e eu fui, pela primeira vez na vida, a um show do fábio jr. não sei se isso soa esquisito, mas devo confessar que várias músicas do cara marcaram minha infância/adolescência, e elas me parecem ótimas até hoje. “20 e poucos anos”, “pai”, “quero colo” (1979), “seu melhor amigo” (do guilherme lamounier!), “eu me rendo” (1980), “hei cara” (1981), “enrosca” (do lamounier, sempre ele…), “seres humanos” (1982)… fábio hoje é cheio de (simpáticos) trejeitos, tem um nariz parecido ao do michael jackson e canta bem pra caramba, mas fico meio atordoado com as músicas mais românticas – tipo “quando gira o mundo” (1985), “felicidade” (1988), aquela das metades da laranja (como se chama?). às vezes ele pula esses limites que atordoam, mas é profissionalíssimo, um excelente intérprete soul-pop secundado por um quarteto brega-chique de vocalistas negros.
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de tudo, o que mais deixou meu queixo caído foi a postura das doces vândalas que lotavam o show às multidões. eu estava lá meio acuado, sentei ao lado de uma moça que me dava beliscões caprichados enquanto pedia para eu roubar uma cadeira da mesa ao lado (meu deus, moça, quem te deu intimidade pra ficar me beliscando forte assim???). mas ela e todas as outras seguiam à risca a praxe e o ritual: vinham produzidíssimas para o fábio, e ao final do espetáculo perderam completamente a compostura e treparam em cima das mesas, talvez para ficar mais à altura do ídolo (fábio, aqui, parecia um pastor de igreja, e me assusta essa coisa de culto, seja do papa ou do pop). não sei direito o que me deslocou meu queixo, talvez o fato de as mesmas mesas em que pouco antes meninas, moças e mulheres depositavam cotovelos, copos e coxinhas (de frango) virarem, num passe de mágica, chão para elas amassarem a festa da uva e saírem trotando, trotando, trotando, quando girava ao mundo, ao encontro de fábio.
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os caras também gritavam “gostoso” e “lindo” (ele fingia não ouvir). tudo aquilo parecia meio inédito pra mim, nos shows a que costumo ir os caras não chamam o cantor de gostoso, as moças não põem o pé na mesa, eu não preciso ficar sei lá quanto tempo na fila (fila, fila mesmo, indiana) para conseguir entrar, nem o show atrasa uma hora e meia sem que ninguém dê um pio sequer. mas, com tanta esquisitice, ainda fiquei pensando: a única diferença desse show para os que costumo freqüentar (sejam de caetano veloso, coldplay ou o diabo-que-te-carregue) é que naqueles em que eu vou as(os) fãs descabeladas(os) não trepam em cima da mesa.
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você pode chamar de grosseria, mas eu posso chamar de enrustimento…
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outro momento esquisito do fim de semana (nossa, como tudo anda esquisito nestes dias): na festa max, no bar/boate/(ex-)puteiro executivo, atual reduto do underground mais desvairado e, er, “moderno” de são paulo, vejo pouco a pouco os excessos do imaginário electro se sublimarem numa outra coisa, ainda mais esquisita. sábado foi o ápice, difícil até de explicar: a pista vinha morna (tipo show de palace), até que rolaram uns funks cariocas – foi frisson imediato, não são só as patricinhas da lov.e que entram em surto diante do funk. a seguir, após uma performance de “thriller” – em espanhol! -, começou uma sessão de… lambadas!!! luiz caldas, beto barbosa, kaoma, acho que cid guerreiro´… alguém me explica, por favor, que eu não tô entendendo?
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não tô entendendo, mas vou arriscar. aquele max incluía um mini-show, também underground, da banda multiplex (que me pareceu uma mistura estranha entre ronaldo resedá e que fim levou robin? – e eu não estou chochando, tome como um elogio): um show em português!!!, na max!!! aí fiquei pensando se aquela sessão de lambada não era uma chochação do dj em cima da banda, que ia interromper o fluxo electro do embalo de sábado à noite para tocar musiquinhas em português. olha, até agora não decidi se era ou não era. só sei que, embora o cantor do multiplex parecesse contrariado (ele faz um estilo bem rock britânico) e muitas pessoas tenham ido embora daquela hora das lambadas em diante, a pista entrou em delírio e diversos casais (de todos os sexos) se puseram a dançar de dois em dois – você consegue imaginar clubber dançando coladinho? nem eu, mas, meninos, eu vi. ou seja, agora é moda, a kaoma colou e quem queria chochar tomou o tiro na culatra. muito esquisito, tá tudo muito esquisito.
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já que o assunto é esquisitice, pra não dizer que não falei do papa: algum de nós imaginou nesta vida ver aquela confraternização planetária (que mais parecia interplanetária, só não tinha marciano) de árabes, israelenses, bushes, africanos, orientais, brasileiros, o escambau?
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no dia em que vi a tv, ficava o chato me gritando no ouvido, que o tempo presente é a guerra entre o oriente e o ocidente, mas, ai, que preguiça. quase sem querer, entre um fábio jr. e uma lambada eu almocei num restaurante árabe (porque agora adoro kibe cru), e garrei a maginá: como pessoas como arnaldo jabor, glória perez e george bush conseguem polarizar assim o mundo entre ocidente e oriente? como se pode acreditar que o mal mora no oriente, se os árabes são capazes de preparar as refeições mais delicados do planeta, elaboradas em mel, trigo, hortelã, grão-de-bico, coalhada, folha de uva, pistache, almíscar…? olha, prefiro ficar com os titãs (do iê-iê-iê): “o inimigo sou eu”. xô, satanização.
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mas, ah, voltando ao funeral do pope. puxa, por mais que os rituais católicos me agridam, tenho que dar o braço a torcer (“onde é que foi parar aquele menino?”) e me emocionar com a confraternização transglobal. mesmo que ela seja falsa, da boca para fora, dure apenas os 15 minutos de warhol. o velhinho podia ser aborrecente e reacionário que era o cão, mas concordo com humberto gessinger: era pop. na morte ele esculpiu algumas das cenas mais impressionantes que a gente já viu, não foi, não? fico aqui pensando que papa existe para morrer, que essa é sua grande função. a parte do culto obsessivo à morte é ruim, mas e essa onda de inimigos se abraçando que o pasamento do supremo tem provocado? mesmo que seja nuvem passageira que com o vento se vai (alô, hermes aquino), a gente tem que reconhecer, vá: é bonito, é bonito e é bonito…
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mais bonito ainda foi a mãe de santo suburbana sendo convidada para o vôo presidencial e perdendo o bonde do lulão. claro que a gente preferia que ela fosse, mas tem uma carga simbólica tão grande ela não ter “conseguido”… a religião dela ainda é das mais ofendidas, agredidas, olhadas de soslaio. ela não ia se sentir bem no meio de tanto fausto e preconça (até o boca de caçapa fhc estava lá!!! junto com o lula!!!! tá vendo o porte da coqueluche da paz do jp ii?). não foi. perdeu o vôo, disse que não tinha conta bancária, esfregou no nosso nariz a própria marginalização a que vive fadada (e ainda tenho que ouvir mais chatos me gritando no ouvido que “até” a macumbeira foi chamada pelo lula. “até” por que, cara pálida? trepa na mesa, querida).
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aliás: aposto que a mãe de santo ia andar de avião pela primeira vez na vida. eu me lembro da minha primeira vez, sei de cor e salteado o que ela devia estar sentindo. a primeira viagem de avião é um terror, mas imagina se além de estrear de gaiato no avião em companhia de severinos, fernandos, rabinos e marcelos rossi (ops, esse, não, que deus é grande!) você ainda tivesse à sua espera, no fim da linha, no ponto final, o papa morto estirado na diagonal? eu, hein, rosa?
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outra coisa incrível: há poucas semanas, conheci na lov.e a funkeira carioca deise tigrona (do funk da injeção, “tá ardendo, eu tô agüentando”). ela é fofa, inteligentíssima, e contava para a gente que naquele dia havia andado de avião pela primeira vez na vida, do rio para são paulo. comentei o medo que ela devia ter sentido, e deise, durona, explicou que não: “não fiquei com medo. só estranhei descobrir que avião faz curva”. ou seja, ficou com medo, sim, né, tigrona?
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o que eu queria dizer: reparou como tem gente andando de avião pela primeira vez na vida (ou fazendo alguma coisa que nunca fez pela primeira vez na vida, ou desistindo de algo pela primeira vez)? eu explodo de felicidade quando são pessoas como a funkeira e a macumbeira (essa ainda vai pegar avião, eu aposto). tem algum significado muito profundo nisso, tem, não? o expresso 2222 tá partindo daqui pra depois, nós estamos no século xxi e a morte do joão paulo ii encerrou o xx de uma vez por todas. a bênção, século xxi, saravá.
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a ponte talvez não seja instantânea, mas tudo isso me leva ao lula. enquanto o brasil gasta todo seu tempo achando ele péssimo, o mundo está apaixonado pelo lula. e eu queria saber por que, e ninguém me responde, porque fica todo mundo ocupado sentando a lenha nos governos brasileiros ou escrevendo textos hipnotizados sobre o papa (concordei, bechara!). mas, diante do “bbb” papal e de cardeais caóticos, bispos abismados e padres pretos, maringá garrou de novo a maginá: sabe por que eu acho que o mundo adora o lula? porque, pela primeira vez, o brasil comete um presidente cuja imagem pessoal bate tal e qual com a imagem geral do país. acho que os gringos tão ligados nisso (será que é o que faz clubbers de londres e britpops e electropavões do centrão de são paulo bailarem, na curva, o funk e a lambada?). que imagem o brasil entregava ao mundo com um jânio todo trançado, com uma fileira de ditadores trogloditas fardados, com a quase inexistência de sarney, com a maria-antonietice alérgica a povo de fhc? e, no contraste, que imagem lula oferece? pode xingar quanto quiser, mas eu vejo só agora o brasil tomando cara de brasil.
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você pode chamar de grosseria, mas eu posso chamar de desenrustimento…
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já que o tédio não escolhe patrão, são paulo veste mais uma vez a túnica do niilismo, mas pelo menos veste democraticamente, sem escolher freguês. poucos meses depois de achincalhar com todas as (muitas) qualidades de marta suplicy, os paulistanos já fazem o mesmo com josé “eu sou nuvem de chuva” serra. é, queridos tucanos, mau humor e intolerância não escolhe partido. o cara tá rejeitadíssimo nas pesquisas, acho que muito mais do que merece até. mas essa é a marca da intolerância, do espírito de choramingação que ainda acomete 9,99 de cada 10,00 brasileiros. crueldade e auto-estima em frangalhos também são valores democráticos…
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falando em niilismo e falta de auto-estima. não é impressionante como joão paulo ii e terri schiavo parecem a mesma pessoa, naquele delírio de morrer/não morrer, de sofrer com/para a platéia, de democratizar martírios e pecadilhos pessoais? será que o pavor da morte, transfigurada em terri e em karol, nos impele a manifestar essa onda súbita de solidariedade internacional, essa que leva bush a schroeder, lula a fhc, dj marlboro ao lov.e, o professor universitário ao “big brother brasil” (aliás, ali o cara é que era gay, mas quem saiu do armário da intolerância foi o brasil inteiro) (dizem que agora só tá faltando joão silvério trevisan e andré fischer selarem seu acordo de paz.) etc. etc. etc.?
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será que é o pulso de vida morando no instante aterrador da morte? sei lá, não sei. mas ainda bem que contra as imagens de wojtyla e schiavo existem as da deise, da mãe macumbeira, de dona marisa, de jean, de grazi, de mv bill e celso athayde saindo do gueto da cidade de deus e escrevendo livro sobre violência em trio com o antropólogo e cientista político luiz eduardo soares (chama-se “cabeça de porco”, mais um título cruel…). como canta raul seixas, mais vivo do que nunca, “o sol da noite agora está nascendo/ alguma coisa está acontecendo”…
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e eu, o pas, aqui no meu cantinho? bem, eu fui, pela primeira vez na vida, a um show do fábio jr.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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