em crônica musical) – a novidade de agora é que parece que ele está ganhando a avenida central, explodindo, eclodindo de um recalque de décadas, talvez séculos.
ouvindo, relembro que b&b faziam músicas (sambas) & letras (cordéis suburbanos), er, vulgares…, er, cafonas… excitavam pudores, incômodos e pudores incômodos na gente, quando desenrolavam os novelos da “ponta de um torturante band-aid no calcanhar”, das “línguas rubras dos amantes” e da “dor no coração vermelho”, de “rabada com angu, rabo de saia”, da dona que “costurou na boca do sapo um resto de angu” e avisou que “marido infiel vai levar rasteira”, do “latin lover” confessando que “fascínio tenho eu por falsas louras”, da dona que “levou as minhas cuecas prum bruxo rezar”, de um “galã se espalhando, dando”, do strip-tease da “crooner do norte, nem aplausos nem vaias, um silêncio de morte”, de um visconde de taubaté “sábio sabugo, filho de ninguém, espiga de milho, bobo sabido, doido varrido, nobre de vintém”, da escatologia d'”essa vontade de soltar um barro” (ess, afrodite se puder, era cantada em duo com príncipe paulinho da viola), da morbidez urubu de “tá lá o corpo estendido no chão”, da tarde caindo feito um viaduto…
um imaginário vulgar, ora, direis, nobre deputado que vê estrelas… mas, sim, um imaginário bem brasileiro (brasileiro de minas gerais, de onde escapuliu joão bosco, e brasileiro do rio de janeiro, onde estacionou aldir blanc), brasileirinho, brasileiríssimo, daqueles que nos cegam as vistas vesgas, de tão corrriqueiros, familiares e conhecidos que nos são.
prima-irmã da bandeira vulgar, reencontro também sua flor-irmã, outro dos lados b de b&b. o brasil que eles fotografavam era o das grandes festas populares, de dionísio solto endiabrado nas ruas, como em “dois mil e índio” (do disco “gagabirô”, barclay, 1984), retrato de escola de samba do carnaval carioca em que o narrador desfila “de fraque sabendo que o fundo tá aparecendo, anjo do inferno: brasil, índio do ano 2000”.
desse mesmo jardim de rosas que falam, quase choro ao reouvir “comissão de frente” (do disco homônimo, ariola, 1982) – põe tento nestes insights afetuosíssimos sobre o que reluz (é ouro em pó) durante uma noite na sapucaí ou no sambódromo: “fralda cor de abacate/ (…) zumbi no repique/ grega dando chilique/ índio de esparadrapo/ marajós de irajá/ ícaros de icaraí/ e sandália havaiana/ (…) sheik de pilantragem/ frescuragem de paca (…)/ tirolês de cueca/ e um rebanho de vaca”. da paca e da vaca, a letra de aldir pula sem escalas em cima no “açougueiro”, na cruenta realidade nacional que as luzes & chamas de joãosinho trinta não apagam – tome a conclusão colossal: “a comissão de frente, se a maré tá mesmo brava demais, passa atrás”.
prima-flor da festa, a bandeira do brasil que eles fotografavam era a das lutas sociais, olha só o “rancho da goiabada” (de “galos de briga”, rca, 1976): “os bóias-frias, quando tomam umas birita espantando a tristeza, sonham com bife a cavalo, batata frita… e a sobremesa é goiabada cascão com muito queijo, depois café, cigarro e o beijo de uma mulata chamada leonor… ou dagmar…” – os brasileiros dali, do rancho da goiabada, “são pais de santo, paus de arara, são passistas, são flagelados, são pingentes, balconistas…” que protestam-hibernam-vegetam “dançando-dormindo de olhos abertos à sombra da alegoria dos faraós embalsamados”.
atenção ao dobrar uma esquina, atenção, menina: você acompanhou a marcha dos sem-terra do brasil profundo rumo à profundíssima brasília, poucos dias atrás? acompanhará em são paulo a marcha das minorias sexo-sociais que, na avenida-paulista-brasil, ainda leva o nome antigo de “parada gay”? vê levantarem do hibernatório as legiões de brasileiros que hoje em dia marcham rumo à alegoria dos faraós embalsamados?
flor pestilenta, o brasil (“angra desolada, dia que não raia”) que b&b clicavam era o da miséria acuada nos morros, vilas, favelas & subúrbios, botão lilás de obras-primas bêbadas de odor, ora, respire-escute só. em “o mestre-sala dos mares” (de “caça à raposa”, rca, 1975), eclode a revolta da chibata, em solo úmido do lúmpen, o mar, a puta e o corsário presos nos mesmos arrecifes: “salve o navegante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais”. em “de frente pro crime” (do mesmo disco), o corpo estendido-assassinado no chão causa comoção na vizinhança, mas ao final se fecha a janela estendida pro crime: “sem pressa foi cada um pro seu lado, pensando numa mulher ou num time”. cintilante, “galo, grilo e pavão” (de “comissão de frente”, ariola, 1982) desfila na favela narrando a convivência de três chapas bicheiros, em direção a módico desfecho, janela aberta para “pequenos” crimes: “grilo é procuradô/ pavão manda matá/ galo cumpre a incumbença”.
pairando sobretudo e sobre todas, dormita (um olho vigilante) a flor de câncer “tiro de misericórdia” (do álbum homônimo, rca, 1977), relato da vida de um menino desses que crescem “subindo em pedreira que nem lagartixa” e em 2005 são chamados dadinhos, zés pequenos, falcões, vapores, soldadinhos (de chumbo) do tráfico. após a descrição cinematográfica de um temporal de orixás, eis a coroação evanescente do menino-vapor barato: “grampearam o menino do corpo fechado e barbarizaram com mais de cem tiros/ 13 anos de vida sem misericórdia e a misericórdia no último tiro/ morreu como um cachorro e gritou feito um porco depois de pular igual a macaco/ vou jogar nesses três que nem ele morreu: num jogo cercado pelos sete lados”, estuprados os sete buracos de sua cabeça. (briga de) galo, grilo (na cuca) & pavão (mysteriozo).
se no brasil de b&b dois sambistas urbanos meio brancos de classe mais ou menos média portavam a voz dos desvalidos, é de ver que aquele brasil agora acontece e se desvenda: em vez da voz duplicada de bosco & blanc, transbordam dos morros, vilas, favelas, subúrbios, ipirangas & sãos joõoes da miséria acuada para a ação criativa nomes, entidades & pessoas como mano brown, mv bill, “cabeça de porco”, celso athayde, cufa, rappin’ hood, deize tigrona, tati quebra barraco, mr. catra, afrobras, faculdade zumbi dos palmares, ferréz, paulo lins, helio santos etc. etc. etc. o mestre-sala agora é a porta-bandeira, ou vice, e/ou versa.
estavam embutidos (enrustidos?) nisso tudo aí outros temas-monolito de b&b: a anarquia sócio-oficial vigente, a balbúrdia racial, o racismo explícito e o polvo de mil léguas submarinas dos preconceitos de classe. respingo de volta no presente, vendo que aqui em meus textos de hoje persigo meio sem querer esses mesmos temas, mesmo também sendo um meio branco de classe mais ou menos média receoso de parecer querer me arvorar a defensor dos desvalidos (eles não precisam disso, não podem precisar, e é isso que este novo brasil tenta garbosamente demonstrar por marchas, passeios, passeatas, protestos e festas de arromba). penso nos pretos, sempre e sempre e sempre, e nem sempre sei por que é que penso neles tanto assim. mas então reouço “cabeça de nego” (barclay, 1986), e compreendo como & por que aquela consciência e aquela paixão se implantaram em meu cérebro.
era 1987 quando, pós-adolescente estudante de farmácia, 18 anos, dei de ouvir e ouvir e ouvir e reouvir sem parar os discos de bosco, primeiro o levemente mais ameno “ai ai ai de mim” (cbs, 1987), logo em seguida “comissão de frente”, “gagabirô” e “cabeça de nego”. de frente pra cabeça branca do nego bosco, me reencontro com minha cabeça de nego, implantada em mim pelo barba-negra de minas, que então já começava a se separar de blanc. elis regina, gaúcha descobridora de mineiros & cariocas, havia morrido tragicamente em 1982, e a partir desse evento (e/ou da ditadura agonizante, das diretas já, da década yuppie) a linguagem começou a se estilhaçar na obra de seu criador-criatura. cresciam os esgares tipo novilíngua de bosco, “gagabirô, gagabirá”, “gadazumbambo liiii”, “zimba cubacubá, zimbacubão, zimbacu”, “ierululê, brinquedo de papel maché”, outras afro-onomatopéias assim.
parecia que a linguagem militante se esfarelava, mas mais ou menos. rítmico, ritual, afro-sambista e percussivo, “cabeça de nego” mergulhava na mágica & trágica condição negra brasileira, partindo de “quilombo” (regravação de tema racial do primeiro “joão bosco”, o lp de estréia da rca, longe em 1973) e recolocando na passarela da avenida-onomatopéia-brasil pixinguinha, joão da baiana, clementina de jesus, sinhô, donga, silas de oliveira, paulinho da viola, joão do pulo, candeia, angela maria, belchior (branco de cearenses dores negras), martinho da vila (co-autor do deslumbrante canto ritual “odilê odilá”, que encerra o disco em afro-samba)…
no passeio por “cabeça de nego”, eis que me reencontro com “da áfrica à sapucaí”, minha predileta 18 anos atrás, que eu amava sem entender direito o que dizia. o que dizia? deixo as palavras a bosco & blanc: “livre, na mãe africana, louvando meu tantã/ preso, marca a rebeldia, traz pra senzala a luz do amanhã/ negro, meu são benedito, tô nessa procissão/ ó, senhora do rosário, vê meu calvário e minha aflição”. me reintegro às conclusões de b&b: “samba é a voz que me guarda enquanto eu aguardo a procissão se espraiar/ de santo cristo a oswaldo cruz/ esperando a vez do morro se unir pra arrebentar”.
a voz do morro, o morro não tem vez, a voz do morto, a voz do torto, a vez do morro. quer saber se hoje, 2005, essa voz está se unindo pra arrebentar? rebobine a marcha dos mst, vá domingo à parada de todas as sexualidades, abra a janela de frente para o brasil e veja um brasil – não aquele de blanc (“o brasil não conhece o brasil”), mas um brasil que começa a conhecer o brasil. a refavela.
esse brasil já está em toda parte.
veja os erros & acertos (muito mais esses) do presidente barba-branca-e-negra lula, ouça suas metáforas, dance a marcha-rancho da goiabada.
veja a novela das sete na globo, as protagonistas pretas na tevê, o grande perdedor, o big gay mano bróder.
assista também àqueles que renegam esse um brasil que o outro viu na tevê (“eu vi um brasil na tevê”), conserve a família e vá ao cinema vê-los vibrar.
vá ver “bendito fruto”, filme brasileiro de sérgio goldenberg que estoura, com toda delicadeza, a membrana invisível da quarta parede do teatro-televisão [e então experimente comparar com “casa de areia”, a geleira azul da solidão (cito agora “corsário”, de, adivinhe, b&b), o brasil televisivo-publicitário que não quer se ver tanto assim, mesmo contando com tantas fernandas bem brasileiras em seu escopo]. preste atenção nos olhares dos personagens de “bendito fruto”, nas atuações dos atores de “bendito fruto”. eles, personagens e/ou atores, não são mais giseles, sandys ou juniors – eles são passantes, passistas, pingentes, traficantes, balconistas, caipiras, manicures, malucos, galãs flagelados de tevê.
embebido no leve brasil carioca “do sim” (o de “bendito fruto”), compare-o com o brasil paulista “do não”, pesadelo, estigma da cidade-estado que se nega o tempo inteiro, autoflagelação feita no fígado de sérgio bianchi: “quanto vale ou é por quilo?”. misture tudo na sua cabeça, o brasil do sim e o brasil do não, liquidifique, chacoalhe, beba & vomite, qual os mendigos de bianchi, um brasil, um brasilzão, um brasil inteiro. nele caberão panorâmicas de galãs & mocinhas gordos, suarentos, pretos, bichas & mulheres tããããão reais de “bendito fruto”. nele caberão closes de cínicos, cruéis, covardes & calados de “quanto vale ou é por quilo?”, retrato estridente a cuspir que a senzala de 118 anos atrás é a mesma senzala de hoje, essa de que têm falado tantos brasileiros bravos de 2005 e que o brasil-fígado (não só o de bianchi) tenta diuturnamente desqualificar. o sim é o não, & vice, & versa.
não sei se há um brasileiro vivo com 118 anos de idade. se houver, seu tempo de vida terá sido um ano maior que o tempo de vida da escravidão brasileira. 117 longos anos é o ínfimo tempo de existência de uma pessoa (você), um pouquinho mais que isso. é ferida aberta, viva demais. só agora somem do mapa do brasil pessoas que tinham grudadas na própria carne e na própria história a memória do que era a escravidão institucional (quanto à semi-escravidão da favela, nova senzala, essa ainda demorará o tempo de vida de várias gerações de brasileiros). essa extinção coincide com um levante negro (de todas as cores) – um levante suave, elegante, discreto, inteligente, uma mistura de desfile com passeata, de festa com protesto, de alegria com tristeza.
mas, quando ouvir alguém bradar contra a permanência da escravidão (mesmo que seja um branco escandinavo), não pense que é alguém falando pelas dores dos outros. não é, é você mesmo(a), como aliás sergio bianchi quer planilhar quando equipara a escravidão dos 1700 com a dos 2000. porque se os negros estão (estavam) encurralados nas favelas brasileiras os brasileiros estão (estavam) encurralados na favela-brasil. porque os brasileiros eram-são-somos-(não)-seremos os negros do mundo, lado a lado com outros manos africanos, orientais & quem mais chegar. o levante negro (de todas as cores), preconizado desde há muito por joão bosco & aldir blanc, é o nosso levante. sente-se, levante-se, a massa sente e quer gritar, enquanto o eterno deus mu dança nova-deslumbrante-reluzente-(corpo-&)-mente. este brasil está acontecendo.
[este texto sampleou vários autores da música brasileira que, assim como bosco & blanc, fizeram-fazem-farão o brasil acontecer. mas não é preciso explicitá-los, são consolo que já cansamos de conhecer. por ora, fiquemos com bosco & blanc & goldenberg & bianchi & eu & você & esses índios do ano 2000 que, todos juntos, somos fortes.]