a) durante os anos 60, a rede record orquestrava a programação televisiva brasileira, colocando a música em plano central. artistas da canção tinham contratos estáveis na emissora, que veiculava dentro de sua tela única correntes concorrentes. dali se dispersavam nomes tão divergentes como os de ataulfo alves, elizeth cardoso, jair rodrigues, elis regina, wilson simonal, roberto&erasmo&wanderléa, nara leão, chico buarque…, dali despontava para o futuro, no caldo de cultura dos festivais, o levante tropicalista… os anos 70 fomentaram o terror político e a ascensão da rede globo, que contratou roberto carlos como único artista exclusivo de música e escanteou o elenco da canção popular brasileira, escondendo as vozes dos cantores e das cantoras atrás das ações dos atores e das atrizes de telenovelas. música virou trilha sonora incidental, e esse formato, acondicionado e enfeitado de mil formas diferentes, não foi superado até hoje. a tela única da globo segue mostrando majoritariamente um tipo único de coisa, que se chama comércio. atrás dessa coisa única toda suposta diversidade se “abriga”.

b) a imprensa que trata de música costuma se dividir, desde pelo menos o ocaso da participação do tropicalista torquato neto nas crônicas musicais de jornal, em dois modelos básicos. um tende a achar tudo divino e maravilhoso, mesmo o que de mais modorrento e estagnado se faz em música popular. outro tende a encontrar ruindade em tudo, a considerar tudo indigno se ordenado em comparações de tempo (o presente versus o passado glorioso, da era dos festivais e de antes) ou de espaço (a música nacional versus o sempre vigoroso e potente pop internacional). entre a cultura do ótimo (do otimismo) e a do péssimo (do pessimismo), música nacional tende a ser vista, quase sempre, como matéria morta, estagnada, parada no pântano.

[pode substituir a palavra “música nacional” por “brasil”, se quiser.]

as proposições a) e b) parecem a princípio independentes entre si, mas têm tudo a ver uma com a outra. a derrocada musical na tela mais poderosa da tv nacional é irmã do otimismo exagerado e do pessimismo pestilento com que é encarada toda música que não passa na tv, toda música que passa na tv. os dois comportamentos se retroalimentam, e a calmaria conformista dá o tom animado da “plebe”, dá o tom desanimado da “elite”.

e se testássemos outros métodos?

pelo método antigo, as tvs farão as sonsas e manterão em silêncio evidências de que 2004 esteve morto em termos de música comercial – não houve padre marcelo, o tchan não reacendeu a velha chama, o rouge e o br’oz não se reinventaram, não se inventaram novos e eficazes rouges e br’ozes.

pelo método antigo, os jornais e as associações de críticos manterão em barulho a opinião renhida de que 2004 esteve morto em termos de música de arte (roubo o codinome da antiga tomada “cinema de arte”) – nada aconteceu, não apareceu ninguém de relevante, a bossa nova ainda segue o sambinha de uma nota só.

mas, abandonando o método antigo, algo de importante aconteceu no ano de 2004?

yes, nós temos bananas. a revolução segue silenciosa e subterrânea, mas continua acontecendo. o nome da revolução, em 2004, ainda é hip hop – mais precisamente, o nome da revolução em 2004 é gustavo black alien, é rappin’ hood. os muros entre as classes sociais mantêm esse silêncio sepulcral, mas ouvidos atentos terão percebido que muitos impasses vêm sendo resolvidos nas cercanias do hip hop nacional.

primeiro, lá na primeira metade do século XX, era o samba. depois, as culturas mais marginais (negras, em sua maioria absoluta) se distanciaram em certa medida do samba, que passava a representar por demais os “milagres” horrendos do brasil ditatorial – samba-exaltação, essas milongas. mais negros passaram a ser roberto carlos e erasmo carlos, que se afinaram com os negros norte-americanos porque se sentiam enjeitados pelo brasil “culto”

[este texto está cheio de “aspas”, mas é que elas se fazem mesmo necessárias]

e porque o grau de marginalização a que estavam submetidos era muito parecido ao que penavam os negros norte-americanos da motown, de início tão enjeitados lá quanto os carlos eram aqui. o brasil dispersou o samba em soul, funk, samba-rock, samba-soul etc. a trajetória de divórcio entre os marginalizados e o brasil oficial se estendeu e se intensificou até bater no hip hop, típica “música colonizada americanizada brasileira”, se posso vestir por segundos a túnica pura do querido nei lopes. o hip hop vira motivo de pejo entre as classes “cultas”, porque é preto, porque é pobre, porque é colonizado, porque fala em vez de cantar, porque discursa desordenado, porque isso, porque aquilo. bobagem, crianças, esse tipo de música fala ao brasil como poucas outras conseguem (ou tentam) falar.

e aí a notícia, que marcelo d2 traz desde alguns anos e que em 2004 black alien e rappin’ hood fortificaram: queremos voltar a pensar brasileiro. esses dois artistas são, como d2, grandes reintrodutores da poesia, da articulação discursiva, da melodia, do samba e do brasil no ideário do hip hop. superam mano brown, que ainda é muito mais importante que eles, mas no fundo sabe que depende de professar jorge ben e bebeto para amplificar seu já gigantesco poder de comunicação com as classes marginalizadas do brasil, essas por sua vez cada vez mais de saco cheio do esnobismo acuado das classes “de cima”.

black alien é música popular brasileira, da maior qualidade e do mais alto grau de elaboração, fundindo sem vergonha pop norte-americano, música popular brasileira, reggae jamaicano, idiomas diversos, referências a chico buarque e a celly campello, tudo ao mesmo tempo agora.

rappin’ hood, solo ou com sua posse mente zulu, é política popular brasileira de grosso calibre, como quando por exemplo induz dona leci brandão a fazer samba cantando soul e balada. “por que me sacar de uma arma/ pra nos matar?” pergunta ela lindíssima em “dona maria”, em meio a homenagens à (ex-)ministra negra benedita e à contradição de doutrinas de valorização da guerra em vez da paz. “dona maria” é espetáculo 2004-5 que honra a “dama tereza” (2003) de sabotage (e instituto), outro dos passos decisivos na reconciliação entre o brasil e seus marginais. [na escalada para o alto, sabotage ofereceu seu corpo em sacrifício – alô, chico science, alô, cássia eller.] eles estão batendo em nossa porta, em missão de paz; só manteremos a fortaleza trancafiada se tivermos coisas feias demais a esconder aqui dentro. temos?

pois black alien e rappin’ hood não estão desacompanhados na estrada de tijolos amarelos. mulheres, elas também testam martelar os tijolos da grande muralha social. a heroína, aqui, é tati quebra barraco, rapper (ou funkeira, como preferir) carioca que alcança com meiguice feminina territórios que os duros rappers meninos ainda não conseguem abordar. as classes “cultas” começam a assimilar tati, baixam a guarda e permitem que por instantes ela descubra o segredo do cofre-forte que dá acesso à redoma de síndrome do pânico do lado de cá. tudo é operado pela permanência dos preconceitos. tati é aceita por patricinhas amarelas e por mauricinhos azuis na medida em que seu sucesso favorece e alimenta reações jocosas – porque é mulher, preta, pobre, gorda, “feia”, tosca, desarticulada, “inculta”, sexuada, direta, sincera, permeável, porosa, generosa. pois tati quebra barraco, crianças, desempenhará para o feminismo (e para o masculinismo) brasileiro papel tão crucial como desempenhou, nos anos 60, a loirísisma wanderléa – e será tão discriminada quanto foi wanderléa apenas se for verdade que continuamos tão burros como éramos há 40 anos.

[os discos aqui comentados de raspão são:

.”babylon by gus – volume 1 – o ano do macaco”, black alien, deckdisc, 2004;

.”revolusom: a volta do tape perdido”, posse mente zulu, unimar music, 2004;

.”boladona”, tati quebra barraco, big mix, 2004;

para emoções semelhantes, procure conhecer também, amizade, o passeio pelos campos da liberdade do sobrevivente arnaldo baptista, ex-mutante ultra-independente, em “let it bed”, financiado pela “lobão incorporated”; a liberdade pode custar o juízo, mas não custa a razão; as fronteiras do jardim da razão se chamam EMOÇÃO.]

de volta ao começo, quem não produziu muita música relevante em 2004, mas em compensação vem redimensionando em larga escala noções velhas como o poder da globo (em contraponto com o da internet) e noções novas como a liberdade autoral (em contraponto com os direitos autorais) é o ministro da cultura do brasil. ele se chama gilberto gil, é preto, rico, marginalizado, poderoso, “em cima do muro” etc. etc. em entrevista à revista “carta capital” desta semana, relativizou o mito do poderio da globo ao comentar sua própria “derrota” no caso ancinav, enquanto assim se referia ao préstimo mesquinho desempenhado em favor do retrocesso, contra os avanços, por homens de cinema que também são seus grandes amigos, como os hoje globais cacá diegues e arnaldo jabor: “eram próximos a mim como seres humanos, não como agentes econômicos ou culturais”. gilberto já esteve bem mais cacá diegues que glauber rocha, bem mais arnaldo jabor que torquato neto, bem mais antonio calmon que rogério sganzerla. em 2004, esteve em movimento, aprendendo com rappin’ hood e tati quebra barraco a trabalhar exaustivamente pelo bem da música popular brasileira.

[os primeiros colchetes abertos neste texto, lá em cima, continuam valendo.]

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