gravou em são paulo, no brasil, mas lançou na europa, pelo selo brazilianista britânico ether music. após uns meses, o disco que era brasileiro de nascença virou brasileiro por destino – “bambas & biritas vol. 1”, de (eduardo) bid, ganhou edição nacional, sob a distribuição independente da mcd. o brasil continua(rá) dando volta ao mundo antes de virar brasileiro?

não sei, e não é essa a questão. bid é ex-integrante de bandas tão diferentes como tokyo (alô, supla), professor antena e funk como le gusta; é também produtor de discos de artistas tão diversos como chico science & nação zumbi, pavilhão 9 e mundo livre s/a. em 2004 (e, no brasil, em 2005), se aventura afinal pelo rótulo fatal “carreira solo”. saiu o disco, será que vamos gastar pena, tempo e paciência tecendo comparações do bid solo com o bid líder de big band de black music, ou escrevendo que como intérprete bid é um bom chefe de banda e que como compositor bid é um belo dum produtor?

não vamos, não é essa a questão. “bambas & biritas” é aquele minuto em que tudo se mistura (logo, a gente adora, certo?). é a hora de não compartimentarmos, mas sim aceitarmos que o produtor é o band leader é o cantor é o compositor é o instrumentista é o sampleador é o pesquisador é o cronista musical. solo. e que, sendo solo e sendo tantos num só, costurou um interessantíssimo exemplo de disco solo que não é solo que é solo que não é solo. um disco de produtor que é o artista que produziu o artista que é o produtor. uma banda de um homem só, ou melhor, um homem só que é toda uma banda.

“bambas & biritas” é, nessa confusão de quando tudo se mistura, um álbum de autor que esconde por trás de si uma multidão. bid começa solo de tudo, (bom) cantor/(bom) poeta por si só, na doce e triste “não pára”. mas olhe a ficha técnica. “não pára” tem banda, inclusive o organista “con azucar” carlos dafé – carlos dafé é veterano da cena black rio, soulman efêmero que desfibrou em 1977 o sucesso “pra que vou recordar o que chorei”. [lá adiante, no cd, dafé voltará no piano elétrico da instrumental “saudades da black rio”, guardiã de sample de “mr. funky samba” (1977), da banda black rio – a banda black rio representou momento de máxima exposição e comercialização das culturas black de subúrbio dos 70; a banda black rio é mãe da “diluição” do atual funk carioca, que é música eletrônica brasileira com raiz preta, preta, pretinha.]

a tênue impressão de solitude se desfaz já na segunda faixa, “na noite se resolve”, que reúne gente como ganja man (do coletivo instituto), lúcio maia (da nação zumbi) e integrantes da funk como le gusta. um dos co-autores é o dj soul slingercarlos “soul” slinger é brasuca auto-exilado que tem confundido e explicado inter-relações entre música eletrônica não-brasileira e música (não) eletrônica brasileira. outro dos co-autores é o (ex) membro da nação planet hemp black alien (gustavo) black alien foi provavelmente o artista brasileiro mais inventivo a gravar um disco no brasil em 2004 (“babylon by gus – volume i – o ano do macaco”, deckdisc), e é com esse know-how que faz de “na noite se resolve” a coisa mais aveludada e pontiaguda do cd de bid.

“maestro do canão” é homenagem explícita ao rapper paulistano assassinado sabotage; quem homenageia são rappers do quilate de funk buia e rappin’ hood rappin’ hood é um dos promotores cruciais de fusão na atual música popular brasileira. [no intertexto de “maestro do canão”, há ao menos dois sagazes samples (aquela modalidade musical que roberto carlos ainda não descobriu): de sabotage & instituto, o magnífico samba-rap “nega tereza” (lançado em “coleção nacional”, instituto & mais um monte de gente, yb music, 2002); de baiano & os novos caetanos , “vô batê pa tu” (samba-rock da lavra de 1974, uma afronta morena à oficialidade mpb dos anos 70 operada por, entenda quem puder, chico anysio & arnaud rodrigues).]

“e depois…”, maior momento de lirismo do álbum “solo”, é cantada por seu jorge – ex-f(unk)arofa carioca, seu jorge era negro marginalizado do rio, virou galã de faroeste (“cidade de deus”) no brasil e hoje é cidadão do mundo, movimenta “favelas chic” em paris, canta samba-soul-funk brasileiro aqui e algures, verte david bowie para o português e faz uns bicos em hollywood.

“fora do horário comercial” recoloca em circuito o hedonista semi-sumido marku ribas marku ribas é samba-roqueiro mineiro, autor do surreal grito afro “zamba ben” (1973) e ex-parceiro eventual do branquelo grandalhão erasmo carlos (esse eu não vou explicar quem é, mas tampouco ele está presente em pessoa no cd).

“mandingueira” é cantada com ginga e com soul por elza soares (e essa eu também não vou explicar quem é, apesar de sua voz rascante estar hiperpresente no cd).

também tem uns gringos no disco (dasez & muhammad mubashir, no rap “soul survivor”), mas esses eu tô com preguiça de comentar. também tem alguma turma brasileira chamada cine:lândia (em “terra vista”), que não vou comentar porque não sei direito quem é.

e tem, de bônus, umas outras almas, na revelação de uma antigüidade registrada nos anos 90 por chico science (e por jorge du peixe, outro egresso do clã nação zumbi) – chama-se “roda rodete rodeano”, foi composta por bid com os emboladores pernambucanos caju & castanha e se coloca ao léu aqui para lembrar o co-inventor da neotropicália à moda dos 90 a que se batizou mangue bit (aliás, onde estará o outro lado da moeda chico science, fred zero quatro? não veio?).

em outro bônus, “estou bem longe (do que me faz mal)”, há andré abujamra (ex-os mulheres negras, ex-karnak, atual andré abujamra) e o extraordinário rap-repente-percussionista de boca fernandinho beatbox (do grupo z’áfrica brasil).

é gente demais (quem está ali dentro está em negrito, mesmo que esteja ali dentro só de aura), e eu nem falei o nome de todo mundo. e é de alta consistência musical. e é prova de que estamos em tempos de mistura e comunicação, e de que, mesmo que o nome bid enfeite a capa do cd e unifique o que ele contém, a música que conta em 2005 é um troço de espírito coletivo, é uma celebração do agrupamento, da congregação, da tempestade cerebral – tudo que a ditadura militar brasileira se esforçou por (e conseguiu) desarticular, “bambas & biritas” representa em modesta colaboração a desarticulação da desarticulação.

@ – pausa de 15 mil compassos

“bambas & biritas vol. 1” é filho (não) bastardo de um disco que saiu no brasil em 1989, sob forte bombardeio da crítica, e que se chamava “popbsambalanço e outras levadas” (rca/bmg). seu autor, lulu santos, contava com o auxílio luxuoso de uma banda chamada auxílio luxuoso, cujos nomes dos integrantes nem eram creditados no encarte do lp. assim como o brasil, lulu santos era, em 1989, um projeto de ídolo, de dono da bola, de personalidade-guia, de rei da cocada preta. vestindo tais túnicas, lulu era um homem até certo ponto isolado, e talvez isso ajudasse a entender a inaceitação coletiva dos críticos e do público ao que ele resolvera fazer em “popsambalanço”. pois era um dos melhores álbuns que lulu lançou numa longa carreira de brilho pop.

é claro que isso só se pode entender hoje, quase 15 anos depois, mas “popsambalanço e outras levadas” era uma antecipação, um abridor de latas, um farol-guia que seguiria quase sempre não-reconhecido. significava a tentativa de um roqueiro americanizado brasileiro de penetrar de volta em seu país de origem. tinha sambinha. tinha tropicália underground (regravação do “samba dos animais”, insucesso de jorge mautner em 1974). tinha muito samba-rock (já a partir da divertida e irônica faixa de abertura, “brumário”). tinha lirismo (“os sobreviventes”: “já riscaram tanta coisa desse mapa”, “mas será que fechar os olhos/calar a boca é o que vai sobrar pra nós aqui?”). tinha ironia & auto-ironia (“o rei”, esculhambação contra a jovem guarda dos 60 de roberto carlos e contra o iê-iê-iê dos 80 de lulu santos : “eu sou o rei do iê-iê-iê/ eu sou o rei do ô ô ô/ eu soi o rei do hey hey hey”). tinha funk carioca (“e.o.q.a.”), artes plastimusicais (“parangolé”) e pop-rock caretão-sabidão (“eu não”: “eu é que não vou ficar me lamentando enquanto a vida vai passando batida rumo ao futuro”). beliscando ressuscitar o sambalanço, ousava reinserir o preto num dos tempos mais brancos da história do pop nacional. já andava meio só (fora
lulu santos, quem estava ali em negrito só estava ali em aura), tomou mais tomate no topete.

pois naquele dia o visionário solitário lulu santos sabia, e só bem depois um monte de gente ia saber também, que o rumo futuro do pop brasileiro teria que encarar a retomada do projeto coletivo da música bleque nacional. no disco branco (de capa preta) “popsambalanço e outras levadas”, estava inscrito que logo mais o brasil ia se reassumir negro com lula, clube do balanço, hip hop paulistano, funk supercarioca… ia se reassumir negro também, no eterno lado b das coisas ouvidas de raspão, com o disco branco (de capa branca) “bambas & biritas vol. 1”, do pós-lulu santos pós-pop bid.

“os sobreviventes saberão dar valor/ os sobreviventes conservarão calor, respeitarão a dor, saberão dar valor, celebrarão o amor/ isso se existirem”, disse em 1989 mr. funky lulu santos.

“não tem nada, não, o pensamento marca a história pela canção (…)/ estranhos se tornam melhores amigos/ melhores amigos se tornam estranhos/ (…) o tempo escorre e eu corro atrás”, respondeu em 2005 black alien da silva do brasil .

então estávamos todos em negrito, boa-noite.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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