vamos então falar um pouco sobre max de castro e seu novo disco, “max de castro”. começo martelando pregos na parede da obviedade, a dizer que um disco é feito de muitos, muitos, muitíssimos elementos, dos quais provavelmente os dois principais devem ser a “música” e a “palavra”. ponto. aos dois elementos.

a música: silêncio no brooklin, silêncio no brooklyn

corro o risco de agora redundar o texto escrito abaixo sobre daniel carlomagno, mas é porque parece evidente que daniel e max são músicos que agem em consonância, à procura de um objetivo comum: fazer música dos anos 2000 sobre o colchão d’água aquecida e sob e a colchinha de retalhos aveludada da tradição musical popular brasileira. o disco de carlomagno é repleto de referências; o de de castro também é, assim como já eram os dois álbuns autorais que lançou antes pela trama, “samba raro” (2000) e “orchestra klaxon” (2002).

o novo cd, embora seja menos fluente que “orchestra klaxon”, segue-lhe as pegadas, postado um degrau acima na escadaria das escalas multimusicais. “max de castro” é um disco de remixes, embora não comungue, nunca, com a rigidez e a estreiteza de propósitos que dominou a (hoje decadente) cultura de dj e de eletrônica dos anos 90. as referências eletrônicas se amontoam de modo complexo e intricado no decorrer do trabalho, mas não são elas que fazem de “mdc” um disco de remixes.

não são batidas eletrônicas, mas sim células da história da música pop(ular) brasileira (eletrônica inclusive) que se agrupam e se recombinam feito samples, feito colagens operadas em computador, feito remixagens de arranjos que já existiam, mas tinham outro significado antes da intervenção do re-inventor.

tento passar a alguns exemplos, poucos se possível (o disco, repito, é todo acolchoado desses samples e scratches de mpb – não devo ter percebido nem um terço deles todos).

“stereo” é o exemplo mais automático. começa num despiste, pelos versos “nesse frevo/ eu me fervo” – é, pode ser frevo, mas não fica por aí. no todo, além do frevo, “stereo” pula de banda em banda, acumulando referências em geral tidas como incompatíveis umas com as outras. em sua textura, evoca por exemplo aqueles momentos de baile de carnaval em que uma marchinha acaba e a batida cresce na expectativa para o próximo alalaô. ali pelo meio, parece soar lá no fundo do “frevo” de max o mote novelesco de “o preto que satisfaz”, que gonzaguinha compôs, as marketeiras frenéticas gravaram (em 1978) e a novela global “feijão maravilha” celebrizou (“dança frenética, menina”, diz a letra, me salvando de achar que fiquei maluco).

mais um exemplo. “a filha da madame saré” embaralha referências à bossa nova pernambucanizada de edu lobo, e pensamos aqui, inevitavelmente, em “memórias de marta saré”, de edu com gianfrancesco guarnieri, gravada em 1968 pela depois quase sumida marília medalha e em 1969 pela desde então sempre presente elis regina. de elis para rita lee é só um pulinho, e lá está a referência, no raspão “mariana disse: é foda!/ agora virou moda”, ao “agora é moda” (1978) da ruiva, agora (não) é moda.

três outros exemplos, assim de passagem. “sempre aos domingos”, ultrapop, é maciço funk carioca (mas funk carioca dos 70, não dos 90), algo como se tim maia reencarnasse em lulu santos reincorporado em max de castro (não é para menos, trata-se de uma inesperada – e cortante – parceria entre max e lulu). “rosa, um samba para excluídos”, chama-se de samba, mas rebola e se pratica em samba-rock, em sambalanço, em bailão black de subúrbio, gostoso que só ele. e “pixinguinha superstar”, embora a titulação leve a evocações de choro, “rosa” ou “carinhoso”, remixa afro-samba ao gosto de moacir santos, samba-jazz à moda de j.t. meirelles e samba-funk nos moldes da banda black rio. remix, remixudo, remixeira, remixada.

mais um, fortão. “silêncio no brooklyn” e “iluminismo” são faixas que formam par constante, remetendo, ambas, a jorge ben. em “iluminismo”, max inverte o sexo (e faz presumido feminismo – alô, tom zé) do mote contornado por ben primeiro em “deixa o menino brincar” (1965, composta por um tal babu) e, principalmente, em “frases” (1967, regravada por caetano veloso em 1977, sob o título “olha o menino”): “deixa a menina brincar/ porque se a menina não brinca/ a flor se aborta/ e não desabrocha”. não só as rosas de ben se tornam sombrias (este é, aliás, um disco mui melancólico), nem só se citam os cariocas, baianos & outros caetanos de sempre. “deixa o menino brincar” faz também a ponte entre ben & um de seus fãs mais aguerridos, o mano brown dos racionais mcs, sampleador contumaz de jorge ben. é por isso que o “silêncio no brooklyn” de max não remete apenas ao “silêncio no brooklin” de ben (esse era o subtítulo do disco “o bidu”, de onde se extraiu para a posteridade o samba-soul “frases” – “olha o menino, ui… olha o menino, ui, ui, ui…”). o brooklin da periferia rica paulistana (onde jorge ben morou com erasmo carlos, circa 1967) joga-se à periferia pobre paulistana de mano brown, num expresso 2222 que vai voar ao brooklyn do subúrbio nova-iorquino, morada do hip hop, morada do som de mano brown tanto quanto os morros cariocas do charles anjo 45 de ben [mano brown talvez esteja para jorge ben assim como max de castro está para seu pai, wilson simonal – ou o contrário, no descompasso dessa comparação]. na curva de “silêncio no brooklyn” e “iluminismo” cabem, portanto, samba, bossa negra, samba-soul, samba-rock, rock, hip hop, samba-rap etc. etc. etc. m(úsica)p(lanetária)b(rasileira), teu nome é remix.

e o conta-gotas de musicalidade de “mdc” vai nesse pinga-pinga, às vezes incomodando o olho e o ouvido, sempre disposto a se pós-pós-modernizar, como quereria aquela menina que para o gosto de chico buarque anda cada vez mais avoada (remixo, eu também, “essa moça tá diferente”, de 1970). ponto (de exclamação).

na dobra do espelho: ponto de fuga

empresto agora conceitos das artes plásticas, para tentar falar de ponto de fuga (não entendo nada de artes plásticas, se alguém estiver aí corrija por favor as besteiras que vou falar agora).

diz que lá, no centro nervoso dos quadros mais lindos, há o ponto de fuga. esse seria, se não me engano, o pingo de convergência, para onde nossos olhos (ouvidos) são instantaneamente atraídos. é legal, se for isso, que o ponto de convergência se chame ponto de fuga. é para onde tudo converge, mas é também de onde tudo quer fugir (pronto, delirei).

há um ponto de fuga em “mdc”, que me atrai, mas me dá vontade de fugir. ele está, acho, no canto – a fusão entre música e palavra. o canto de max aparece, em “max”, como o ponto de encontro e tensão entre a música e a palavra. em diversos momentos a voz parece se arrastar, parece se desacelerar numa morosidade preguiçosa e receosa de atingir alvos almejados, parece invadir música e letra com um gel pastoso e pegajoso, feito de paralisada vontade de ficar parado no ar, de não ficar aqui, nem ir para ali.

não há exatamente uma peculiaridade nesse artifício (que em “mdc” aparece, principalmente na tristíssima “teia dramática”). sinto-a em outros intérpretes que cantam de modo diferente de max, mas que me vêm a cabeça por razões talvez próximas. penso em ed motta, em pedro mariano e em paula lima (mas não quero pensar em ana carolina, excesso do excesso), que também costumam sair desabalados em busca (ou fuga) de um ponto de fuga (ou busca) que os afaste da objetividade da canção, do efeito pop da canção, do carimbo sem firula. gemem (para ser mais direto e menos delicado), não sei se por medo da frase, ou da melodia, ou da popularidade.

max, nesse aspecto, me faz lembrar o personagem da faixa “vontade de potência” (de resto, e por contradição, uma das minhas prediletas no cd), um “garoto do subúrbio” que “fez muito dinheiro” na música (cantando pagode ou axé, aposto). ali, max critica com senso agudo a redoma do sucesso e do dinheiro, mas, sei lá, nem assim consigo deixar de pensar no próprio max quando ouço tão sincera canção. ponto (de fuga), ponto-e-vírgula, ponto (de busca).

a palavra: teia dramática

e, no final, há o verbo, que max não parece acreditar que domine com fluência (eis mais um ponto, de fuga, e/ou de aproximação, se é que o que nos causa mais medo pode vir a ser o que há de mais bonito em nós).

como acontecia na melodia, também no verbo “mdc” é um disco de samples e remixes. se em música o disco resulta num revolver de toda a terra fofa da mpb, em letra o caso é mais ou menos outro, e ali mora um grande, grande, enorme trunfo. no lusco-fusco de citações melancólicas, ora embaralhadas, outrora um tanto cifradas, uma característica toma a cena de max e de “max”: em seu novo disco, o filho de simonal se revela um sujeito capaz de e disposto a se colocar no lugar de outros, de outros outros, de vários outros, de (quase) todos os outros. é um caso de se vestir, remix de calça, blusa e gravata.

veja só. em “a filha da madame saré”, fala-se de uma tal mariana, quase como se essa mariana estivesse encarnada na pele do narrador (figuras femininas, aliás, são recorrentes e fortíssimas no álbum). como já dito lá em cima, “vontade de potência” encena com ternura algum pagodeiro caído, como “sempre aos domingos” belisca com bom humor e delicadeza as grosserias televisivas de faustões e gugus (“eu não posso acreditar/ que não há nada melhor pra fazer/ numa tarde de domingo que ver televisão”, brinca o funk). em “stratosfera”, max repete recurso (re)lançado por marcelo camelo em rocks de los hermanos (e também em baladas que maria rita tomou para si): canta/fala no feminino, dirigindo-se a um companheiro com o pesar e a perplexidade dum final de amor. dirão (diremos) que é recurso antigo, aquilo mesmo que faz camelo ser tão comparado a chico buarque. mas é episódio a mais de construção de uma nova masculinidade, aquela de que fala maria rita kehl, aquela que pode fazer meninas do morro se encantarem por seus pares rappers e rappas, não pela violência que aqueles meninos guardam neles, mas pela ternura que emana daqueles meninos.

max, filho de wilson e pai de antônio, vai além e ousa testar a abordagem de um possível personagem homossexual (um travesti, ao que a letra parece indicar), em “rosa, um samba para excluídos”. rosa, que de pronto remete a noel rosa (e, por conseqüência, a seu discípulo chico buarque, ele de novo) fala de um(a) rosa que “vive no gueto/ porque ser rosa lhe é proibido”. é meio assim desconjuntadinho, e pode parecer frescura, mas nada disso. o/a “rosa” de max não é como a declamação de linhagem de “paratodos” (1993), do onipresente chico buarque. o samba de rosa não é “paratodos”, é “para excluídos”. ou seja, é para todo mundo, já que não há quem não seja excluído no brasil (ou no mundo?). o travesti da canção final do cd universaliza-o e se iguala a excluídos outros, que sejam mulheres, pretos, mulatos, putas, cegos, surdas, mudos, pobres, nordestinos, migrantes, pedreiros, operárias, gordos, magras, carecas, robertocarlos, lulas, loraburras, rappers, esquizofrênicas, favelados, lavadeiras, lixeiros, diaristas, ídolos caídos, funkeiros, pagodeiros, sertanejos, apresentadores de tv e/ou […preencha com o termo que bem entender…].

porque, manejando a palavra, max de castro descobre que todos os excluídos são idênticos, são uma só pessoa que se repete com ínfimas variações. está ao alcance de nossos dedos a constante opção de gerar brigas fratricidas entre iguais ou olhar para o outro com atenção, ternura, identificação, cuidado, cumplicidade, enfim o despreconceito que nos for possível. a música de max opta pela segunda alternativa, reticências – ou melhor, três pontinhos…

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