pois meu estimadíssimo sérgio, que mora nos estados unidos da américa, resmungou que nem todos os textos ficam disponíveis na internet, para leitura transcontinental, no site da “carta capital”. alô, serjão, já que você me estimulou, coloco em prática um plano que já vinha de algumas semanas, mas nunca virava realidade. com alguma defasagem de tempo e de atualidade, vou passar a colocar aqui no blog os textos que venho publicando na revista. bem-vindos à “enciclopédia pas de variedades”!

em primeiro lugar, bem, vários dos textos (mas não todos) ficam arquivados no site da “carta capital”. lá é mais legal, porque cada texto vem com as fotos, tem mais cara jornalística e tal. mas, bibliotecário de mim mesmo, copio ao menos as partes escritas do pacote todo (as resenhinhas de cds não vou colocar, e continuo convidando à leitura da revista inteira, aquela da banca, naquele formato antigo, demodée e esquisitão chamado papel). as convenções gráficas, ortográficas e gramaticais serão as da revista, e não as do blog, ok?

então. a reportagem de estréia (que está no site) foi um perfil do rappin’ hood, na edição 331, de 3 de março de 2005. repara aí, mana.

O ANTI-ROBIN HOOD
O rapper Rappin’ Hood reivindica seu lugar na sociedade e seduz sambistas, Roberto Carlos, Caetano e Lula

Por Pedro Alexandre Sanches

Charles Anjo 45, personagem de Jorge Ben, era “Robin Hood dos morros, rei da malandragem” – nos dizeres da crônica musical de 1969, “um dia marcou bobeira e foi tirar sem querer férias numa colônia penal”. Transcrito para 2005, o mito se vira do avesso e se transforma em Rappin’ Hood, um paulistano preto, de 33 anos, que canta rap e busca destaque num ambiente liderado com folga pelos Racionais MC’s.

Artista pronto para mostrar ao Brasil um novo modelo de estrelato pop, atualiza e complementa Robin Hood e Charles Anjo 45, mas no trajeto contradiz os rótulos que nosso senso comum se acostumou a carimbar em caras como ele.

Idealizador do grupo de hip-hop Posse Mente Zulu e autor do quase sucesso Rap du Bom (“Quem é sangue bom/se liga no som/ aumenta o volume/que é rap do bom“), Rappin’ não é Anjo 45. É menino pobre da periferia, mas não do morro, e sim da Vila Arapuá, zona sul de São Paulo.

Sua família, coesa em parte, se ramifica pelo Ipiranga e pelo interior do estado – nos anos 70, Chiquinho, avô materno ligado ao Partido Comunista, teve de enterrar livros no quintal de casa em Araraquara para tentar driblar “visitas” da ditadura militar à cata de subversivos.

Rei da malandragem o neto de seu Chiquinho nunca foi: “Malandragem é trabalhar”, declara em Sou Negrão (2001), mesmo rap em que a sambista Leci Brandão (“minha madrinha musical”) declara que “o rap é o novo partido”.

Membro da quarta geração de homens livres em sua família (“meu bisavô materno foi ventre livre”), Rappin’ herdou como sobrenome apenas o prenome de um dos escravizadores da linhagem, Luiz – seu nome completo é Antônio Luiz Jr.

Assume que flertou com o outro lado da lei no passado, mas de suas “profissões” aquela foi a mais breve: “Quando era mais novo, até fiz um ou outro pequeno delito. Cheguei a ir no embalo e fazer assalto à mão armada. Mas tinha medo, ladrão não pode ter medo”.

Diz que nunca viveu a experiência de passar “férias numa colônia penal” e justifica em tom de brincadeira seu “insucesso” como fora-da-lei: “Iam perguntar quem foi, ‘foi o neguinho com mancha no olho’. A mancha foi o que me salvou”.

Está se referindo ao vitiligo que cobre com precisão estética o arredor de seus dois olhos. Rappin’ Hood concentra o vitiligo como numa versão branca da máscara negra de Zorro, que não tolera estratégias de dissimulação à maneira de Michael Jackson.

Rappin’ Hood é o avesso de Robin Hood. A fórmula de roubar dos ricos para dar aos pobres não lhe pertence – ele quer, antes, reivindicar de volta para si o que sempre lhe foi de direito.

Anos após passar pela Universidade Livre de Música e começar a cursar Educação Física, acaba de reingressar na vida universitária, estudando Administração na Faculdade Zumbi dos Palmares, que instituiu cota de ao menos 50% para seus alunos negros. A mensalidade custa R$ 260, e ali ele compartilha aulas com o que classifica como seu povo: empregadas domésticas, funileiros, empacotadores de supermercado – e rappers.

“Não acho legal que sejam necessárias cotas para que nosso povo possa estudar. Mas o mundo tem uma dívida com o povo negro. Quero ver a Xuxa preta, “véio”, quero ver protagonistas negros nas novelas, quero que meu filho tenha em quem se espelhar. Quando o povo negro foi libertado nos EUA, cada um ganhou como compensação uma mula e uns tostões. Aqui, não, até hoje é ‘se vira, nego, vai beber pinga no bar’.”

A intenção é usar futuro diploma para gerenciar sua carreira – hoje tem um selo próprio, vinculado à gravadora independente (mas de grande porte) Trama, que lançará em abril seu segundo CD individual, Sujeito Homem II.

A mesma gravadora acaba de lançar Raciocínio Quebrado, de seu irmão mais novo, Fábio Luiz, de 29 anos. Usando o codinome Parteum, Fábio também é anti-Robin Hood: cursou três anos de Publicidade na Faculdade Cásper Líbero e morou na Califórnia.

“Tanto meu irmão como eu sempre nos demos bem nas aulas de redação. Uma vez por mês nosso pai nos levava para comer num restaurante melhor, e o que parecia algo banal virava uma aventura nas redações da escola”, descreve Parteum.

Ele lembra a época de colégio: “Ganhei bolsa quando meu pai perdeu o emprego, não podia tirar nota vermelha de jeito nenhum. Numa escola de padres jesuítas, só havia três negros. Por isso me ligo em ficção científica, onde o mais diferente pode estar certo. Me sentia um extraterrestre, nunca tive muitos amigos lá”.

Rappin’ Hood evoca experiências fundadoras para abordar o estigma do vitiligo, com o qual diz buscar convivência de harmonia. Relaciona o aparecimento do vitiligo com um trauma vivido anos atrás – pode chamar o “trauma” de racismo, se quiser.

Rememora que estava encostado num carro, entre amigos brancos, quando surgiu o cidadão (branco) que era dono do carro e da casa em frente. “Só podia ter um preto no meio”, ouviu o cidadão exclamar antes de entrar em casa e voltar com “uma corrente enorme”, com a qual quebrou o braço de Antônio Luiz Jr.

“Dizem que o vitiligo é hereditário ou então tem origem no sistema nervoso, pode aparecer depois de algum trauma. O meu apareceu logo depois dessa história, acho que teve a ver”, elabora.

Sobre o agressor, lembra: “Não sei o que foi feito dele, mas sei que ele pegou uma peninha”. É que seu pai não cedeu ao corriqueiro “deixa quieto” – prestou queixa, oi à Justiça, invocou a lei.

Começava a nascer, pelos braços do pai, o artista de hoje em dia, cuja produção de rimas ricas e complexidade musical colocam e colocarão em xeque no Brasil conceitos já vencidos sobre arte, música, cultura, mercado, indústria, política…

Acontece que Rappin’ Hood é antes de tudo um integrador, um construtor de pontes entre mundos divergentes. Pertence ao universo do hip-hop, que em geral prima por falar de modo simples e direto a um público com que se identifica em profundidade (o de periferia) e por desprezar outros gêneros musicais e classes sociais, especialmente as do topo da pirâmide social. Rappin’ não é assim.

“Acho que há uma certa resistência à mistura, tanto no samba como no rap. Mas, em casa de preto não tem jeito, sempre gostei de samba. Até conheço alguns que não gostam, mas é difícil.”

Luta para fundir dois gêneros que costumam se rejeitar reciprocamente, rap e samba. Seu segundo CD trará uma galeria ímpar de convidados cooptados no samba – ele seduziu o pagodeiro fundador Arlindo Cruz, os pagodeiros de diluição do Exaltasamba e o jovem discípulo de Zeca Pagodinho, Dudu Nobre.

Contrariando praxe de purismo vigente no samba, Arlindo Cruz faz defesa entusiasmada de sua participação num disco de rap: “Gente purista existe em todos os estilos, dizem que até os Racionais MC’s são. Mas o samba, como o rap, fala a língua do nosso povo, do favelado, do pobre”.

Dudu Nobre se irmana ao rap ao justificar a aliança com Rappin’ Hood: “O samba e o rap têm afinidade pelo fato de virem do mesmo buraco, da mesma raiz, de sofrerem o mesmo tipo de preconceito”. “Você quando ouve um bom rap até passa mal”, provocará Dudu num novo samba-rap de Rappin’, Se Toca.

Zeca Pagodinho, que nunca gravou hip-hop, também acaba fazendo coro ao hábito das fusões: “Só escuto velha-guarda e seresta, mas meus filhos gostam de rap, eu compro os discos para eles. Não é misturar e ficar para sempre, é misturar aqui ou ali, fazer umas brincadeiras. Se for bem-feito, está tudo certo”.

Não é só a barreira do samba que Rappin’ Hood ousa atravessar. Aproxima-se sem alarde de facções diversas da esmorecida MPB, carregando ao estúdio Caetano Veloso e o ministro Gilberto Gil.

Trechos de Odara (1977), de Caetano, coexistirão no CD com versos da histórica Disparada, co-escrita em 1966 por Geraldo Vandré, ex-arquiinimigo dos tropicalistas Caetano e Gil.

Ao mesmo tempo alheio e atento ao grande rio da história, diz que inseriu Disparada (“Prepare o seu coração/pras coisas que eu vou contar/eu venho lá do sertão…“), na voz do mesmo Jair Rodrigues que a lançou em 1966, por causa da história de sua família (e de seu pai em particular) com a música sertaneja.
“Um dia ainda vou samplear Tião Carreiro & Pardinho. A moda de viola é igual ao rap”, revolve, provoca e promete.

Se o leitor viu como exagerada a afirmação inicial de que Rappin’ Hood pode moldar um novo modelo de astro pop no Brasil, é bom saber que a lista de admiradores do artista cresce com rapidez assustadora – hoje, inscrevem-se entre seus “trutas” não só os já citados Caetano e Gil, mas também o atual presidente da República e… o “rei” Roberto Carlos.

Rappin’ ri quando lembra do primeiro carinho que Caetano lhe atirou, elogiando Sou Negrão, em que enumerava uma galeria de grandes artistas negros brasileiros. “Ele disse ‘também sou negro, rapaz, você não falou de mim’.”

Mas deixa os olhos malhados se umedecerem quando fala sobre o presidente, cujo primeiro nome é seu sobrenome. “Não acho que ele é o salvador da pátria ou que vai consertar o que está zoado há 500 anos. Mas vejo Lula como o primeiro presidente que é representante legítimo do povo brasileiro.”

Descreve o contato com Luiz Inácio, que o recebeu no Palácio do Planalto em março de 2004, em meio a outros rappers: “Ele é maluco humildão, maluco firmeza, parceiro antigo meu. Mas, puxa, ser recebido por um presidente da República… Para mim vale o que Lula falou olhando no meu olho, que espera acabar o mandato e poder nos encontrar e nos chamar de companheiros. É um exemplo fortíssimo para mim”.

Outro poderoso com cara de cidadão comum que surpreende ao buscar contato direto com Rappin’ Hood é Roberto Carlos. Tudo começou por intermédio do tecladista de Roberto, Wanderley, apresentado ao rapper por um parente, o sambista Dhema.

Um dia, Wanderley atraiu Rappin’ para um show de Roberto, que quis conhecê-lo ao final, nos bastidores. “Quando entrei na sala, ele me olhou lá de longe e disse ‘Rappin’ Hood, he, he, he'”, espanta-se, imitando o riso característico de RC.

Atiçado por Wanderley, Rappin’ compôs para o novo CD a História de um Homem Mau, inspirada em rock homônimo que o então rei do iê-iê-iê lançou em 1965. O rap começa com um longo trecho da gravação original, e ali se consumam outras inesperadas fusões, de rap com rock e a música mais que popular brasileira.

A complicada autorização do autor ainda é aguardada, mas está prometida desde o encontro. “Quem sabe aí a Ordem dos Músicos do Brasil passe a considerar o rap como música”, faz ponte, sonhando com a quebra de outro dos muitos preconceitos que está cansado de conhecer.

O garoto de Vila Arapuá observa que, dos monstros sagrados que admira, ainda lhe falta conhecer o “rei” Pelé. “Quero agradecer por ter trazido tanta auto-estima para o povo negro.”

Estabelece uma metáfora para descrever sua empatia com o pessoal do andar de cima: “Até agora estou querendo entender. Eu não teria coragem de chamar nenhum desses caras, nem de pedir coisa nenhuma. Vejo eles como o King Kong e eu como a mocinha… Eu sou pequeno, os caras são grandes”.

Ao final da entrevista, pede que, de tudo o que falou, só seja extirpado o paralelo que fez entre si próprio e a moça do King Kong, por medo de ser “zoado” entre os seus. O repórter desobedece, pois sabe que o suave antianti-herói inverte também ali paradigmas de brutalidade masculina que o Brasil conhece tão bem.

Algumas observações a mais sobre o anti-Robin Hood: na década passada, Rappin’ abandonou a Universidade Livre de Música por pressão de seu pai, que queria que o filho tivesse uma profissão e considerava música “coisa de vagabundo”. Foi seguir carreira de office-boy, mas voltou ao rap popular brasileiro após um lampejo definitivo: “Depois que assisti ao filme Malcolm X, minha vida nunca mais foi a mesma. Quando vi como ele abandonou o que era antes para ser o líder que foi, era como se estivesse vendo minha própria vida. Fui para casa comunicar minha decisão”.

Embora influenciado pelo agressivo líder negro islâmico norte-americano, Rappin’ Hood, que é evangélico e respeita umbanda e candomblé, elegeu exemplo pacifista ao batizar seu filho de 3 anos (Antonio Luiz Jr. é casado, “com uma negra”). Ele se chama Martin Francisco, em honra ao avô Chiquinho – e a Martin Luther King.

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